Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 30 -

Depois de descrever as diversas modalidades do “belo ameno” que se manifesta na harmonia das formas características de cada paisagem, os sentimentos e as emoções que desperta, leva a uma contemplação da natureza que resulta em tranquilidade, harmonia, satisfação, e repouso. Enfim, a harmonia das paisagens reflete-se na alma devolvendo-lhe a sensação de paz e equilíbrio. Já o “belo grandioso” impacta sobre a alma assustando-a ao mesmo tempo que a encanta. O encanto  do susto num misto de arrebatamento estético revolve as entranhas mais profundas do ser, do mistério, do acontecer na natureza. Esses componentes aparentemente contraditórios levam a perceber o fascínio e, ao mesmo tempo a grandiosidade e o assustador de paisagens e dos fenômenos naturais.

Passando da teorização para a realidade concreta, os fenômenos naturais capazes de  despertar  a sensação do belo grandioso ocorrem nas mais diversas modalidades: em tempestades, montanhas, cataratas, grandes florestas, oceanos, abismos, inundações, terremotos, erupções vulcânicas, tsunamis ... O elemento assustador associa-se em muitas vezes à grandiosidade do espetáculo, resultando num misto de temor e  fascínio. É isso que faz uma pessoa contemplar o movimento do oceano; observar a aproximação de uma tempestade; um abismo insondável, a erupção de um vulcão. “Nunca o ser humano tanto se aproxima de si mesmo e do mundo, do que quando se deixa arrastar pelo imenso mar-oceano do belo” (Rambo, 1994, p. 222). Maria Rohde, descreveu um cenário desses, tendo novamente o rio Uruguai com centro.

Ao nosso lado estendia-se por toda a largura do rio e na frente sua gigantesca superfície avançando até onde a vista alcançava. Estávamos acomodados no fundo da canoa e deixamos que o poderoso espetáculo nos impressionasse, As crianças que nunca tinham visto algo maior que o Taquari, estavam fora de si diante da grandeza do caudal. Mil coisas ocupavam sua  atenção.  Ora eram os peixes que davam saltos ousados perto da canoa, ora era a  vegetação romântica e selvagem nos barrancos, ora árvores desconhecidas e, somando a tudo, a impressão avassaladora do conjunto  fez com que nessa primeira viagem pelo Uruguai, não se esquecessem do menor detalhe. Só enxergavam o grandioso todo desse gigantesco panorama da floresta virgem. Até onde alcançava a vista, sucediam-se as ondas que subiam e desciam, formadas pela floresta sempre verde e, no meio dela avançava, tranquila e alegre, a lâmina prateada do grande rio. (Rohde, 1950, p. 49).

Mais acima chamamos à atenção para alguns dos espetáculos da natureza capazes de despertar o estado de espírito do Belo grandioso. Em determinados casos o grandioso vem associado ao assustador. Entre esses espetáculos da natureza enumera-se terremotos, erupções vulcânicas, inundações de dimensões catastróficas ... Entre esses exemplos a maioria é episódica ou restrita a algumas circunstâncias geográficas e/ou geológicas regionais ou locais. Sendo assim um número limitado de observadores tem o privilégio de vivenciar o seu potencial estético, grandioso ou assustador. Entre eles o mais universal são as tempestades. São tão comuns quanto populares por ocorrem em muitas e vastas regiões da terra com circunstâncias climáticas favoráveis. Sob a denominação de tempestade catalogam-se diversas categorias de acordo com seu potencial estético e assustador. No topo da lista estão os tsunamis e os furacões de alto potencial de destruição. Nas trovoadas  tão comuns aqui no sul do Brasil nota-se um certo equilíbrio entre o belo grandioso e o assustador. Vale a pena reproduzir como exemplo a descrição de um temporal de verão sobre Porto Alegre, registrada pelo Pe. Rambo no seu diário de 3 de julho de 1946.

