REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 74


Neste começo do terceiro milênio um verdadeiro temporal faz balançar perigosamente a corda  sobre o abismo, atordoa e desorienta a humanidade arrastada  por um paradigma civilizatório metido num gargalo  difícil de passar. “A humanidade mudou profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades, consagra uma fugacidade que nos arrasta à superfície numa única direção. Torna-se difícil parar para recuperarmos a profundidade da vida”. (Laudato si, 113). Há um  dilema preocupante escondido  atrás dessa  realidade. De um lado voltar no tempo e reimplantar uma civilização agro pastoril no modelo de séculos passados não passa de uma nostalgia romântica impossível. Mas acredito na viabilidade da recuperação dos  valores fundamentais  que fazem do ser humano um “humano”  que ditam as diretrizes do relacionamento das pessoas sem sacrificar a tecnologia com todos os seus benefícios. Acontece que a tecnologia veio não só para ficar mas para ditar o ritmo e o compasso da dinâmica histórica do momento e também do futuro. O drama resume-se em conciliar as duas coisas. A Encíclica formulou a possível saída desse imbróglio nesses termos.

O que está a acontecer põe-nos perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. A ciência e a tecnologia não são neutrais, mas podem desde o início até ao fim dum processo , envolver diferentes intenções e possibilidades que se podem configurar de várias maneiras. Ninguém quero o regresso à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreamento megalômano. (Laudato si, 114)

A solução, portanto, consiste em recolocar no seu devido lugar a razão de ser e o uso prático da ciência e tecnologia em relação o homem que é seu protagonista e usufrui das suas conquistas. Mais acima já nos ocupamos com esse desafio, que se resume em desenvolver a ciência e a tecnologia como “ferramenta” para melhorar a qualidade de vida da humanidade em vez de “instrumento de poder” que serve a poucos e exclui e condena à marginalidade a grande maioria. Não há necessidade de insistir que essa reorientação na maneira de avaliar a ciência e a tecnologia, pela sua própria natureza, só acontece a médio e longo prazo pois, implica na opção por um novo paradigma civilizatório, que põe em xeque na sua própria essência o que está em vigor e atualmente governa o mundo. Não passa de ingenuidade, para não dizer ignorância, dos que acreditam que os  encontros mundiais espalhafatosos sobre clima, água, aquecimento global, exploração e uso dos recursos naturais e por aí vai, resultem em de alguma maneira, na solução do verdadeiro nó da questão. O teatro encenado por governantes, políticos, economistas, estrategistas, organizações não governamentais etc., pelo simples fato de controlarem o avanço da ciência e tecnologia e decidirem sobre seus resultados práticos, são os primeiros a defenderem o paradigma vigente. E, se numa suposição otimista ao extremo, resolvessem enveredar por um caminho de fato revolucionário, sabem que o impasse não se resolve por decretos ou decisões assinadas em documentos teatrais pelos governos de dezenas de países.

A correção da rota a que nos acabamos de referir começa pela conscientização dos adultos do risco que correm em deixar como herança para as futuras gerações um planeta depauperado pela exploração sem freios dos seus recursos. Será inevitável se não ocorrer a curto e médio prazo, senão uma reversão, pelo menos um arrefecimento da  dinâmica nas mãos dos senhores do poder da tecnologia. A humanidade corre o risco de que esteja preparando o caminho para uma nova era que  nosso já conhecido cientista Edward Wilson chamou de “Eremozoica” ou “Era da Solidão”. Segundo ele, se a humanidade continuar no mesmo ritmo de agressão à natureza, a extensão dos danos causados pela extinção de espécies e danificação simples e pura destruição dos ecossistemas, ela enfrentará uma situação semelhante ao final da Era Mesozoica. Essa perspectiva, melhor esse cenário, deveria servir de alerta, melhor talvez, de susto para a atual geração responsável pelo nosso destino histórico e acorde para não despencar “da corda estendida sobre o abismo”. Parece claro que, em se tratando da geração adulta, não cabe mais “educar”, no máximo pode-se falar em reeducar e/u conscientizar. Ao que tudo indica essa reeducação, esses conscientizar  vai tomando cada vez mais espaço e conquistando rapidamente adeptos.

