Archive for novembro 2017

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 32 -

Degradação da qualidade de vida
degradação social

As reflexões do Papa voltam-se agora para a repercussão da degradação ambiental sobre a qualidade de vida do homem como ser social, ser cultural, um ser com demandas existenciais que vão além das biológicas. A íntima relação entre corpo e espírito faz com que os dois se estimulem ou desestimulem mutuamente.  A vida num ambiente degradado impede uma vida social, cultura e espiritual plena. “Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver feliz, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo atual do desenvolvimento e cultura do descarte sobre a vida das pessoas”. (Laudato se, 43).

O cuidado com o meio ambiente não é uma questão que se esgota em si mesma, isto é, preservando o que sobreviveu da agressão e recuperando o que foi danificado. É preciso não esquecer a destinação última, a própria razão de ser dessa cruzada. Relembramos que a Encíclica do Papa define a Natureza como “a nossa casa”, “a casa da humanidade”, a “morada do homem”. Esse recurso conceitual é de uma profundidade, dum alcance de dimensões planetárias. Começa por aí que o “morar numa casa” significa pertencer a uma família. A casa não tem comparação com um abrigo ou um alojamento compartilhado por pessoas que mal se conhecem ou de fato estranhas. Não é um lugar que apenas atende à necessidade de um abrigo, um lugar seguro para descansar, bater um papo sem compromisso, ou a ocasião  para começar uma amizade.

Vista nessa perspectiva a questão ambiental assume a sua dimensão mais preocupante. Enquanto a degradação da natureza é avaliada sob o prisma dos seus efeitos paisagísticos, econômicos, políticos estratégicos ou outros, a questão implica em decisões, ações e recursos em cada um desses níveis. Mas no momento em que a natureza é vista, avaliada e pesada como “a nossa casa”, “a casa do vizinho”, “a casa da humanidade”, “a casa das gerações futuras”, na qual a espécie humana irá prosperar ou sucumbir, entramos no terreno da ética, ou se  preferirmos, no terreno da moral. Valorizada ou não nessa perspectiva ela será “uma casa” que oferece todos os requisitos para prover  as necessidades existenciais de das pessoas ou impedir-lhe o acesso a um mínimo de dignidade. Não se trata do simples bem estar material como a alimentação, o abrigo, a proteção, perspectivas para a perpetuação da espécie e/ou a prosperidade. O homem tem demandas que vão muito além desse plano. Além de uma mera espécie biológica, ele é um ser social, movido por  sentimentos, emoções e paixões, desafiado a dar respostas às indagações que envolvem o verdadeiramente humano: “Donde viemos, porque estamos aqui e par onde vamos”. As respostas  só são viáveis na sua plenitude se “a casa” em que moramos oferecer condições mínimas de espaço, conforto, salubridade, recursos materiais, tranquilidade e demais requisitos que tornam “uma casa” habitável, quando a casa é “Heim-Lar” e oferece um “zu Hause - um estar em casa”, como reza a tradição alemã.  E afirmamos que não é um privilégio senão um direito natural de qualquer pessoa. Ainda na linha do metafórico. Não queremos insinuar que todas as “casas” sejam exatamente iguais em nível de conforto para preencherem os requisitos de moradias humanas e não casinhas de João de Barro, ninhos de sabiá ou tico-tico. Seria postular o nivelamento em algum patamar aritmeticamente dimensionado. O homem e suas sociedades e culturas  são plurais na sua maneira de ser, nas sua formas e manifestações. É a pluralidade na unidade. Significa que qualquer ser humano tem demandas comuns com os demais, como já apontamos mais de uma vez no decorrer destas reflexões. Mas o que também já ficou claro que as necessidades que são comuns a todos – “a unidade” – são supridas de muitas maneiras diferentes, pela  “pluralidade”. A pluralidade encontra suas explicação na índole peculiar de cada pessoa individual, no nível de instrução e formação, nas oportunidades, no tipo de cultura e civilização em que vive. Sendo assim, a pluralidade das formas de ser dos indivíduos, das culturas e sociedades têm na própria unidade da espécie humana, que é una pela sua natureza, mas plural na sua forma de manifestar-se em circunstâncias concretas. Por essa razão o nivelamento linear, seja em que nível for, não passa de uma utopia, por sua vez irrealizável pela sua própria natureza. Esses fato pode ser observado no quotidiano das pessoas, famílias e sociedades. Pessoas há que por índole, educação ou por qualquer outro motivo, ou pela combinação de todos, contentam-se  com pouco e com o pouco sentem-se felizes e realizados. São os despojados de bens materiais e em compensação podem ser ricos em bens espirituais. Uma casinha aconchegante, uma família bem constituída, uma mesa farta sem sofisticação, um fogão para se aquecer, um ambiente de harmonia, compreensão e respeito, é o que basta. Outros são mais exigentes. Só se  sentem felizes, realizados e satisfeitos numa casa ampla, bem projetada, construída com materiais de primeira classe, num local especial, um carro do ano, uma gorda poupança no banco, uma mesa apurada, bebidas selecionadas, relações com um nível social mais sofisticado. E, há-os também que nunca estão satisfeitos. Apartamentos de 300 metros quadrados, mansões de 500, mobília sob medida, traje de grife internacional, carro de luxo importado, milhões em investimentos e sempre em busca de mais. Ninguém está autorizado a condenar ninguém contanto que a  origem  dos bens seja  legítima. A pluralidade das manifestações é da própria essência da unidade da natureza humana.