Sobre os montes do outro lado do rio subia negra parede de nuvens. Enquanto eu atravessava a mata um trovão surdo e prolongado ecoou sobre a planície. ( ... ) Retirei-me do mato e sentei-me no alpendre da velha casa de madeira, Por cima do rio que escurecia, rolavam vapores de nuvens branco-cinzentas. Nas alturas do céu cruzava um lista densa de neblina, que com boa velocidade ascendia mais e mais. Adiante, lá no fundo, armavam-se em conjuntos  irregulares, montanhas gigantescas de nuvens, que da cidade avançavam em direção à laguna. E no meio desse jogo furioso de bruma e nuvens, de luz e iminente crepúsculo, uivava sem cessar o Teu trovão. Qual flagelo de chamas coriscavam os Teus raios de uma ponta a outra da fronteira dessa trovoada, baixando tremeluzentes e cintilantes, através da cortina da chuva, em direção à terra. Um estrondo e um rugido contínuo, entremeado por estampidos de trovões que sacudiam a natureza inteira, acompanha a passagem furibunda do Teu carro tonitruante pelas montanhas do matagal de nuvens. A região toda, céu e terra, está imersa em ameaçadora treva, luzes faiscantes e raivosos estalos de trovão. Algo barbaramente grandioso e misterioso falava de dentro da arena, em que se desenrolava a Natureza. Mais e mais a escuridão envolvia a paisagem, ( ... ). Eis que uma leve viração do vento começa a agitar o arvoredo! Seguiu-se um vento morno e forte, fazendo com que as copas dos eucaliptos se arqueassem e inclinassem  e as primeiras gotas estalaram sobre a folhagem e o telhado. Por cima estourou o estrondo de um trovão, que fez tremer a cassa toda. E começou a chuva, um aguaceiro pesado, regional, fustigado pelo vento que, em questão de minutos converteu tudo em correntes, despejando água e mais água, como se fossem eternas e inesgotáveis as Tuas nuvens. De quando em vez, uma breve pausa. Logo mais um novo relâmpago, seguido de trovão, fazia as Tuas quedas de água esbravejarem. (Rambo, 1994, p. 261-262).

Depois de descrito o fenômeno o autor faz uma reflexão na qual procura entender o que age por trás deste e de outro fenômenos com potencial de impacto semelhante sobre o existencial mais íntimo do observador. Para começo de conversa é preciso não se esquecer, que o Pe. Rambo parte da premissa de que a Natureza é obra da Criação. Atrás do ser e acontecer dela age um Criador e ponto final. A estética, a harmonia e o belo que se observam e vivenciam não passam de infinitas formas e modalidades da Natureza, refletindo a beleza e a harmonia do protótipo Divino. Em outras palavras a Natureza é O livro aberto da Revelação. Esse caminho de que se vale para revelar-se aos homens, inspirou São Paulo ao escrever os versículos 19 e 20, do capítulo primeiro da Carta aos Romanos: “Porque o que se pode conhecer de Deus lhe é manifesto a eles: porque Deus lho manifestou. Na verdade, as perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis depois da criação do mundo pela consideração das obras que foram feitas: e assim também seu poder eterno e sua divindade, de tal sorte que são eles inescusáveis”.

O notável nesses versículos é a definição de Revelação Natural sem a intermediação de uma tradição específica, viciada  pelos cacoetes inevitáveis  das diferentes cosmovisões  histórico-culturais, como por ex., a judaico-cristã. Em outras palavras. São Paulo não se meteu a ensinar como Deus criou a natureza. Apenas ensina que Seus atributos permeiam e iluminam a natureza como um todo e os seres vivos em particular, de maneira que qualquer pessoa de espírito desarmado é capaz de perceber. E se Deus se manifesta nas criaturas a lógica manda conclui que foi Ele que de alguma forma as criou. A criação direta e imediata de cada espécie em particular como ensina o fixismo foi descartada pela ciência. Superadas foram também as hipóteses que defendem a intervenção direta de Deus em momentos da história da vida em que a ciência e a razão não tem respostas convincentes: a explicação pelo “Deus ex machina” ou pelo “Design inteligente”. Para São Paulo a criação é um fato. Como se deu esse acontecimento, se foi uma única vez quando o “estofo” do universo” se fez realidade no começo de tudo, ou em mais momentos da história do mundo e da vida, é tarefa da Filosofia e da Ciência. Cabe aos dois aliarem-se num esforço comum e solidário, esclarecer essas questões. Qualquer resposta que apresentarem não mexe no essencial: A Natureza é obra do Criador  e o Criador se manifesta através dela.

Todo o acúmulo do saber é inútil, a não ser que, a semelhança da árvore, enterre suas raízes no solo materno do Teu mistério cósmico, lá onde os Teus mananciais jorram para dentro da vida eterna. Toda a Ciência acaba na soberba Faustina, se não navegar pela corrente do Eros controlado, buscando o que é verdadeiro, bom e belo e abraçando todas as  criaturas com amor nupcial. A pesquisa e a ciência só enriquecem o homem, quando lá embaixo, nas últimas radículas do ser, se entrelaçam e absorvem sua seiva vital de mananciais do Ser como tal. (Rambo, 1994, p. 308).

