REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 81


As sucessivas reformas do ensino que levaram as universidades a se reestruturarem tiveram como uma das suas consequências  o abandono da organização interdisciplinar como base metodológica de suas unidades e respectivos cursos. A compartimentação e a fragmentação e, com isso, o distanciamento, o isolamento e a fragmentação dos fundamentos do saber, foi-se aprofundando cada vez mais.

Só para exemplificar. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,  até aquele momento incarnava, por assim dizer a “alma” da universidade, “A alma Mater”, como se costumava dizer. Em volta dela organicamente interligadas, as Escolas de Engenharia e Arquitetura, as faculdades de Direito, de Medicina, Odontologia, Farmácia e tantas outras, encarregavam-se da formação técnico-profissional. Pois bem, a “alma mater” foi retalhada.  “As Ciências”, deram origem ao complexo da Física, Química, Matemática, Biologia e subáreas; Filosofia foi desdobrada em Filosofia, História, Geografia, Ciências Sociais; das Letras  surgiram os cursos de línguas e comunicação. Eu pessoalmente conquistei meus bacharelados em Letras Clássicas, Filosofia e História Natural naquele formato “antigo”.

Não estamos sugerindo o retorno ao formato estrutural daquela universidade  neste começo de milênio mas nos inspirarmo-nos na ideia-força que no fundo no fundo animava essas instituições. O nosso já conhecido filósofo nicaraguense resumiu em poucas palavras a missão e a função de uma universidade.

Buscar o equilíbrio e a integração das humanidades, da excelência acadêmica, do desenvolvimento da pós-graduação, o fortalecimento do binômio investigação-docência, de maneira que ambos se acionem reciprocamente; junto a eles, a eficiência administrativa e  flexibilidade curricular constituiriam aspectos necessariamente  complementares. Vivemos num mundo cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação. A universidade tem que reunir os fatores dispersos, numa unidade que é o ser humano; num síntese, que é o homem, a mulher, o sujeito histórico. Se forem revisadas detidamente essas metas e categorias, veremos que há uma intenção fundamental de síntese e integração do ser humano com sua sociedade e com sua história. Aí a Universidade e o conhecimento têm que jogar um papel reunificador. (Caldera, 2004, p. 106).

Portanto, a universidade não se equipara a uma  empresa de qualificação profissional. Ela qualifica, sim, profissionais de alto nível. Mas, à sua própria natureza e razão de ser, cabe a tarefa de consolidar  a consciência nos seus egressos de que a tecnologia não pode ser vista como um fim em si, não como um instrumento de poder mas como  ferramenta de progresso. Por isso, sem abandonar a condição guardiã dos valores perenes da humanidade com ênfase à ética e a liberdade, ela precisa modernizar-se, aperfeiçoando as bases administrativas lançando mão de  tecnologias de ponta, repensar e rever a adequação dos currículos à dinâmica do andar da história, não se deixar dominar por ideologias nem de “esquerda”, nem de “direita” ou  de qualquer outra denominação. As divergências e/ou preferências  de natureza política, religiosa, ideológica ou filosófica, não deveriam contaminar a tal ponto os conteúdos das disciplinas, sejam quais forem, a ponto de  perverter o conceito  da ética que possa ser relativizado de acordo as conveniências do momento e, direta ou indiretamente, se tolha a liberdade intelectual e moral dos alunos. Nesse cenário cabe à  universidade o papel de “parte da solução do problema e não parte do problema” criado pela ruptura do ser humano e a técnica. E a parte que lhe cabe resume-se em, explícita e implicitamente, por meio de suas áreas de conhecimento, os currículos, as disciplinas e sua execução, fazer permear o objetivo maior de contribuir com o restabelecimento do diálogo interrompido pela Revolução Tecnológica, entre as Ciências Naturais, As Ciências Humanas, as Letras e Artes. Não basta que na universidade se desenvolvam tecnologias, se possível de ponta, se formem excelentes administradores, engenheiros e arquitetos requisitados, médicos bem formados, advogados peritos em legislação e egressos competitivos em todas as demais áreas e cursos, se não partirem para o exercício da profissão com a consciência assumida de que as ferramentas que a universidade lhes proporcionou devem servir ao homem e não  homem às ferramentas. Em outras palavras às universidades cabe, pela sua própria natureza, o papel fundamental na consolidação de uma sociedade harmônica, solidária, respeitadora dos direitos indivíduos e coletivos e ao mesmo tecnicamente preparada para acompanhar a dinâmica da  história. Alexandro Caldera resumiu com precisão a realidade fruto da pós-modernidade, seus descaminhos e a possibilidade de um convívio entre os homens seja orientado pelo princípio da “Unidade na diversidade”.

