Archive for abril 2018

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 74


Neste começo do terceiro milênio um verdadeiro temporal faz balançar perigosamente a corda  sobre o abismo, atordoa e desorienta a humanidade arrastada  por um paradigma civilizatório metido num gargalo  difícil de passar. “A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades, consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direção. Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da vida”. (Laudato si, 113). Há um  dilema preocupante escondido  atrás dessa  realidade. De um lado voltar no tempo e reimplantar uma civilização agro pastoril no modelo de séculos passados não passa de uma nostalgia romântica impossível. Mas acredito na viabilidade da recuperação dos  valores fundamentais  que fazem do ser humano um “humano”  que ditam as diretrizes do relacionamento das pessoas sem sacrificar a tecnologia com todos os seus benefícios. Acontece que a tecnologia veio não só para ficar mas para ditar o ritmo e o compasso da dinâmica histórica do momento e também do futuro. O drama resume-se em conciliar as duas coisas. A Encíclica formulou a possível saída desse imbróglio nesses termos.

O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. A ciência e a tecnologia não são neutrais, mas podem desde o início até ao fim dum processo , envolver diferentes intenções e possibilidades que se podem configurar de várias maneiras. Ninguém quero o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreamento megalômano. (Laudato si, 114)

A solução, portanto, consiste em recolocar no seu devido lugar a razão de ser e o uso prático da ciência e tecnologia em relação o homem que é seu protagonista e usufrui das suas conquistas. Mais acima já nos ocupamos com esse desafio, que se resume em desenvolver a ciência e a tecnologia como “ferramenta” para melhorar a qualidade de vida da humanidade em vez de “instrumento de poder” que serve a poucos e exclui e condena à marginalidade a grande maioria. Não há necessidade de insistir que essa reorientação na maneira de avaliar a ciência e a tecnologia, pela sua própria natureza, só acontece a médio e longo prazo pois, implica na opção por um novo paradigma civilizatório, que põe em xeque na sua própria essência o que está em vigor e atualmente governa o mundo. Não passa de ingenuidade, para não dizer ignorância, dos que acreditam que os  encontros mundiais espalhafatosos sobre clima, água, aquecimento global, exploração e uso dos recursos naturais e por aí vai, resultem em de alguma maneira, na solução do verdadeiro nó da questão. O teatro encenado por governantes, políticos, economistas, estrategistas, organizações não governamentais etc., pelo simples fato de controlarem o avanço da ciência e tecnologia e decidirem sobre seus resultados práticos, são os primeiros a defenderem o paradigma vigente. E, se numa suposição otimista ao extremo, resolvessem enveredar por um caminho de fato revolucionário, sabem que o impasse não se resolve por decretos ou decisões assinadas em documentos teatrais pelos governos de dezenas de países.

A correção da rota a que nos acabamos de referir começa pela conscientização dos adultos do risco que correm em deixar como herança para as futuras gerações um planeta depauperado pela exploração sem freios dos seus recursos. Será inevitável se não ocorrer a curto e médio prazo, senão uma reversão, pelo menos um arrefecimento da  dinâmica nas mãos dos senhores do poder da tecnologia. A humanidade corre o risco de que esteja preparando o caminho para uma nova era que  nosso já conhecido cientista Edward Wilson chamou de “Eremozoica” ou “Era da Solidão”. Segundo ele, se a humanidade continuar no mesmo ritmo de agressão à natureza, a extensão dos danos causados pela extinção de espécies e danificação simples e pura destruição dos ecossistemas, ela enfrentará uma situação semelhante ao final da Era Mesozoica. Essa perspectiva, melhor esse cenário, deveria servir de alerta, melhor talvez, de susto para a atual geração responsável pelo nosso destino histórico e acorde para não despencar “da corda estendida sobre o abismo”. Parece claro que, em se tratando da geração adulta, não cabe mais “educar”, no máximo pode-se falar em reeducar e/u conscientizar. Ao que tudo indica essa reeducação, esses conscientizar  vai tomando cada vez mais espaço e conquistando rapidamente adeptos.