Se a natureza em si, pelas suas formas, paisagens, cenários e elementos individualizados, é capaz de  estimular a sensação do belo em todas as intensidades, a presença do homem e suas obras, acrescem tonalidades singulares ao belo natural. É difícil localizar uma território geográfico maior onde a presença do homem não conta séculos e milênios. Por tudo que já vimos refletindo até aqui, chega a ser redundante chamar a atenção que a saga das civilizações mascarou profundamente o chão em que se consolidaram. Essa simbiose entre as civilizações e seu chão, resulta num belo todo particular.  Não só particular mas em todas  as sua intensidades. Avaliado sob esse viés, os vestígios e as obras que marcam a presença do homem na história falam uma eloquente linguagem. A sensação do belo que despertam vão do lírico e romântico, ao grandioso, misterioso e assustador. Os exemplos são muitos. Podem ser admirados nos lugares mais impossíveis como na ilha da Páscoa isolada no Pacífico Sul. Não é só a imponência daqueles personagens esculpidos em monoblocos, pesando toneladas. Contemplando essas esculturas a  imaginação começa a viajar em busca da origem e identidade do povo daquela ilha perdida nos confins do oceano. Donde e como chegou até lá, de que se alimentavam, qual o estágio de tecnologia de que dispunham para esculpir aqueles blocos de rocha maciça. Aquelas  figuras em pedra enfileiradas no descampado pareciam em atitude do último adeus aos seus artífices. Aquelas estátuas olhando para o oceano a perder-se no horizonte, falavam mais alto do que qualquer contador de histórias ou documentos escritos. Por séculos, quem sabe, por milênios, a ilha foi a pátria de uma estirpe de homens e mulheres de um respeitável nível cultural. O imaginário, o mítico, o místico fala uma linguagem carregada de significados através da fisionomia impassível daqueles gigantes talhados em rochas vulcânicas.

E o que dizer dos templos, pirâmides e esfinge do Egito? Principalmente as pirâmides e a esfinge sentinela daqueles monumentos que há milênios dominam a paisagem da entrada do grande deserto. Também eles dão testemunho de um povo que dominava a arte de calcular, a astronomia, técnicas avançadas de extração de pedras de grande volume e peso, seu transporte por quilômetros até ao local da construção e sua elevação a dezenas de meros de altura. Os colossos rigorosamente geométricos e orientados de acordo com referências  astronômicas, dão testemunho de um povo com conhecimentos profundos de matemática, engenharia e astronomia. E o que mais impressiona no cenário das pirâmides é a esfinge com sua expressão enigmática. Os autores desses monumentos fúnebres alertam o homem do século XXI para um imaginário que tem a morte como referência central. Dizem respeito à pergunta existencial que todos os povos de alguma forma tentaram responder: a morte é fim da existência ou a transição, a passagem para uma outra dimensão? Esses monumentos que dominam o cenário da entrada do maior dos desertos da terra, falam mais alto do que os papiros com seus hieróglifos. São testemunhos mudos mas eloquentes da perenidade do “humano” no homem que perpassa todos os tempos. É, sem dúvida uma paisagem humanizada de um belo grandioso excepcional.  Aliás o deserto em si, independente de obras humanas é de um belo que mexe fundo na alma de quem o consegue captar. Cabe aqui a observação de um idoso e experimentado guarda dos parques nacionais norte-americanos. “Há quase 50 anos estou a serviço nos parques e conheço todos os parques nacionais do país. O maior prazer sinto no deserto. Aí Deus está mais perto”. (Rambo, 2.015, p, 314).

No Egito os templos e, principalmente, as pirâmides conferem à paisagem a sensação do belo grandioso. Esse papel cabe também aos monumentos megalíticos espalhados pela Europa. Como as pirâmides são monumentos fúnebres, o que lhes empresta diante mão a aura de belo grandioso envolto em mistério. Aquelas estruturas de blocos maciços  de muitas toneladas, podem parecer aos imediatistas do século XXI como um desperdício no mínimo desnecessário. Sendo monumentos funerários, porém, são majestosas testemunhas de  culturas que, à sua maneira tornaram perene a compreensão que tinham da morte como um acontecimento da existência do homem que sugere perenidade. Dispersos pela paisagem falam uma linguagem eloquente de povos e culturas do passado que se faziam as mesmas perguntas que ainda hoje fazemos; a morte é o fim de uma existência ou a passagem para um outro nível? Os monumentos que chegaram até nós, provam que  seus idealizadores e construtores acreditavam, sinceramente de que se tratava do momento de uma passagem e por isso merecia ser imortalizado com blocos de rochas maciças, o que para eles materializava a perenidade e/ou a imortalidade. Permanece a incógnita como os edificadores desses monumentos conseguiram por em pé blocos daquele tamanho e peso  e sobre eles peças de iguais dimensões para formar portais como em “Stone Henge” na Inglaterra. Também esses monumentos conferem à paisagem um belo profundo, místico ou misterioso.