O problema se põe quando a pluralidade  degenera em exclusão  ou marginalização, o que dá no mesmo. Talvez o maior fator de exclusão consiste exatamente na negação aos recursos oferecidos pela natureza e indispensáveis para atender “o humano” no homem. É nesse plano que a questão ambiental assume as proporções de um desafio ético. Na Encíclica Laudo si, o Papa Francisco lembra com ênfase essa face do problema.

O ambiente humano e o ambiente natural degrada-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social. De facto a deterioração do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial aas populações  mais frágeis do planeta. Tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres. (Laudato se, p. 48)


Volto a insistir que a avaliação da natureza e todo o tipo de políticas e ações com a finalidade de coibir a agressão a ela, ou à sua proteção deveriam visar o bem estar das pessoas. Nunca se insiste demais: a natureza é um bem comum; um bem comum porque dela vêm os recursos dos quais depende o bem estar do homem ou o condenam a uma existência precária; um bem comum, portanto, ao qual a que qualquer ser humano tem o direito de ter acesso. As demais motivações, sejam elas políticas, econômicas, estratégicas, ou de qualquer outra natureza, são legítimas quando, em última análise, forem determinadas pelo respeito ao bem comum. A negação dessa condição constitui-se numa das  raízes  determinantes da desigualdade sociais.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 31 -

Proteção à Natureza

Depois de nos termos alongado numa análise que teve como finalidade chamar a atenção para o bem estar material e espiritual da humanidade, chegou o momento de refletir sobre possibilidades e ações de proteção efetiva da natureza, da “nossa casa” conforme a Encíclica do Papa Francisco. De passagem já tocamos várias vezes no assunto. A pergunta resume-se no seguinte: o que pode ser feito de concreto depois que a agressão chegou aos extremos em que nos encontramos? Evidentemente não tem mais como recuperar as espécies extintas. Está nas nossas mãos, entretanto, evitar a perda daquelas que correm sério risco e cuidar que as outras não cheguem ao limite da resistência. Trata-se de um desafio de bom tamanho para não dizer grandes proporções. Encontramo-nos na situação que a agressão à natureza chegou a um nível em que “desperta a dor perante a destruição de suas feições naturais, e o desejo de as conservar, senão no seu conjunto, ao menos em alguns lugares e nos traços mais característicos”. (Rambo, 1942, p. 338). Essa sentença parece resumir o que pode e deve ser feito. Mas o tempo urge e medidas eficazes não podem esperar ou serem empurradas para as “calendas de março” ou para um futuro a perder de vista. À primeira vista, o caminho a ser percorrido é óbvio. Resume-se em salvar as espécies em risco de extinção, preservar os habitats  e ecossistemas naturais, empenhar-se em recuperar o que foi danificado e permitir que ecossistemas se restaurem em áreas degradadas. Vamos passo a passo.