Mas, quando o assunto é educação ambiental o público mais importante, por ser decisivo para o futuro, vem a ser os diversos estágios do ensino. Começa pela infância na família. Num ambiente familiar no qual os pais e irmãos mais velhos e a própria localização da moradia oferecem o exemplo de respeito ao ambiente banindo a caça aos animais silvestres e tratando com a devida racionalidade à parte da natureza que lhes garante o sustento, a criança interioriza naturalmente essas mesmas atitudes. Aliada aos pais e irmãos a natureza complementa com seus estímulos diários a moldagem da personalidade naquela fase tão determinante para o resto da vida. Um cenário natural com seus córregos, suas plantas, árvores, animais domésticos ou selvagens, é a melhor escola por nela serem depositadas as sementes que irão alimentar,  e direta ou indiretamente, pautar a vida posterior das pessoas. Este parece ser a razão mais profunda que levou o Papa a chamar a natureza de “nossa casa”. Como exemplo escolhi uma anotação no diário do Pe. Rambo  falando da sua infância: “Fui  uma criança um dia, como todas as crianças, só mais silente e reflexiva do que a maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens sempre foram meus brinquedos prediletos.” Renato Dalto seu biógrafo acrescenta: “Os brinquedos prediletos estavam na porta da casa, construída com tábuas de cabriúva à beira de uma mata, onde sobressaiam também  camélias e, um pouco mais além, guajuviras, cedros, canjeranas, cerejeiras e uma pequena vegetação rasteira. Este foi o cenário dos primeiros anos da vida. (...) Aos sete anos Balduino vai estudar numa escolinha comunitária em Tupandi. O caminho até a escola começava num atalho pelo campo, uma trilha entre as árvores da mata. Uma trilha emblemática: a natureza seria, pela vida afora, a bússola para todo o conhecimento. Entenderia através dela, o primitivismo do instinto e o poder da contemplação. Nela se abrigaria sob as folhas quando a chuva chegasse, ergueria os olhos para o alto para intuir que um grande pinheiro poderia tocar o céu – e assim chegaria mais perto de Deus. A natureza foi a primeira escola. Foi também a escola definitiva”. Não por nada o Pe. Rambo concebeu a natureza como “minha mãe e pátria”.

O cenário descrito por Renato Dalto mostra bem como as crianças de 100 anos passados viviam com suas famílias em comunidades organizadas, com suas escolas, igrejas, casas de comércio, artesanatos e demais complementos. Idosos, adultos, adolescentes e crianças passavam dos dias em íntima comunhão com a natureza. Nada os impedia de transitar em total liberdade nesse ambiente que fornecia o alimento para o corpo e o espírito e os estímulos para fantasiar à vontade e deliciar-se com a sinfonia da natureza em seu estado ainda quase puro. Não havia nem rádio, nem luz elétrica, e é supérfluo lembrar que a televisão nem sequer fazia parte da imaginação do futuro, menos ainda toda a parafernália eletrônica sem a qual o quotidiano de hoje é impensável. Exceto algumas novidades tecnológicas como o “rádio de galena”, o telefone comunitário atendendo um distrito todo, máquinas de calcular mecânicas acionadas com manivela, máquinas de escrever mecânicas, melhoria nas estradas etc., esse cenário predominou no interior colonial até o final da Segunda Guerra Mundial. As pessoas ficam espantadas quando eu lembro que com 20 anos falei a primeira vez ao telefone,  um desses telefones de manivela hoje peça de museu. O instrumento de última geração para fazer cálculos foi a famosa “régua de cálculo”. Aos poucos tornaram-se comuns as máquinas de escrever elétricas. A grande explosão da automação, da eletrônica, da informática, a extensão das linhas de transmissão de eletricidade até as grotas mais isoladas, teve os eu começo em torno de 50 anos passados. E vale lembrar mais um dado. Até 1950 O Brasil contava com redondos 52.000.000 habitantes. Bem mais da metade dessa população  vivia no interior agrícola. Começou então a inverter-se a tendência e hoje dos mais de 200.000.000 de brasileiros, a população urbana predomina absolutamente sobre a rural.




REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 73


Olhando a história do homem como um todo e observando mais atentamente o momento atual percebe-se com mais ou menos evidência, que a resposta é positiva. Recorramos à metáfora do oceano como significando a história da humanidade. No começo do terceiro milênio predomina o mau tempo na superfície. Tempestades políticas, ideologias extremadas procurando aniquilar umas às outras, o poder econômico turbinado pela tecnologia em pleno aperfeiçoamento transformando o seu potencial e instrumento de poder, a grande mídia a serviço de uma civilização sem referenciais éticos, errática e preocupada em defender o que há de mais deplorável no homem. O verdadeiro humano no homem, entretanto, as profundezas do oceano da nossa metáfora, embora ignorado senão desprezado, continua calmo e sereno como há milhares de anos, continua a sua trajetória à espera de tempo melhor. Sob as cinzas deixadas pelos incêndios causados pela civilização, do estardalhaço, da cacofonia,  do mútuo devoramento dos seu protagonistas, continuam acesas as brasas do “outro mundo”, para nos valermos da outra metáfora mais acima. Apesar do furor da tempestade que nos castiga, nota-se no horizonte uma tênue faixa de claridade, que anuncia que o “mau tempo”, senão passar, pelo menos deixa esperança de uma relativa calmaria. A Encíclica  descreveu essa relativa calmaria.

