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Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 40 -

Acontece que a fé não se resume na conclusão final de um raciocínio irretocável ou da lógica de um silogismo sem brechas. De forma análoga a fé que leva um cientista a crer não vem a ser uma resposta conclusiva a perguntas que foram sendo respondidas por descobertas e pesquisas de laboratório, simulados por meio de modelos matemáticos, ou reveladas por médias estatísticas. Dito de outra maneira. A fé não é indutível a partir de conclusões obtidas de resultados científicos, nem dedutível pela  lógica.

Cabe então a pergunta: no final das contas como é que um cientista ou um filósofo chega a ter uma fé convicta e não resignar-se ao “ignoramus et ignorabimus” do agnóstico, ou professar o ateísmo, que em última análise não passa  de uma modalidade de fé?

O  ato de fé vem a ser sempre um passo para o improvável, para o não racional, mas não para o irracional. Não resulta de uma demonstração com a certeza “do dois mais dois são quatro”, mas da percepção sensorial, do “farejar”, da intuição, da espontaneidade que dispensa a comprovação científica ou a racionalidade da lógica.  Em outras palavras. Dispensa a racionalidade científica e a racionalidade filosófica.

Pensando bem as duas racionalidades têm como fonte geradora a inteligência reflexa. Trabalha, portanto, com dois instrumentos de que homem dispõe para entender o universo, a natureza e a si próprio.. Abre-se aqui toda uma nova perspectiva quando se trata da fé e com todas as consequências que decorrem dela. A repercussão prática da fé transcende em muito o nível do racional. Dito de outra maneira. O humano no homem -  “Die Menschlichkeit” – como o definiu o o Pe. Rambo, abarca a totalidade existencial do homem. A racionalidade científica e a racionalidade filosófica, iluminam o humano no homem a partir dos resultados obtidos com seus métodos. Mas a complexidade das questões que envolvem o homem são de tal ordem que é inevitável o recurso a outras vias de explicação: o instinto, a emoção, a percepção sensorial e, sobretudo, a intuição. Em outras palavras. Cabe ao cérebro e ao coração a tarefa solidária de apresentar uma solução aceitável para as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito.  A combinação harmônica dessas esferas de informação, fornecem os dados que levam as pessoas à decisão ou não decisão por uma fé em Deus, em deuses, espíritos, forças sobrenaturais e, não nos espantemos, na “fé” de que essas entidades não existem, o que equivale à situação paradoxal da “fé” no ateísmo, que chega  a ser tão convicta como a fé do cristão em Deus, judeu em Jeová, do muçulmano em Alá.

Como podemos concluir, não estamos falando de uma fé específica. Entendemos a fé como um ato, uma postura diante de uma situação ou fato, cuja explicação foge do alcance das vias convencionais da indução e da dedução. Sendo assim, significa, pela sua própria natureza, um salto no escuro. O ato de fé nesse caso, como vimos insistindo, não é racional  como também não é irracional, dependendo do ponto de vista que se olha. Não é  racional, porque a intuição, a contemplação de uma paisagem grandiosa, de uma tempestade, o enfrentar uma enfermidade sem cura, uma alegria fora do comum, um drama interior, o belo em todas suas manifestações, reclama uma resposta que faça sentido. É neste contexto  que a Fé encontra o seu lugar como resposta à intuição que se orienta por uma lógica própria, em sintonia com as características pessoais e as singularidades de cada cultura. Foi desta forma que foram aparecendo na  história dos povos  anjos, demônios, espíritos sobrenaturais, e nas grandes religiões monoteístas um  Deus supremo.

Com isso dispomos de uma possibilidade real de síntese consistente entre a racionalidade dos dados da ciência e a racionalidade filosófico-teológica que levam a intuição a perceber que na raiz do ser e acontecer da natureza, age um fator que transcende  esse nível. A intuição encontra-se na base  que prepara o salto e legitima a aceitação de uma causa acima e além da natureza fora do tempo e do espaço..

A reflexão que acabamos de fazer, leva à conclusão de que não há nenhum impedimento para  a Ciência e a Religião se darem as mãos, para, num esforço solidário entender a natureza pois, as conclusões da ciência não excluem a doutrina religiosa e vice-versa. Pelo contrário, complementam-se.

Voltando à Encíclica, o Papa coloca a fé expressa na Sagrada Escritura, com destaque para o Gênesis, como um dado fundamental quando o cristão  participa da preocupação com o meio ambiente.