O salvamento de espécies em sério risco  de extinção, está intimamente condicionado pelo habitat ou ecossistema natural do qual dependem. Sendo assim torna-se urgente proteger essas áreas do avanço predatório da atividade humana. Nesses verdadeiros santuários a presença do homem deve ser reduzida ao mínimo para não interferir na harmonia do ambiente e assim não perturbar a rotina do acontecer da vida em toda a sua riqueza e complexidade. Na prática relembramos os “hot spots” – “os pontos quentes” de Edward Wilson”, analisados mais acima. Na condição de autênticos santuários da natureza exigem serem tratados como tais, com a reverência, o respeito e a devoção do sagrado. Sob hipótese alguma podem ser abertos à visitação de um público indiscriminado, o que demandaria uma infraestrutura que perturbaria  o  ir e vir do ritmo entregue aos  preceitos da natureza. Em princípio a visita a esses “pontos quentes” deveria permitir-se apenas a pesquisadores devidamente credenciados. De mais a mais a inviolabilidade desses ecossistemas, desses santuários da natureza, só poderia ser confiada a guardas florestais devidamente treinados. Além de guardá-los intactos, bem vindo seria ampliação de suas áreas entregue à própria capacidade de recuperação. A utilidade dessa política de preservação é óbvia. O acontecer da natureza pode ser observado e entendido no seu laboratório original.

 A criação de parques e reservas naturais complementam os cuidados pela preservação. Os parques  são áreas maiores características, em linhas gerais não degradas pela presença do homem, de tamanho considerável – mil ou mais quilômetros quadrados, - postas sob a jurisdição pública, nacional ou regional. Diferentes dos “pontos quentes”  são postos à disposição do público para “o lazer e o recreio do povo”, como foi definido pela lei que criou os parques nos Estados Unidos. Pela sua própria natureza os parques e reservas naturais coincidem de um lado com a finalidade dos “pontos quentes” e do outro divergem. Coincidem pelo objetivo preservacionista. Tanto os parques quanto as reservas destinam-se à manutenção da natureza em seu estado original. E manutenção no seu estado original não significa apenas não explorar os recursos naturais, proscrever a caça e pesca. Significa também não permitir sons e ruídos que perturbam o sossego dos animais e pássaros que tem o seu hábitat nos parques. Por isso espetáculos, exibições, shows e encontros barulhentos  não podem ser permitidos. O sobrevoo de aviões só em grandes altitudes. Todas essas precauções tem como finalidade uma interferência mínima na sossego e harmonia dos parques e reservas.

Os parques e reservas diferem dos “pontos quentes” por se destinarem, além da preservação, ao recreio e lazer do povo. A legislação americana que disciplina o acesso aos parques prevê que ofereçam condições para que as famílias simples  tenham condições de, por uma ou duas semanas, usufruir o descanso e lazer em contato direto com a natureza virgem. Para atender a esse objetivo as instalações,  alojamentos, restaurantes, etc. são rigorosamente frugais, Hotéis de luxo, cassinos, boates, locais de festas, são impensáveis.

Pelo fato de reunirem numa só finalidade a preservação da natureza e o recreio do povo, os parques são obrigados a oferecer um mínimo de infraestrutura, como vias de circulação, alojamentos, restaurantes, locais de confraternização. Portanto, os parques devem ser lugares para os que passam a maior parte do tempo  em ambientes onde de dia e de noite, são obrigados a respirar monóxido de carbono e sentir o odor do asfalto. terem condições de se reencontrarem consigo mesmos  na harmonia da natureza.

De outra parte oferecem excelentes condições para fazerem o papel de escolas e universidades ao ar livre. Crianças, jovens, adultos e idosos têm muito que aprender no contato direto com a mestra natureza. Sendo assim, é de suma importância que, principalmente, em períodos de maior frequência, ambientalistas em férias ou não, professores, guardas florestais, organizem sessões educativas sobre a história natural do parque. Sob a rubrica: história natural do parque compreende-se sua história e características geológicas, sua fisionomia geográfica e, de modo especial, sua fauna e flora. Além disso os guias tem que estar preparados para informar os visitantes sobre tudo que pode ser observado nas trilhas que percorrem. Num parque de verdade não se toleram hotéis e restaurantes de luxo, cassinos, salões de eventos, pistas de motocross etc. Não entram em questão aeroportos nas imediações e muito menos no perímetro dos parques. Quem não consegue prescindir dessas benesses que fique onde estão disponíveis de qualquer forma.