Poderíamos continuar enumerando obras ou monumentos que o homem deixou implantados na paisagem natural pelo mundo afora desde tempos imemoriais. A muralha da China, as sete maravilhas do mundo antigo, as pirâmides dos Maias, as cidades incas, os castelos e catedrais da Idade Média, o Cristo Redentor do Corcovado e outros mais. E para encerrar esse tópico lembramos ainda a contribuição para o belo grandioso e sobretudo carregado de sentido histórico das ruinas dos Sete Povos no noroeste do Rio Grande do Sul.

A paisagem mais profundamente impressionante é o das antigas reduções jesuíticas. Ali não falta nenhum  elemento humano: os cantos de guerra das tribos guaranis, a entrada épica dos missionários e dos bandeirantes, a cruz de Cristo chantada nos mirantes do “Tape”, a caridade cristã implantada nos corações dos bárbaros, a bondade humana simbolizada na nascente cultura, a malícia humana nas suas formas mais repelentes – florescimento, progresso, abandono e destruição  - ruínas e destroços. E por cima de tudo isso nova vida medra e frutifica nos nossos dias: é um quadro simbolizando todas as fases da atividade e das paixões humanas, (Rambo, 1942, p. 337) 

Depois  dessas reflexões  sobre o estético e o belo  que a natureza oferece numa infinidade de modalidades, é oportuno acrescentar algumas conclusões. Para desfrutar o que há de  belo e estético na natureza pressupõe-se, não um grau esmerado de formação acadêmica, mas um espírito aberto capaz de usufruir dos encantos que a natureza oferece. O privilégio de empolgar-se com o belo na natureza, não é reservado a qualquer um. Não se pode esperar gozo estético do madeireiro que percorre um pinheiral e os avalia em metros cúbicos de madeira ou dúzias de tábuas, nem de um caçador de tocaia para abater uma onça, nem do fazendeiro avaliando o rebanho em arrobas de carne. Enfim a sensibilidade para o estético e o belo não é “o negócio” dos que se aproximam da natureza com a finalidade de auferir resultados econômicos, proveitos políticos, vantagens estratégicas, reconhecimento e prestígio pessoal. De outra parte a percepção do estético e o gozo do belo  está ao alcance  de qualquer pessoa dotada de um mínimo de receptividade, de imaginação e de instinto e de capacidade de farejar os encantos e os mistérios  naturais que a rodeiam. Ricos, pobres, poderosos e humildes, em termos, nivelam-se ao sentirem o pulsar do “humano” contemplando as maravilhas da Criação. A visão de um por se sol, dum campo em flor, duma catarata, duma cachoeira, dum abismo, duma montanha, dum vulcão, duma floresta, do oceano,  ecoa nos arcanos mais profundos do ser humano. Essa capacidade de vivenciar, de gozar, de deleitar-se em contato com a natureza, radica no próprio cerne da existência do ser humano. Irrompe no momento oportuno caso não estiver sufocado por razões às quais já fizemos referência mais acima. Essa relação das pessoas com o habitat natural não é racional, nem irracional. É simplesmente “humana” – “Menschlich”. Esse conhecer e usufruir não segue nem a lógica filosófica nem a lógica científica . O caminho para perceber e conhecer do Belo é a intuição pois, não é mensurável nem quantificável pelos métodos e instrumentos científicos nem racionalizado  pela lógica, assim como “humano” não é quantificável nem reduzível a um silogismo.


Assim o belo da paisagem é senão a expressão o parentesco íntimo do espírito humano com o mundo que o rodeia, e com o Criador que está acima Dele. Tanto a abstração completa do belo na ciência pura, como a projeção do sentimento puramente subjetivo sobre a paisagem, não correspondem à realidade total, essa está na resposta com que a alma simples e sã reage às impressões da paisagem harmônica e grandiosa; a sensação do Belo. (Rambo, 1942, p. 337)

This entry was posted on quarta-feira, 22 de novembro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.