Olhando a história do homem como um todo e
observando mais atentamente o momento atual percebe-se com mais ou menos
evidência, que a resposta é positiva. Recorramos à metáfora do oceano como
significando a história da humanidade. No começo do terceiro milênio predomina
o mau tempo na superfície. Tempestades políticas, ideologias extremadas
procurando aniquilar umas às outras, o poder econômico turbinado pela
tecnologia em pleno aperfeiçoamento transformando o seu potencial e instrumento
de poder, a grande mídia a serviço de uma civilização sem referenciais éticos,
errática e preocupada em defender o que há de mais deplorável no homem. O
verdadeiro humano no homem, entretanto, as profundezas do oceano da nossa
metáfora, embora ignorado senão desprezado, continua calmo e sereno como há
milhares de anos, continua a sua trajetória à espera de tempo melhor. Sob as
cinzas deixadas pelos incêndios causados pela civilização, do estardalhaço, da
cacofonia, do mútuo devoramento dos seu
protagonistas, continuam acesas as brasas do “outro mundo”, para nos valermos
da outra metáfora mais acima. Apesar do furor da tempestade que nos castiga,
nota-se no horizonte uma tênue faixa de claridade, que anuncia que o “mau
tempo”, senão passar, pelo menos deixa esperança de uma relativa calmaria. A
Encíclica descreveu essa relativa
calmaria.
Todavia é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade
humana é capaz de limitar a técnica, orienta-la e colocá-la a serviço doutro
tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral. De
fato verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por
exemplo, quando comunidades de pequenos agricultores optam por sistemas de
produção menos poluentes, defendendo um modelo não-consumista de vida, alegria
e convivência. Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente resolver os
problemas concretos dos outros, com o compromisso de ajudar a viver com mais
dignidade e menor sofrimento. E ainda mais quando a busca criadora do belo e a
sua contemplação conseguem superar o poder objectivador numa espécie de salvação que acontece na
beleza e na pessoa que a contempla. A humanidade autêntica, que convida a uma
nova síntese, parece habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase
imperceptível, como a neblina que filtra por debaixo da porta fechada. Será uma
promessa permanente que, apesar de tudo, desabrocha como uma obstinada
resistência daquilo que é o autêntico. (Laudato si, 112)
Esse texto extraído da Encílica resume em poucas
linhas, mais talvez nas entrelinhas, o tamanho e a extensão do “nó górdio” a
ser desatado. Cortá-lo como o fez o general romano ou, em outras palavras
rompê-lo, equivaleria a uma solução quixotesca diante mão fadada ao fracasso
pois, a história é o resultado de uma dinâmica e um ritmo próprio que não
admite uma ruptura ou uma mudança radical de rumo, sem cobrar por ela um preço que
levará gerações para ser pago. Não se pode esquecer que a evolução dos
paradigmas civilizatórios, quanto mais profundos e sólidos são, tanto mais
tempo demandam para percorrer todas as suas etapas. Simplificando, o percurso
das civilizações historicamente mais conhecidas, como a egípcia, a babilônica,
a grega, a romana e outras, começam com
uma fase juvenil, uma fase de consolidação, uma fase adulta sólida. Na medida,
porém, em que o potencial de renovação
interna se esgotava começaram a aparecer sinais de degenerescência que terminam
com a imposição de um novo paradigma. O
elemento ou os elementos novos que levam ao começo de uma nova fase
surgem de dentro do próprio paradigma que esgotou seu potencial, ou por fatores
externos que venham a se impor sobre o declínio irreversível em que se debatem
as civilizações em agonia. Não é aqui o lugar para um análise mais aprofundada
de como se desenrola essa dinâmica que, de algum maneira, comanda a trajetória
de grandes e pequenas civilizações. Foi baseado nesses critérios que a história
foi dividida e antiga, medieval, moderna e contemporânea, pós moderna.
Nas reflexões que estamos desenvolvendo interessa
de fato a possível transição do paradigma em vigor da tecnocracia como
instrumento de poder com todas as sus consequências, para um outro em que a
tecnologia serve como ferramenta de um progresso cujos resultados beneficiam de
alguma forma a humanidade como um todo. A pergunta que se coloca é essa:
percebem-se sinais que essa revolução é possível ou, quem sabe já se
identificam iniciativas concretas que levam nessa direção? A resposta otimista
encontra-se na Encíclica, o documento que orienta nossas reflexões.
Além disso, as pessoas
parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã
melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades técnicas. Tomam
consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao
progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos
fundamentais para um futuro feliz são outros. Apesar disso também não se
imaginam renunciando às possibilidades
que oferece a tecnologia. (Laudadto si, 113)
Dois dados chamam a atenção nessa constatação da
Encíclica. O primeiro percebe-se expresso ou subentendido na manifestação de um
número sempre maior de pessoas na desconfiança e não raro no entendimento declarado
que a técnica começa dar sinais de que é limitada. Por mais sofisticada e mais
eficiente que seja o seu aperfeiçoamento e o seu potencial para suprir as
demandas postas pela civilização pós moderna, vai-se impondo a convicção de que
há um limite. E esse limite está implícito na própria natureza do paradigma que
se vale da tecnologia como instrumento
de poder. Com os malefícios, distorções e perversidade dessa cosmovisão já nos
ocupamos mais acima. Aqui importa apontar para uma lenta mudança de mentalidade
que vai percebendo que o futuro da humanidade, a médio e longo prazo, já não
pode apostar incondicionalmente apenas nos avanços da tecnologia. Essa
preocupação tem a sua origem numa raiz muito mais profundo do que o esgotamento
do potencial inovador e renovador das
ferramentas responsáveis indispensáveis para o bom andamento da dinâmica do
progresso. Sempre mais pessoas isoladas assim como organizações das mais
diversas finalidades se dão conta de que a realização plena do homem depende de
um estilo de vida que lhe garante o mínimo para ser feliz. Técnica e tecnologia
por si só não criam um cenário propício para que as pessoas sintam, vivam e
degustem o “humano” – “das Menschliche”, razão última do seu existir. A
história da humanidade resume-se na eterna busca da realização pessoal e
coletiva e assim cumprir a missão que lhe foi confiada na sinfonia da natureza.
Nessa peregrinação a evolução tecnológica, as organizações sociais e políticas,
as formas econômicas que que se
sucederam, as religiões que se consolidaram, as formas de intercomunicação
entre as pessoas e os grupos, as manifestações de arte, a vivência do belo, não
passam de instrumentos, de ferramentas para alcançar o topo da realização do
homem. Parece que a metáfora de Nietzsche da corda estendida sobre o abismo
seja mais ilustrativa. Pelo fato de o homem ser dotado de liberdade de escolha,
as opções equivocadas, distorcidas, interesseiras, que explicam as guerras,
desastres naturais e por ai vai, fazem balançar, às vezes perigosamente, a corda.
A maior façanha da humanidade até este momento consiste em não se ter
precipitado no abismo. Voltando à metáfora. A corda estendida sobre o abismo
equivale ao “humano” que serve de guia
para o cumprimento da missão que se resume na sua realização plena com a chegada
à outra margem do abismo. Nesta perspectiva as turbulências que marcaram os
diversos períodos da história não são fenômenos episódicos e/ou aleatórios, mas
as consequências do mau uso da liberdade dando em escolhas que tumultuaram o
fluxo tranquilo ditado pela natureza humana.