Enfim, o parque só então será um verdadeiro ambiente de “recreio e lazer”, quando permitir que os visitantes se reencontrem com um cenário  próximo daquele alimentou e abrigou seus ancestrais há centenas e milhares de anos passados. Só então faz sentido se, por algumas horas ou dias consegue fazer perceber as pessoas a agradável lembrança e a nostalgia de um paraíso perdido mas não esquecido. Os parques nacionais, portanto,  “são territórios maiores em que a natureza original permanece intata, aumentando-se-lhes os atrativos com o acréscimo discreto de elementos consoantes, quando for conveniente”. (Rambo, 1942, p. 341). Depois da viagem em 1956 aos Estados Unidos e visitados os grandes parques nacionais daquele país e neles inspirado, o Pe. Rambo consolidou o conceito do que deveria ser um verdadeiro parque.

O parque deve estar à serviço da proteção da natureza e do recreio e lazer do povo. O rico que aparecer deve ser obrigado a viver com a mesma simplicidade que o operário e o colono. As pessoas que não conseguem dispensar o hotel caro, o rádio, a televisão, a dança e o jogo, fiquem onde tudo isso está disponível de qualquer forma. Em nenhum parque jamais escutei um rádio berrando, nem observei um aparelho de televisão, nem percebi música e dança, nem presenciei chás dançantes. De maneira alguma quero afirmar que o americano médio é melhor que nós. Uma coisa é certa. Ele tem mais compreensão, mais decência e mais respeito perante a beleza e tranquilidade da natureza criada por Deus. (Rambo, 2.015, p. ?)

No rol da proteção e preservação permanente constam ainda os assim chamados “monumentos naturais”. Como tais entram em questão árvores de grande beleza e tamanho, como são as figueiras nativas. Na Europa aldeias e cidades preservam com devoção carvalhos milenares, às vezes a custos elevados. Na Itália os pinheiros romanos emprestam à paisagem um que de nostalgia histórica. As gigantescas e várias vezes milenares sequoias dos parques americanos são conhecidas pelo mundo afora. Um exemplar de extraordinária beleza e tamanho de pinheiro da Califórnia, conhecido como “red wood” – “madeira vermelha” – é religiosamente preservado na cidade de Palo Alto – “cidade da árvore alta”. O culto à árvores chegou ao ponto de cidades tornarem carvalhos donos legais de ruas, de papel passado e tudo o mais.

Entre os monumentos naturais que merecem destaque enumeram-se  acidentes geográficos e formações geológicas de perfil estético e beleza especial além do interesse científico. Espalhados pelo mundo afora há centenas e milhares deles. Lembrando apenas alguns: os segmentos mais característicos das cadeia de montanhas; montanhas familiares a qualquer pessoa com mínimo de instrução: o Everest, o Aconcágua, o Osorno, o Vila Rica, O Materhorn, o Fuji, o Kilimanjarro, o Vesúvio, o Etna, o Stromboli, só para mencionar alguns; formações geológicas de impacto como o Grand Canyon, o Taimbezinho, o Fortaleza, os morros de tabuleiro no sudoeste do Rio Grande do Sul, o Sapucaia, o Itacolumi, o Botucarai e por ai vai.

Tenho a impressão  que, com as reflexões que vimos fazendo até aqui, ficou claro o que se entende por proteção à natureza e suas modalidades quando postas em prática. A menor ação que for feita nesse sentido, contribui par saldar a dívida que a humanidade contraiu pelo exagero na exploração dos recursos naturais e pela agressão pura e simples perpetrada contra “a nossa casa”. De outro lado faz parte também da responsabilidade que a atual geração tem para com as futuras. Concluímos as reflexões sobre esse capítulo da Encíclica Laudato si, do Papa Francisco. com a conclusão final do Pe. Rambo no seu livro A Fisionomia do Rio Grande do Sul.

Ali, nos mirantes mais altos do Rio Grande do Sul, com as forças milenares da erosão a trabalhar diante dos olhos, com os temerosos abismos dos Canyons aos pés, com o pinhal, a mata branca e o campo, tão rio-grandenses, em derredor, com o oceano no horizonte, as gerações do futuro nos hão de agradecer a piedade e reverência, com que conservamos as mais grandiosas paisagens da nossa terra. (Rambo, 1942, p. 342)



Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 30 -

Depois de descrever as diversas modalidades do “belo ameno” que se manifesta na harmonia das formas características de cada paisagem, os sentimentos e as emoções que desperta, leva a uma contemplação da natureza que resulta em tranquilidade, harmonia, satisfação, e repouso. Enfim, a harmonia das paisagens reflete-se na alma devolvendo-lhe a sensação de paz e equilíbrio. Já o “belo grandioso” impacta sobre a alma assustando-a ao mesmo tempo que a encanta. O encanto  do susto num misto de arrebatamento estético revolve as entranhas mais profundas do ser, do mistério, do acontecer na natureza. Esses componentes aparentemente contraditórios levam a perceber o fascínio e, ao mesmo tempo a grandiosidade e o assustador de paisagens e dos fenômenos naturais.