Mas, quando o assunto é educação ambiental o público mais importante, por ser decisivo para o futuro, vem a ser os diversos estágios do ensino. Começa pela infância na família. Num ambiente familiar no qual os pais e irmãos mais velhos e a própria localização da moradia oferecem o exemplo de respeito ao ambiente banindo a caça aos animais silvestres e tratando com a devida racionalidade à parte da natureza que lhes garante o sustento, a criança interioriza naturalmente essas mesmas atitudes. Aliada aos pais e irmãos a natureza complementa com seus estímulos diários a moldagem da personalidade naquela fase tão determinante para o resto da vida. Um cenário natural com seus córregos, suas plantas, árvores, animais domésticos ou selvagens, é a melhor escola por nela serem depositadas as sementes que irão alimentar,  e direta ou indiretamente, pautar a vida posterior das pessoas. Este parece ser a razão mais profunda que levou o Papa a chamar a natureza de “nossa casa”. Como exemplo escolhi uma anotação no diário do Pe. Rambo  falando da sua infância: “Fui  uma criança um dia, como todas as crianças, só mais silente e reflexiva do que a maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens sempre foram meus brinquedos prediletos.” Renato Dalto seu biógrafo acrescenta: “Os brinquedos prediletos estavam na porta da casa, construída com tábuas de cabriúva à beira de uma mata, onde sobressaiam também  camélias e, um pouco mais além, guajuviras, cedros, canjeranas, cerejeiras e uma pequena vegetação rasteira. Este foi o cenário dos primeiros anos da vida. (...) Aos sete anos Balduino vai estudar numa escolinha comunitária em Tupandi. O caminho até a escola começava num atalho pelo campo, uma trilha entre as árvores da mata. Uma trilha emblemática: a natureza seria, pela vida afora, a bússola para todo o conhecimento. Entenderia através dela, o primitivismo do instinto e o poder da contemplação. Nela se abrigaria sob as folhas quando a chuva chegasse, ergueria os olhos para o alto para intuir que um grande pinheiro poderia tocar o céu – e assim chegaria mais perto de Deus. A natureza foi a primeira escola. Foi também a escola definitiva”. Não por nada o Pe. Rambo concebeu a natureza como “minha mãe e pátria”.

O cenário descrito por Renato Dalto mostra bem como as crianças de 100 anos passados viviam com suas famílias em comunidades organizadas, com suas escolas, igrejas, casas de comércio, artesanatos e demais complementos. Idosos, adultos, adolescentes e crianças passavam dos dias em íntima comunhão com a natureza. Nada os impedia de transitar em total liberdade nesse ambiente que fornecia o alimento para o corpo e o espírito e os estímulos para fantasiar à vontade e deliciar-se com a sinfonia da natureza em seu estado ainda quase puro. Não havia nem rádio, nem luz elétrica, e é supérfluo lembrar que a televisão nem sequer fazia parte da imaginação do futuro, menos ainda toda a parafernália eletrônica sem a qual o quotidiano de hoje é impensável. Exceto algumas novidades tecnológicas como o “rádio de galena”, o telefone comunitário atendendo um distrito todo, máquinas de calcular mecânicas acionadas com manivela, máquinas de escrever mecânicas, melhoria nas estradas etc., esse cenário predominou no interior colonial até o final da Segunda Guerra Mundial. As pessoas ficam espantadas quando eu lembro que com 20 anos falei a primeira vez ao telefone,  um desses telefones de manivela hoje peça de museu. O instrumento de última geração para fazer cálculos foi a famosa “régua de cálculo”. Aos poucos tornaram-se comuns as máquinas de escrever elétricas. A grande explosão da automação, da eletrônica, da informática, a extensão das linhas de transmissão de eletricidade até as grotas mais isoladas, teve os eu começo em torno de 50 anos passados. E vale lembrar mais um dado. Até 1950 O Brasil contava com redondos 52.000.000 habitantes. Bem mais da metade dessa população  vivia no interior agrícola. Começou então a inverter-se a tendência e hoje dos mais de 200.000.000 de brasileiros, a população urbana predomina absolutamente sobre a rural.




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