Analisando as consequências desse “paradigma” a
Encíclica continua apontando para algumas mais profundas que estimulam os desvios
e aberrações do “progresso”. A tecnocracia tende a submeter à sua lógica a
economia e a política. A economia vale-se da tecnologia para ser sempre mais
produtiva e, principalmente, mais lucrativa. A
produtividade oferece, sem dúvida, vantagens inegáveis para não dizer indispensáveis
numa fase histórica em que a humanidade se multiplica em ritmo acelerado.
Portanto, o aumento de produção em si é condição para acompanhar as demandas
desse crescimento da população. Acontece, porém, que o paradigma que rege esse
processo termina por transformá-lo num instrumento de poder controlado por uma
minoria. Dessa forma seus tentáculos vão
permeando o tecido social desde a base até o topo onde se formulam os projetos
e as estratégias que destinam os resultados da produção tecnológica para perpetuar
o seu poder, controlando de como usufruir os seus benefícios. O poder e sua
perpetuação nas mesmas mãos torna-se um fim em si e o caminho mais garantido
para preserva-lo consiste em controlar a repartição dos bens produzidos. O
fim justificando os meios é, sem dúvida,
o resultado prático mais perverso dessa inversão de referências éticas ou na
sua pura e simples abolição. O relativismo ético e/ou moral termina por transformar as sociedades humanas em organizações nas
quais o “vale tudo” dá as cartas. Condena ao esquecimento e, por isso mesmo
torna inócuo o que em qualquer ser humana é, pela sua própria natureza a base do “humano no homem”, isto é, a
consciência do que é certo ou errado, do bem ou do mal e, do outro lado a
liberdade para decidir sobre o bem e o mal. O resultado é óbvio. Se o critério
do bem ou do mal é assumido como norte por uma um sistema em que o relativismo
ético pelo qual o fim justifica os
meios é norma, os indivíduos são privados também da liberdade de decidir ou não
seguir o que a consciência lhes diz. Ética sem liberdade de consciência não é
ética assim como liberdade sem ética não é liberdade. Vive-se no reino do vale
tudo, da competição sem freios, da tirania mais desumana e a fartura mais obscena
de um lado e, do outro a marginalização em massa, a degradação física,
psíquica, moral e espiritual, a morte pela fome de milhões de seres humanos,
principalmente crianças. O poder possibilitado pelo paradigma tecnocrático
prepara o caminho para tiranos na sua forma mais cruel sonegando ou até
confiscando o que há de mais elementar
para uma pessoa gozar um mínimo de dignidade, resultando em autênticos
genocídios. São testemunhas os mais de 4 milhões de ucranianos que morreram de
fome porque Stalin lhes confiscou as propriedades, as colheitas e os rebanhos.
Um número não menor de chineses tiveram o mesmo destino no período de Mau Tse
Tung na China e não esqueçamos as táticas de extermínio dos judeus no período
do Nacional Socialismo sob Hitler na Alemanha. São três exemplos emblemáticos
de genocídio de quase oito décadas passadas. Se olharmos, porém, os cenários
humanos que caracterizam o assim denominado terceiro mundo, com destaque para a
África, a situação permanece igual ou até pior. Um número indefinido de tiranos
rodeados dos seus lacaios concentram em suas contas no exterior e no estilo de
vida de nababos, pilhando o que conseguem do produto dos recursos dos seus
países. Seus súditos morrem aos milhões de fome, de falta de assistência
médica, de saneamento básico e outros bens as quais têm o sagrado direito pelo
simples fato de serem seres humanos. É difícil avaliar o tamanho de crime quando se impede
que as pessoas tenham condições as mais elementares para realizar o seu
“humano” que, em última análise, é a razão última de presença nesta terra.