Passando da teorização para a realidade concreta, os fenômenos naturais capazes de  despertar  a sensação do belo grandioso ocorrem nas mais diversas modalidades: em tempestades, montanhas, cataratas, grandes florestas, oceanos, abismos, inundações, terremotos, erupções vulcânicas, tsunamis ... O elemento assustador associa-se em muitas vezes à grandiosidade do espetáculo, resultando num misto de temor e  fascínio. É isso que faz uma pessoa contemplar o movimento do oceano; observar a aproximação de uma tempestade; um abismo insondável, a erupção de um vulcão. “Nunca o ser humano tanto se aproxima de si mesmo e do mundo, do que quando se deixa arrastar pelo imenso mar-oceano do belo” (Rambo, 1994, p. 222). Maria Rohde, descreveu um cenário desses, tendo novamente o rio Uruguai com centro.

Ao nosso lado estendia-se por toda a largura do rio e na frente sua gigantesca superfície avançando até onde a vista alcançava. Estávamos acomodados no fundo da canoa e deixamos que o poderoso espetáculo nos impressionasse, As crianças que nunca tinham visto algo maior que o Taquari, estavam fora de si diante da grandeza do caudal. Mil coisas ocupavam sua  atenção.  Ora eram os peixes que davam saltos ousados perto da canoa, ora era a  vegetação romântica e selvagem nos barrancos, ora árvores desconhecidas e, somando a tudo, a impressão avassaladora do conjunto  fez com que nessa primeira viagem pelo Uruguai, não se esquecessem do menor detalhe. Só enxergavam o grandioso todo desse gigantesco panorama da floresta virgem. Até onde alcançava a vista, sucediam-se as ondas que subiam e desciam, formadas pela floresta sempre verde e, no meio dela avançava, tranquila e alegre, a lâmina prateada do grande rio. (Rohde, 1950, p. 49).

Mais acima chamamos à atenção para alguns dos espetáculos da natureza capazes de despertar o estado de espírito do Belo grandioso. Em determinados casos o grandioso vem associado ao assustador. Entre esses espetáculos da natureza enumera-se terremotos, erupções vulcânicas, inundações de dimensões catastróficas ... Entre esses exemplos a maioria é episódica ou restrita a algumas circunstâncias geográficas e/ou geológicas regionais ou locais. Sendo assim um número limitado de observadores tem o privilégio de vivenciar o seu potencial estético, grandioso ou assustador. Entre eles o mais universal são as tempestades. São tão comuns quanto populares por ocorrem em muitas e vastas regiões da terra com circunstâncias climáticas favoráveis. Sob a denominação de tempestade catalogam-se diversas categorias de acordo com seu potencial estético e assustador. No topo da lista estão os tsunamis e os furacões de alto potencial de destruição. Nas trovoadas  tão comuns aqui no sul do Brasil nota-se um certo equilíbrio entre o belo grandioso e o assustador. Vale a pena reproduzir como exemplo a descrição de um temporal de verão sobre Porto Alegre, registrada pelo Pe. Rambo no seu diário de 3 de julho de 1946.