Há que evitar três riscos ao preservar o indubitável valor democratizador das diferenças: o afiançamento do etnocentrismo axiológico, a pulverização da ética e de todo valor por um indefinido processo de desconstrução, e a defesa da identidade e a diferença própria, negando a identidade e diferenças alheias. Ou seja, evitando que a pluralidade de culturas  se transforme na multiplicação de núcleos impermeáveis, intolerantes e agressivos.
Por isso há que entender a identidade e as diferenças desde a visão de um mundo plural, aberto e intercomunicado, de um mundo onde a diferença não seja barreira, mas ponte, e na qual as distintas visões e imaginários da vida e da história sejam vasos comunicantes que façam possível a capilaridade cultural, a Unidade na Diversidade. (Caldera, 2004, p. 93-94)

Trata-se de um desafio que assusta a todo e qualquer um que tem consciência do tamanho e complexidade  do problema e de alguma forma tem responsabilidade em dar-lhe uma solução. Se, porém, não se tentar essa guinada e não se recuperarem os valores perenes que, desde o homem é homem, garantiram o seu convívio, estagnaremos  no nível de uma humanidade errática, perdida no caminho, sem rumo e sem norte. E, cada ano que passa essas instituições e universidades formam e, portanto, credenciam para o exercício da profissão, centenas e milhares de profissionais que não passam de manipuladores mais ou menos competentes, mais ou menos agressivos e bem sucedidos das ferramentas teóricas e técnicas oferecidas pelos currículos das respectivas instituições superiores. Esperar que entre os detentores de um título desse nível de formação evolua um economista digno desse nome ou, quem sabe, um Nobel em economia, não passa de utopia ou dum reles produto de uma autoestima  que se aproxima do ridículo. A lógica que pauta sua atitude no dia a dia da prática da profissão resume-se em “deixar que as forças invisíveis do mercado regulem a economia, porque seus efeitos sobre a sociedade e a natureza são danos inevitáveis. (Lauato si, 123). Numa cultura na qual não se aceitam, muito menos se cultivam e respeitam “verdades objetivas nem princípios estáveis, fora  da satisfação das aspirações próprias e das necessidades imediatas (...)” (Laudati si, 123) tudo é permitido, tudo é possível, nenhuma aberração, por mais absurda que seja, está sujeita a sansões de fato eficientes. Neste caldo sem valores estáveis e consequentemente  sem leis capazes de por um freio para valer aos desmandos, aos desajustes sociais, ao mau uso da liberdade são tratados pela mídia e boa parte da opinião pública como fenômenos “inevitáveis”, portanto explicáveis  fazendo parte do dia a dia. A Encíclica aponta algumas aberrações que costumam chocar a grande mídia e seus públicos principalmente quando interessam ao poder, ou ao politicamente correto ditado pela ideologia hegemônica.

“Que limite pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em extinção? Não é a mesma logica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com finalidade de vender ou utilizar para a experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem  ao desejo dos pais. É a mesma lógica do “usa e joga fora” que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade. (Laudato si, 123)

Num cenário desses, a cultura como um todo se corrompe quando entregue à lógica do livre arbítrio, da negação dos valores perenes intocáveis, do exercício irresponsável e predatório da liberdade e do império da lei do mais forte. As leis não passam de imposições arbitrárias e limitações aos desmandos de pessoas e grupos humanos, cuja eficácia só dá resultados quando entra em cena a polícia com seus instrumentos de repressão. E mesmo assim não passam de paliativos, ou soluções episódicas em momentos e situações extremas e localizadas, portanto, um mal necessário para administrar as consequências de uma sociedade doente. Essa situação costuma ser usada como desculpa ou como justificativa para tirar a responsabilidade dos praticantes de delitos dos pequenos transgressores até dos criminosos de porte internacional,  a caça predileta apresentada em grande parte pela mídia, que, em não poucos casos consegue apresenta-los envoltos numa aura de um romantismo perverso. A história está recheada desses heróis bandidos: corruptos sem escrúpulos e sem limites, assassinos, terroristas, genocidas, traficantes de crianças e por aí vai. Por mais que uma sociedade seja capaz de induzir alguém ao crime ela não pode justificar o ato criminoso, porque isso negaria aquilo que o ser humano distingue dos demais seres vivos: a consciência moral, a consciência do certo e do errado  e a liberdade de obedecer ao alerta da consciência ou não. A consciência do certo e errado pode até ser seriamente distorcida ou até certo ponto amordaçada pela perversidade da cultura em que alguém foi criado. Mas, esse fato não  exime o indivíduo da responsabilidade   dos seus atos.



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