“O paradigma tecnocrático
tende a exercer o seu domínio também
sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento
tecnológico em função do lucro, se prestar atenção a eventuais consequências
negativas para o ser humano”. Nalguns círculos
defende-se que a economia atual e a tecnologia resolverão todos os
problemas problemas ambientais, do mesmo modo se afirma , com linguagens não
acadêmicas, que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos
simplesmente com o crescimento do mercado. Não é uma questão de teorias
econômicas, que hoje talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua
instalação no desenvolvimento concreto da economia. Aqueles que não o afirmam
em palavras defendem-no com os fatos, quando não parece não preocupar-se com o
justo nível de proteção, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado
responsável do meio ambiente ou os direitos das gerações futuras. ( ... ) Não
temos suficiente consciência de quais sejam de quais sejam as raízes mais
profundas dos desequilíbrios atuais:
estes têm a ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do
crescimento tecnológico e econômico (Laudato si, 109)
Não é objetivo da Encíclica analisar em
profundidade as consequências políticas, econômicas, sociais, éticas e morais
que acompanham a adoção do paradigma tecnocrático que comanda a atual
civilização. A sua preocupação centra-se na preocupação pelo meio ambiente
maltratado até o irracional com a adoção
dele como eixo reitor do desenvolvimento. O meio ambiente é mais uma das suas
vítimas e quem sabe a mais fundamental e indispensável nessa dinâmica. Pede-se
de vista que ele, com a humanidade como um dos seus componentes ontológicos ou
se preferirmos, existencialmente nele
inserida, forma uma síntese de milhões de componentes, estruturada como um mega
sistema, no qual cada um em particular ocupa um lugar e desempenha uma função a
serviço do todo. No momento em que visão das coisas for perdida ou ignorada,
abre-se o caminho para uma avaliação da natureza equivocada pela sua própria
base. O tecnólogo imbuído dessa cosmovisão torna-se incapaz de enxergar o todo
e lida com as questões atinentes ao meio ambiente como se fossem peças isoladas
aleatórias e casualmente reunidas num conjunto que não tem nada em comum com
uma síntese no sentido rigoroso do conceito. E com isso nos encontramos de novo
frente à advertência de Teilhard de Chardin, já referida mais acima, apontando
para dupla face da tecnologia. Ela é o magnífico instrumento que faz possível o
maravilhoso progresso de que se orgulha
a nossa civilização. Como tal merece todo o nosso apoio. Sem a moderna
tecnologia a humanidade teria estagnado no tempo. De outro lado, a
especialização e a penetração cada mais funda, nos arcanos da natureza, trás
consigo o risco de se perder a visão da globalidade e com isso o real sentido
que o objeto escolhido para ser analisado. Dependendo da maneira como o
especialista o identifica, não passa por ex., de uma roda no plano da mecânica,
um órgão sob o ponto de vista da fisiologia, ou um composto de tais ou quais
elementos no plano químico. O resultado dessas compreensão da natureza por
muitos cientistas e a aplicação das suas descobertas, induzem a consequências
práticas importantes. Pouco resolve por ex., salvar da extinção uma espécie de
ave ou mamífero, sem tomar em consideração o meio natural em que prospera o a
parte que lhe cabe dentro do ecossistema que é o seu habita natural. O mesmo
vale para a proteção de vegetais de todas espécies, como as figueiras, as araucárias
e outras quando no seu entorno se
permite a deterioração ambiental pois, em última análise, essa é a condição por
prosperarem em circunstâncias naturais características, melhor, em ecossistemas
determinados. A Encíclica aponta para essa problemática com a advertência.
A cultura ecológica não se
pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que
vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas
naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente um pensamento, uma
política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que
oponham resistência que oponham resistência ao avanço do paradigma
tecnocrático. Caso contrário, até as melhores iniciativas ecologistas podem
acabar bloqueadas na mesma lógica globalizada. Buscar apenas um remédio técnico
para cada problema ambiental que aparece, é isolar as cosas que, na realidade,
estão integradas e esconder os problemas
verdadeiros e mais profundos do sistema mundial. (Laudato si, 111)
A pergunta que se coloca depois dessas
considerações todas e da advertência da Encíclica, é óbvia: há como enfrentar com sucesso esse paradigma
em que a tecnologia funciona como um instrumento de poder; existe uma
perspectiva real e factível de colocar a tecnologia no seu verdadeiro lugar
como ferramenta para turbinar o progresso, num paradigma em que os seus
produtos e resultados são destinados ao bem comum e não um instrumento de poder
nas mãos de uma minoria de tiranos egoístas a comandar a política, a economia,
as estratégias militares; será que ainda
dispomos de tempo hábil para livrar a humanidade do paradigma tecnocrático que a tiraniza e deixa
à margem ou à mercê dele quando se trata do acesso e uso e fruto das suas
conquistas?; será possível reverter o relativismo ético e/ou moral que distorce
e subverte a compreensão do humano no homem, ao justificar os meios, quais quer meios, pelo fim a que servem?; há
condições reais de devolver à consciência das pessoas e à liberdade de obedecer
ou não aos seus ditamos o papel de fonte dos valores que garantem às organizações
humanas os laços do relacionamento, ditado pela responsabilidade, o comprometimento e respeito
mútuo e, principalmente, pela solidariedade?.