Sobre os montes do outro lado do rio subia negra parede de nuvens. Enquanto eu atravessava a mata um trovão surdo e prolongado ecoou sobre a planície. ( ... ) Retirei-me do mato e sentei-me no alpendre da velha casa de madeira, Por cima do rio que escurecia, rolavam vapores de nuvens branco-cinzentas. Nas alturas do céu cruzava um lista densa de neblina, que com boa velocidade ascendia mais e mais. Adiante, lá no fundo, armavam-se em conjuntos  irregulares, montanhas gigantescas de nuvens, que da cidade avançavam em direção à laguna. E no meio desse jogo furioso de bruma e nuvens, de luz e iminente crepúsculo, uivava sem cessar o Teu trovão. Qual flagelo de chamas coriscavam os Teus raios de uma ponta a outra da fronteira dessa trovoada, baixando tremeluzentes e cintilantes, através da cortina da chuva, em direção à terra. Um estrondo e um rugido contínuo, entremeado por estampidos de trovões que sacudiam a natureza inteira, acompanha a passagem furibunda do Teu carro tonitruante pelas montanhas do matagal de nuvens. A região toda, céu e terra, está imersa em ameaçadora treva, luzes faiscantes e raivosos estalos de trovão. Algo barbaramente grandioso e misterioso falava de dentro da arena, em que se desenrolava a Natureza. Mais e mais a escuridão envolvia a paisagem, ( ... ). Eis que uma leve viração do vento começa a agitar o arvoredo! Seguiu-se um vento morno e forte, fazendo com que as copas dos eucaliptos se arqueassem e inclinassem  e as primeiras gotas estalaram sobre a folhagem e o telhado. Por cima estourou o estrondo de um trovão, que fez tremer a cassa toda. E começou a chuva, um aguaceiro pesado, regional, fustigado pelo vento que, em questão de minutos converteu tudo em correntes, despejando água e mais água, como se fossem eternas e inesgotáveis as Tuas nuvens. De quando em vez, uma breve pausa. Logo mais um novo relâmpago, seguido de trovão, fazia as Tuas quedas de água esbravejarem. (Rambo, 1994, p. 261-262).

Depois de descrito o fenômeno o autor faz uma reflexão na qual procura entender o que age por trás deste e de outro fenômenos com potencial de impacto semelhante sobre o existencial mais íntimo do observador. Para começo de conversa é preciso não se esquecer, que o Pe. Rambo parte da premissa de que a Natureza é obra da Criação. Atrás do ser e acontecer dela age um Criador e ponto final. A estética, a harmonia e o belo que se observam e vivenciam não passam de infinitas formas e modalidades da Natureza, refletindo a beleza e a harmonia do protótipo Divino. Em outras palavras a Natureza é O livro aberto da Revelação. Esse caminho de que se vale para revelar-se aos homens, inspirou São Paulo ao escrever os versículos 19 e 20, do capítulo primeiro da Carta aos Romanos: “Porque o que se pode conhecer de Deus lhe é manifesto a eles: porque Deus lho manifestou. Na verdade, as perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis depois da criação do mundo pela consideração das obras que foram feitas: e assim também seu poder eterno e sua divindade, de tal sorte que são eles inescusáveis”.

O notável nesses versículos é a definição de Revelação Natural sem a intermediação de uma tradição específica, viciada  pelos cacoetes inevitáveis  das diferentes cosmovisões  histórico-culturais, como por ex., a judaico-cristã. Em outras palavras. São Paulo não se meteu a ensinar como Deus criou a natureza. Apenas ensina que Seus atributos permeiam e iluminam a natureza como um todo e os seres vivos em particular, de maneira que qualquer pessoa de espírito desarmado é capaz de perceber. E se Deus se manifesta nas criaturas a lógica manda conclui que foi Ele que de alguma forma as criou. A criação direta e imediata de cada espécie em particular como ensina o fixismo foi descartada pela ciência. Superadas foram também as hipóteses que defendem a intervenção direta de Deus em momentos da história da vida em que a ciência e a razão não tem respostas convincentes: a explicação pelo “Deus ex machina” ou pelo “Design inteligente”. Para São Paulo a criação é um fato. Como se deu esse acontecimento, se foi uma única vez quando o “estofo” do universo” se fez realidade no começo de tudo, ou em mais momentos da história do mundo e da vida, é tarefa da Filosofia e da Ciência. Cabe aos dois aliarem-se num esforço comum e solidário, esclarecer essas questões. Qualquer resposta que apresentarem não mexe no essencial: A Natureza é obra do Criador  e o Criador se manifesta através dela.

Todo o acúmulo do saber é inútil, a não ser que, a semelhança da árvore, enterre suas raízes no solo materno do Teu mistério cósmico, lá onde os Teus mananciais jorram para dentro da vida eterna. Toda a Ciência acaba na soberba Faustina, se não navegar pela corrente do Eros controlado, buscando o que é verdadeiro, bom e belo e abraçando todas as  criaturas com amor nupcial. A pesquisa e a ciência só enriquecem o homem, quando lá embaixo, nas últimas radículas do ser, se entrelaçam e absorvem sua seiva vital de mananciais do Ser como tal. (Rambo, 1994, p. 308).