Todavia é possível  voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orienta-la e colocá-la a serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De fato verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de pequenos agricultores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo um modelo não-consumista de vida, alegria e convivência. Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros, com o compromisso de ajudar a viver com mais dignidade e menor sofrimento. E ainda mais quando a busca criadora do belo e a sua contemplação conseguem superar o poder objectivador  numa espécie de salvação que acontece na beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase imperceptível, como a neblina que filtra por debaixo da porta fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de tudo, desabrocha como uma obstinada resistência daquilo que é o autêntico. (Laudato si, 112)

Esse texto extraído da Encílica resume em poucas linhas, mais talvez nas entrelinhas, o tamanho e a extensão do “nó górdio” a ser desatado. Cortá-lo como o fez o general romano ou, em outras palavras rompê-lo, equivaleria a uma solução quixotesca diante mão fadada ao fracasso pois, a história é o resultado de uma dinâmica e um ritmo próprio que não admite uma ruptura ou uma mudança radical de rumo, sem cobrar por ela um preço que levará gerações para ser pago. Não se pode esquecer que a evolução dos paradigmas civilizatórios, quanto mais profundos e sólidos são, tanto mais tempo demandam para percorrer todas as suas etapas. Simplificando, o percurso das civilizações historicamente mais conhecidas, como a egípcia, a babilônica, a grega, a romana e outras,  começam com uma fase juvenil, uma fase de consolidação, uma fase adulta sólida. Na medida, porém,  em que o potencial de renovação interna se esgotava começaram a aparecer sinais de degenerescência que terminam com a imposição de um novo paradigma. O  elemento ou os elementos novos que levam ao começo de uma nova fase surgem de dentro do próprio paradigma que esgotou seu potencial, ou por fatores externos que venham a se impor sobre o declínio irreversível em que se debatem as civilizações em agonia. Não é aqui o lugar para um análise mais aprofundada de como se desenrola essa dinâmica que, de algum maneira, comanda a trajetória de grandes e pequenas civilizações. Foi baseado nesses critérios que a história foi dividida e antiga, medieval, moderna e contemporânea, pós moderna.

Nas reflexões que estamos desenvolvendo interessa de fato a possível transição do paradigma em vigor da tecnocracia como instrumento de poder com todas as sus consequências, para um outro em que a tecnologia serve como ferramenta de um progresso cujos resultados beneficiam de alguma forma a humanidade como um todo. A pergunta que se coloca é essa: percebem-se sinais que essa revolução é possível ou, quem sabe já se identificam iniciativas concretas que levam nessa direção? A resposta otimista encontra-se na Encíclica, o documento que orienta nossas reflexões. 

Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro feliz são outros. Apesar disso também não se imaginam renunciando às possibilidades  que oferece a tecnologia. (Laudadto si, 113)

Dois dados chamam a atenção nessa constatação da Encíclica. O primeiro percebe-se expresso ou subentendido na manifestação de um número sempre maior de pessoas na desconfiança e não raro no entendimento declarado que a técnica começa dar sinais de que é limitada. Por mais sofisticada e mais eficiente que seja o seu aperfeiçoamento e o seu potencial para suprir as demandas postas pela civilização pós moderna, vai-se impondo a convicção de que há um limite. E esse limite está implícito na própria natureza do paradigma que se vale da tecnologia como  instrumento de poder. Com os malefícios, distorções e perversidade dessa cosmovisão já nos ocupamos mais acima. Aqui importa apontar para uma lenta mudança de mentalidade que vai percebendo que o futuro da humanidade, a médio e longo prazo, já não pode apostar incondicionalmente apenas nos avanços da tecnologia. Essa preocupação tem a sua origem numa raiz muito mais profundo do que o esgotamento  do potencial inovador e renovador das ferramentas responsáveis indispensáveis para o bom andamento da dinâmica do progresso. Sempre mais pessoas isoladas assim como organizações das mais diversas finalidades se dão conta de que a realização plena do homem depende de um estilo de vida que lhe garante o mínimo para ser feliz. Técnica e tecnologia por si só não criam um cenário propício para que as pessoas sintam, vivam e degustem o “humano” – “das Menschliche”, razão última do seu existir. A história da humanidade resume-se na eterna busca da realização pessoal e coletiva e assim cumprir a missão que lhe foi confiada na sinfonia da natureza. Nessa peregrinação a evolução tecnológica, as organizações sociais e políticas, as formas  econômicas que que se sucederam, as religiões que se consolidaram, as formas de intercomunicação entre as pessoas e os grupos, as manifestações de arte, a vivência do belo, não passam de instrumentos, de ferramentas para alcançar o topo da realização do homem. Parece que a metáfora de Nietzsche da corda estendida sobre o abismo seja mais ilustrativa. Pelo fato de o homem ser dotado de liberdade de escolha, as opções equivocadas, distorcidas, interesseiras, que explicam as guerras, desastres naturais e por ai vai, fazem balançar, às vezes perigosamente, a corda. A maior façanha da humanidade até este momento consiste em não se ter precipitado no abismo. Voltando à metáfora. A corda estendida sobre o abismo equivale ao “humano”  que serve de guia para o cumprimento da missão que se resume na sua realização plena com a chegada à outra margem do abismo. Nesta perspectiva as turbulências que marcaram os diversos períodos da história não são fenômenos episódicos e/ou aleatórios, mas as consequências do mau uso da liberdade dando em escolhas que tumultuaram o fluxo tranquilo ditado pela natureza humana.



REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 72


Analisando as consequências desse “paradigma” a Encíclica continua apontando para algumas mais profundas que estimulam os desvios e aberrações do “progresso”. A tecnocracia tende a submeter à sua lógica a economia e a política. A economia vale-se da tecnologia para ser sempre mais produtiva e, principalmente, mais lucrativa. A  produtividade oferece, sem dúvida, vantagens inegáveis para não dizer indispensáveis numa fase histórica em que a humanidade se multiplica em ritmo acelerado. Portanto, o aumento de produção em si é condição para acompanhar as demandas desse crescimento da população. Acontece, porém, que o paradigma que rege esse processo termina por transformá-lo num instrumento de poder controlado por uma minoria. Dessa forma  seus tentáculos vão permeando o tecido social desde a base até o topo onde se formulam os projetos e as estratégias que destinam os resultados da produção tecnológica para perpetuar o seu poder, controlando de como usufruir os seus benefícios. O poder e sua perpetuação nas mesmas mãos torna-se um fim em si e o caminho mais garantido para preserva-lo consiste em controlar a repartição dos bens produzidos. O fim  justificando os meios é, sem dúvida, o resultado prático mais perverso dessa inversão de referências éticas ou na sua pura e simples abolição. O relativismo ético e/ou moral  termina por transformar  as sociedades humanas em organizações nas quais o “vale tudo” dá as cartas. Condena ao esquecimento e, por isso mesmo torna inócuo o que em qualquer ser humana é, pela sua própria natureza  a base do “humano no homem”, isto é, a consciência do que é certo ou errado, do bem ou do mal e, do outro lado a liberdade para decidir sobre o bem e o mal. O resultado é óbvio. Se o critério do bem ou do mal é assumido como norte por uma um sistema em que o relativismo ético pelo   qual o fim justifica os meios é norma, os indivíduos são privados também da liberdade de decidir ou não seguir o que a consciência lhes diz. Ética sem liberdade de consciência não é ética assim como liberdade sem ética não é liberdade. Vive-se no reino do vale tudo, da competição sem freios, da tirania mais desumana e a fartura mais obscena de um lado e, do outro a marginalização em massa, a degradação física, psíquica, moral e espiritual, a morte pela fome de milhões de seres humanos, principalmente crianças. O poder possibilitado pelo paradigma tecnocrático prepara o caminho para tiranos na sua forma mais cruel sonegando ou até confiscando  o que há de mais elementar para uma pessoa gozar um mínimo de dignidade, resultando em autênticos genocídios. São testemunhas os mais de 4 milhões de ucranianos que morreram de fome porque Stalin lhes confiscou as propriedades, as colheitas e os rebanhos. Um número não menor de chineses tiveram o mesmo destino no período de Mau Tse Tung na China e não esqueçamos as táticas de extermínio dos judeus no período do Nacional Socialismo sob Hitler na Alemanha. São três exemplos emblemáticos de genocídio de quase oito décadas passadas. Se olharmos, porém, os cenários humanos que caracterizam o assim denominado terceiro mundo, com destaque para a África, a situação permanece igual ou até pior. Um número indefinido de tiranos rodeados dos seus lacaios concentram em suas contas no exterior e no estilo de vida de nababos, pilhando o que conseguem do produto dos recursos dos seus países. Seus súditos morrem aos milhões de fome, de falta de assistência médica, de saneamento básico e outros bens as quais têm o sagrado direito pelo simples fato de serem seres humanos. É difícil  avaliar o tamanho de crime quando se impede que as pessoas tenham condições as mais elementares para realizar o seu “humano” que, em última análise, é a razão última de presença nesta terra.

