REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 73


Olhando a história do homem como um todo e observando mais atentamente o momento atual percebe-se com mais ou menos evidência, que a resposta é positiva. Recorramos à metáfora do oceano como significando a história da humanidade. No começo do terceiro milênio predomina o mau tempo na superfície. Tempestades políticas, ideologias extremadas procurando aniquilar umas às outras, o poder econômico turbinado pela tecnologia em pleno aperfeiçoamento transformando o seu potencial e instrumento de poder, a grande mídia a serviço de uma civilização sem referenciais éticos, errática e preocupada em defender o que há de mais deplorável no homem. O verdadeiro humano no homem, entretanto, as profundezas do oceano da nossa metáfora, embora ignorado senão desprezado, continua calmo e sereno como há milhares de anos, continua a sua trajetória à espera de tempo melhor. Sob as cinzas deixadas pelos incêndios causados pela civilização, do estardalhaço, da cacofonia,  do mútuo devoramento dos seu protagonistas, continuam acesas as brasas do “outro mundo”, para nos valermos da outra metáfora mais acima. Apesar do furor da tempestade que nos castiga, nota-se no horizonte uma tênue faixa de claridade, que anuncia que o “mau tempo”, senão passar, pelo menos deixa esperança de uma relativa calmaria. A Encíclica  descreveu essa relativa calmaria.

Todavia é possível  voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orienta-la e colocá-la a serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De fato verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de pequenos agricultores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo um modelo não-consumista de vida, alegria e convivência. Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros, com o compromisso de ajudar a viver com mais dignidade e menor sofrimento. E ainda mais quando a busca criadora do belo e a sua contemplação conseguem superar o poder objectivador  numa espécie de salvação que acontece na beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade autêntica, que convida a uma nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase imperceptível, como a neblina que filtra por debaixo da porta fechada. Será uma promessa permanente que, apesar de tudo, desabrocha como uma obstinada resistência daquilo que é o autêntico. (Laudato si, 112)

Esse texto extraído da Encílica resume em poucas linhas, mais talvez nas entrelinhas, o tamanho e a extensão do “nó górdio” a ser desatado. Cortá-lo como o fez o general romano ou, em outras palavras rompê-lo, equivaleria a uma solução quixotesca diante mão fadada ao fracasso pois, a história é o resultado de uma dinâmica e um ritmo próprio que não admite uma ruptura ou uma mudança radical de rumo, sem cobrar por ela um preço que levará gerações para ser pago. Não se pode esquecer que a evolução dos paradigmas civilizatórios, quanto mais profundos e sólidos são, tanto mais tempo demandam para percorrer todas as suas etapas. Simplificando, o percurso das civilizações historicamente mais conhecidas, como a egípcia, a babilônica, a grega, a romana e outras,  começam com uma fase juvenil, uma fase de consolidação, uma fase adulta sólida. Na medida, porém,  em que o potencial de renovação interna se esgotava começaram a aparecer sinais de degenerescência que terminam com a imposição de um novo paradigma. O  elemento ou os elementos novos que levam ao começo de uma nova fase surgem de dentro do próprio paradigma que esgotou seu potencial, ou por fatores externos que venham a se impor sobre o declínio irreversível em que se debatem as civilizações em agonia. Não é aqui o lugar para um análise mais aprofundada de como se desenrola essa dinâmica que, de algum maneira, comanda a trajetória de grandes e pequenas civilizações. Foi baseado nesses critérios que a história foi dividida e antiga, medieval, moderna e contemporânea, pós moderna.

Nas reflexões que estamos desenvolvendo interessa de fato a possível transição do paradigma em vigor da tecnocracia como instrumento de poder com todas as sus consequências, para um outro em que a tecnologia serve como ferramenta de um progresso cujos resultados beneficiam de alguma forma a humanidade como um todo. A pergunta que se coloca é essa: percebem-se sinais que essa revolução é possível ou, quem sabe já se identificam iniciativas concretas que levam nessa direção? A resposta otimista encontra-se na Encíclica, o documento que orienta nossas reflexões. 

Além disso, as pessoas parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos fundamentais para um futuro feliz são outros. Apesar disso também não se imaginam renunciando às possibilidades  que oferece a tecnologia. (Laudadto si, 113)

Dois dados chamam a atenção nessa constatação da Encíclica. O primeiro percebe-se expresso ou subentendido na manifestação de um número sempre maior de pessoas na desconfiança e não raro no entendimento declarado que a técnica começa dar sinais de que é limitada. Por mais sofisticada e mais eficiente que seja o seu aperfeiçoamento e o seu potencial para suprir as demandas postas pela civilização pós moderna, vai-se impondo a convicção de que há um limite. E esse limite está implícito na própria natureza do paradigma que se vale da tecnologia como  instrumento de poder. Com os malefícios, distorções e perversidade dessa cosmovisão já nos ocupamos mais acima. Aqui importa apontar para uma lenta mudança de mentalidade que vai percebendo que o futuro da humanidade, a médio e longo prazo, já não pode apostar incondicionalmente apenas nos avanços da tecnologia. Essa preocupação tem a sua origem numa raiz muito mais profundo do que o esgotamento  do potencial inovador e renovador das ferramentas responsáveis indispensáveis para o bom andamento da dinâmica do progresso. Sempre mais pessoas isoladas assim como organizações das mais diversas finalidades se dão conta de que a realização plena do homem depende de um estilo de vida que lhe garante o mínimo para ser feliz. Técnica e tecnologia por si só não criam um cenário propício para que as pessoas sintam, vivam e degustem o “humano” – “das Menschliche”, razão última do seu existir. A história da humanidade resume-se na eterna busca da realização pessoal e coletiva e assim cumprir a missão que lhe foi confiada na sinfonia da natureza. Nessa peregrinação a evolução tecnológica, as organizações sociais e políticas, as formas  econômicas que que se sucederam, as religiões que se consolidaram, as formas de intercomunicação entre as pessoas e os grupos, as manifestações de arte, a vivência do belo, não passam de instrumentos, de ferramentas para alcançar o topo da realização do homem. Parece que a metáfora de Nietzsche da corda estendida sobre o abismo seja mais ilustrativa. Pelo fato de o homem ser dotado de liberdade de escolha, as opções equivocadas, distorcidas, interesseiras, que explicam as guerras, desastres naturais e por ai vai, fazem balançar, às vezes perigosamente, a corda. A maior façanha da humanidade até este momento consiste em não se ter precipitado no abismo. Voltando à metáfora. A corda estendida sobre o abismo equivale ao “humano”  que serve de guia para o cumprimento da missão que se resume na sua realização plena com a chegada à outra margem do abismo. Nesta perspectiva as turbulências que marcaram os diversos períodos da história não são fenômenos episódicos e/ou aleatórios, mas as consequências do mau uso da liberdade dando em escolhas que tumultuaram o fluxo tranquilo ditado pela natureza humana.



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