Se a natureza em si, pelas suas formas, paisagens, cenários e elementos individualizados, é capaz de  estimular a sensação do belo em todas as intensidades, a presença do homem e suas obras, acrescem tonalidades singulares ao belo natural. É difícil localizar uma território geográfico maior onde a presença do homem não conta séculos e milênios. Por tudo que já vimos refletindo até aqui, chega a ser redundante chamar a atenção que a saga das civilizações mascarou profundamente o chão em que se consolidaram. Essa simbiose entre as civilizações e seu chão, resulta num belo todo particular.  Não só particular mas em todas  as sua intensidades. Avaliado sob esse viés, os vestígios e as obras que marcam a presença do homem na história falam uma eloquente linguagem. A sensação do belo que despertam vão do lírico e romântico, ao grandioso, misterioso e assustador. Os exemplos são muitos. Podem ser admirados nos lugares mais impossíveis como na ilha da Páscoa isolada no Pacífico Sul. Não é só a imponência daqueles personagens esculpidos em monoblocos, pesando toneladas. Contemplando essas esculturas a  imaginação começa a viajar em busca da origem e identidade do povo daquela ilha perdida nos confins do oceano. Donde e como chegou até lá, de que se alimentavam, qual o estágio de tecnologia de que dispunham para esculpir aqueles blocos de rocha maciça. Aquelas  figuras em pedra enfileiradas no descampado pareciam em atitude do último adeus aos seus artífices. Aquelas estátuas olhando para o oceano a perder-se no horizonte, falavam mais alto do que qualquer contador de histórias ou documentos escritos. Por séculos, quem sabe, por milênios, a ilha foi a pátria de uma estirpe de homens e mulheres de um respeitável nível cultural. O imaginário, o mítico, o místico fala uma linguagem carregada de significados através da fisionomia impassível daqueles gigantes talhados em rochas vulcânicas.

E o que dizer dos templos, pirâmides e esfinge do Egito? Principalmente as pirâmides e a esfinge sentinela daqueles monumentos que há milênios dominam a paisagem da entrada do grande deserto. Também eles dão testemunho de um povo que dominava a arte de calcular, a astronomia, técnicas avançadas de extração de pedras de grande volume e peso, seu transporte por quilômetros até ao local da construção e sua elevação a dezenas de meros de altura. Os colossos rigorosamente geométricos e orientados de acordo com referências  astronômicas, dão testemunho de um povo com conhecimentos profundos de matemática, engenharia e astronomia. E o que mais impressiona no cenário das pirâmides é a esfinge com sua expressão enigmática. Os autores desses monumentos fúnebres alertam o homem do século XXI para um imaginário que tem a morte como referência central. Dizem respeito à pergunta existencial que todos os povos de alguma forma tentaram responder: a morte é fim da existência ou a transição, a passagem para uma outra dimensão? Esses monumentos que dominam o cenário da entrada do maior dos desertos da terra, falam mais alto do que os papiros com seus hieróglifos. São testemunhos mudos mas eloquentes da perenidade do “humano” no homem que perpassa todos os tempos. É, sem dúvida uma paisagem humanizada de um belo grandioso excepcional.  Aliás o deserto em si, independente de obras humanas é de um belo que mexe fundo na alma de quem o consegue captar. Cabe aqui a observação de um idoso e experimentado guarda dos parques nacionais norte-americanos. “Há quase 50 anos estou a serviço nos parques e conheço todos os parques nacionais do país. O maior prazer sinto no deserto. Aí Deus está mais perto”. (Rambo, 2.015, p, 314).

No Egito os templos e, principalmente, as pirâmides conferem à paisagem a sensação do belo grandioso. Esse papel cabe também aos monumentos megalíticos espalhados pela Europa. Como as pirâmides são monumentos fúnebres, o que lhes empresta diante mão a aura de belo grandioso envolto em mistério. Aquelas estruturas de blocos maciços  de muitas toneladas, podem parecer aos imediatistas do século XXI como um desperdício no mínimo desnecessário. Sendo monumentos funerários, porém, são majestosas testemunhas de  culturas que, à sua maneira tornaram perene a compreensão que tinham da morte como um acontecimento da existência do homem que sugere perenidade. Dispersos pela paisagem falam uma linguagem eloquente de povos e culturas do passado que se faziam as mesmas perguntas que ainda hoje fazemos; a morte é o fim de uma existência ou a passagem para um outro nível? Os monumentos que chegaram até nós, provam que  seus idealizadores e construtores acreditavam, sinceramente de que se tratava do momento de uma passagem e por isso merecia ser imortalizado com blocos de rochas maciças, o que para eles materializava a perenidade e/ou a imortalidade. Permanece a incógnita como os edificadores desses monumentos conseguiram por em pé blocos daquele tamanho e peso  e sobre eles peças de iguais dimensões para formar portais como em “Stone Henge” na Inglaterra. Também esses monumentos conferem à paisagem um belo profundo, místico ou misterioso.