“O paradigma tecnocrático tende  a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, se prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano”. Nalguns círculos  defende-se que a economia atual e a tecnologia resolverão todos os problemas problemas ambientais, do mesmo modo se afirma , com linguagens não acadêmicas, que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. Não é uma questão de teorias econômicas, que hoje talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua instalação no desenvolvimento concreto da economia. Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os fatos, quando não parece não preocupar-se com o justo nível de proteção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio ambiente ou os direitos das gerações futuras. ( ... ) Não temos suficiente consciência de quais sejam de quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios  atuais: estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento tecnológico e econômico (Laudato si,  109)

Não é objetivo da Encíclica analisar em profundidade as consequências políticas, econômicas, sociais, éticas e morais que acompanham a adoção do paradigma tecnocrático que comanda a atual civilização. A sua preocupação centra-se na preocupação pelo meio ambiente maltratado até o irracional com a  adoção dele como eixo reitor do desenvolvimento. O meio ambiente é mais uma das suas vítimas e quem sabe a mais fundamental e indispensável nessa dinâmica. Pede-se de vista que ele, com a humanidade como um dos seus componentes ontológicos ou se preferirmos, existencialmente  nele inserida, forma uma síntese de milhões de componentes, estruturada como um mega sistema, no qual cada um em particular ocupa um lugar e desempenha uma função a serviço do todo. No momento em que visão das coisas for perdida ou ignorada, abre-se o caminho para uma avaliação da natureza equivocada pela sua própria base. O tecnólogo imbuído dessa cosmovisão torna-se incapaz de enxergar o todo e lida com as questões atinentes ao meio ambiente como se fossem peças isoladas aleatórias e casualmente reunidas num conjunto que não tem nada em comum com uma síntese no sentido rigoroso do conceito. E com isso nos encontramos de novo frente à advertência de Teilhard de Chardin, já referida mais acima, apontando para dupla face da tecnologia. Ela é o magnífico instrumento que faz possível o maravilhoso progresso  de que se orgulha a nossa civilização. Como tal merece todo o nosso apoio. Sem a moderna tecnologia a humanidade teria estagnado no tempo. De outro lado, a especialização e a penetração cada mais funda, nos arcanos da natureza, trás consigo o risco de se perder a visão da globalidade e com isso o real sentido que o objeto escolhido para ser analisado. Dependendo da maneira como o especialista o identifica, não passa por ex., de uma roda no plano da mecânica, um órgão sob o ponto de vista da fisiologia, ou um composto de tais ou quais elementos no plano químico. O resultado dessas compreensão da natureza por muitos cientistas e a aplicação das suas descobertas, induzem a consequências práticas importantes. Pouco resolve por ex., salvar da extinção uma espécie de ave ou mamífero, sem tomar em consideração o meio natural em que prospera o a parte que lhe cabe dentro do ecossistema que é o seu habita natural. O mesmo vale para a proteção de vegetais de todas espécies, como as figueiras, as araucárias e outras quando no seu entorno  se permite a deterioração ambiental pois, em última análise, essa é a condição por prosperarem em circunstâncias naturais características, melhor, em ecossistemas determinados. A Encíclica aponta para essa problemática com a advertência.

A cultura ecológica não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar as cosas que, na realidade, estão integradas  e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial. (Laudato si, 111)

A pergunta que se coloca depois dessas considerações todas e da advertência da Encíclica, é óbvia:  há como enfrentar com sucesso esse paradigma em que a tecnologia funciona como um instrumento de poder; existe uma perspectiva real e factível de colocar a tecnologia no seu verdadeiro lugar como ferramenta para turbinar o progresso, num paradigma em que os seus produtos e resultados são destinados ao bem comum e não um instrumento de poder nas mãos de uma minoria de tiranos egoístas a comandar a política, a economia, as estratégias militares;  será que ainda dispomos de tempo hábil para livrar a humanidade do  paradigma tecnocrático que a tiraniza e deixa à margem ou à mercê dele quando se trata do acesso e uso e fruto das suas conquistas?; será possível reverter o relativismo ético e/ou moral que distorce e subverte a compreensão do humano no homem, ao justificar os meios,  quais quer meios, pelo fim a que servem?; há condições reais de devolver à consciência das pessoas e à liberdade de obedecer ou não aos seus ditamos o papel de fonte dos valores que garantem às organizações humanas os laços do relacionamento, ditado pela  responsabilidade, o comprometimento e respeito mútuo e, principalmente, pela solidariedade?.