Poderíamos continuar enumerando obras ou monumentos que o homem deixou implantados na paisagem natural pelo mundo afora desde tempos imemoriais. A muralha da China, as sete maravilhas do mundo antigo, as pirâmides dos Maias, as cidades incas, os castelos e catedrais da Idade Média, o Cristo Redentor do Corcovado e outros mais. E para encerrar esse tópico lembramos ainda a contribuição para o belo grandioso e sobretudo carregado de sentido histórico das ruinas dos Sete Povos no noroeste do Rio Grande do Sul.

A paisagem mais profundamente impressionante é o das antigas reduções jesuíticas. Ali não falta nenhum  elemento humano: os cantos de guerra das tribos guaranis, a entrada épica dos missionários e dos bandeirantes, a cruz de Cristo chantada nos mirantes do “Tape”, a caridade cristã implantada nos corações dos bárbaros, a bondade humana simbolizada na nascente cultura, a malícia humana nas suas formas mais repelentes – florescimento, progresso, abandono e destruição  - ruínas e destroços. E por cima de tudo isso nova vida medra e frutifica nos nossos dias: é um quadro simbolizando todas as fases da atividade e das paixões humanas, (Rambo, 1942, p. 337) 

Depois  dessas reflexões  sobre o estético e o belo  que a natureza oferece numa infinidade de modalidades, é oportuno acrescentar algumas conclusões. Para desfrutar o que há de  belo e estético na natureza pressupõe-se, não um grau esmerado de formação acadêmica, mas um espírito aberto capaz de usufruir dos encantos que a natureza oferece. O privilégio de empolgar-se com o belo na natureza, não é reservado a qualquer um. Não se pode esperar gozo estético do madeireiro que percorre um pinheiral e os avalia em metros cúbicos de madeira ou dúzias de tábuas, nem de um caçador de tocaia para abater uma onça, nem do fazendeiro avaliando o rebanho em arrobas de carne. Enfim a sensibilidade para o estético e o belo não é “o negócio” dos que se aproximam da natureza com a finalidade de auferir resultados econômicos, proveitos políticos, vantagens estratégicas, reconhecimento e prestígio pessoal. De outra parte a percepção do estético e o gozo do belo  está ao alcance  de qualquer pessoa dotada de um mínimo de receptividade, de imaginação e de instinto e de capacidade de farejar os encantos e os mistérios  naturais que a rodeiam. Ricos, pobres, poderosos e humildes, em termos, nivelam-se ao sentirem o pulsar do “humano” contemplando as maravilhas da Criação. A visão de um por se sol, dum campo em flor, duma catarata, duma cachoeira, dum abismo, duma montanha, dum vulcão, duma floresta, do oceano,  ecoa nos arcanos mais profundos do ser humano. Essa capacidade de vivenciar, de gozar, de deleitar-se em contato com a natureza, radica no próprio cerne da existência do ser humano. Irrompe no momento oportuno caso não estiver sufocado por razões às quais já fizemos referência mais acima. Essa relação das pessoas com o habitat natural não é racional, nem irracional. É simplesmente “humana” – “Menschlich”. Esse conhecer e usufruir não segue nem a lógica filosófica nem a lógica científica . O caminho para perceber e conhecer do Belo é a intuição pois, não é mensurável nem quantificável pelos métodos e instrumentos científicos nem racionalizado  pela lógica, assim como “humano” não é quantificável nem reduzível a um silogismo.


Assim o belo da paisagem é senão a expressão o parentesco íntimo do espírito humano com o mundo que o rodeia, e com o Criador que está acima Dele. Tanto a abstração completa do belo na ciência pura, como a projeção do sentimento puramente subjetivo sobre a paisagem, não correspondem à realidade total, essa está na resposta com que a alma simples e sã reage às impressões da paisagem harmônica e grandiosa; a sensação do Belo. (Rambo, 1942, p. 337)