Se pelo simples fato de serem humanas, as pessoas se sentem motivadas a cuidar do ambiente de que fazem parte, os cristãos, em particular, advertem que sua tarefa no seio da Criação e os seus deveres em relação à natureza e  ao Criador fazem parte da sua fé. Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções. (Laudato se, 64)

Aqui o Papa toca numa questão que merece a nossa atenção.  Seguidas vezes repete-se a observação que a doutrina e, principalmente, a ascese cristã-católica estimula uma atitude de pouca importância, até de desprezo, em relação às questões ambientais. Essa crítica tem a sua dose de verdade, não tanto em relação à doutrina, mas quanto à ascese. O fato de a doutrina ensinar que a vida na terra é um  estágio preparatório para a vida eterna depois da morte, repercutiu como continua repercutindo, na forma de valorizar o meio ambiente e a vida das pessoas. A doutrina da vida como passagem distorceu o conceito da ascese e, como consequência, a sua prática, chegando ao extremo de considerar o corpo como um mal necessário, se muito como um instrumento incômodo para garantir a vida eterna da alma. De outra parte a natureza não passa de uma morada transitória, quase como que uma tenda de acampamento em trânsito na jornada em busca da felicidade perene. Sobre essa base doutrinária a ascese consolidou durante séculos, modelos de comportamento. É neste plano ascético e não doutrinário, que se consagraram  desvios, abusos e verdadeiras aberrações, que explicam as reservas, as desconfianças e a acusações do pouco interesse  de muitos  cristãos  pela salvação da vida na terra.

Esses desvios levam a um equívoco na maneira de avaliar a inserção do homem no seu habitat natural. Como já foi fartamente  demonstrado, a espécie humana, como qualquer outra está ontologicamente condicionada pela “sua casa” natural. Nela surgiu como as demais espécies vivas os elementos que entram na estrutura e funcionamento do seu organismo vem da terra em que vive. Os alimentos de que precisa para viver, são os mesmos  das demais espécies. Divide com elas os mesmos instintos e a mesma forma de perpetuar-se. Soma-se a tudo isso o fato de encontrar na natureza os estímulos para as suas emoções, suas manifestações artísticas, sua criatividade, gozo do belo, seu imaginário, suas percepções mágicas e religiosas.

O equívoco de muitos teóricos da ascese consiste em considerar o homem como que condenado a passar um tempo de prova na natureza, um transeunte, um peregrino que está de passagem, merecendo a entrada na “casa definitiva”. O corpo precisa ser disciplinado e despojado para suportar e superar  os acidentes de percurso. Estamos assim diante do cenário propício para o tratamento do corpo com rigor e disciplina. A história do cristianismo está repleta de modalidades de mortificações do corpo que, em casos extremos, passam das fronteiras do irracional. Exemplos de extremismo temos nos anacoretas reclusos em claustros sem comunicação com o mundo exterior, nos eremitas em suas cavernas no deserto ou na montanha. Práticas de jejum e flagelação que comprometem a saúde e a própria vida, são irracionais e beiram ao suicídio. Essas formas de desprezo do mundo a ponto de degradá-lo a um mal necessário e tratar o corpo como uma fera que precisa ser mantida na linha com  chicote, não podem ser   justificadas para quem goza de sã razão.

De uma forma ou outra a ascese da alienação e desvalorização das coisas materiais generalizou-se em não poucos ambientes cristãos. Contaminou curas de almas que, por sua vez, as difundiram nas suas comunidades. Explica-se assim, até certo ponto, que justa ou injustamente acusa-se a  religião como responsável pelo baixo interesse de muitos pela questão ambiental. A verdade é que se essa influência existe mas não se pode creditar à doutrina cristã, mas à ascese que dita as  regras para o comportamento e assim, indiretamente, influi na valorização das “coisas terrenas”. É claro que essa problemática abre um enorme leque de matérias que merecem uma séria reflexão. O Papa deixa claro que o zelo pela natureza faz parte da doutrina e, em sendo assim, é uma questão de fé, de acordo com a citação mais acima.

Frente à e declaração explícita que o cristão tem compromisso com a questão ecológica como algo que decorre da própria Fé, leva a desdobramentos de natureza teológica e histórica. Evidentemente não cabe numa Encíclica que centra suas atenções na questão ecológica, desenvolver uma Teologia da Criação. Por isso o Papa sinaliza no Gênesis e em outros tantos textos sagrados a intenção do Criador de deixar claro que para Ele, a criação do homem faz parte do conjunto da Criação como qualquer outra espécie. Não só se insere nessa gigantesca e complexa obra, como é a sua coroação. Uma corrente de cientistas chega ao ponto de afirmar que a espécie humana não significa, por assim dizer, o último e mais complexo dos rebentos da evolução, mas a sua própria razão  de ser, isto é, a evolução da natureza e da vida têm como finalidade o surgimento da espécie humana. Na  primeira narração da obra  criadora, o plano de Deus incluiu a criação da humanidade. Depois da criação homem e da mulher, afirma-se que “Deus, observando a sua obra, considerou-a muito boa”. (Laudato si, 65)

Mas o significado da criação do homem não se esgota nesse nível. De um lado, o homem equipara-se com os  demais seres vivos por ter sido criado sobre as mesmas bases químicas, físicas e biológicas. Foi feito do “mesmo  pó da terra”. Por esse lado a espécie humana não se diferencia das outras e, como tal, a sua compreensão é legitimamente  reivindicada pela ciência. Acontece que o homem vem a ser mais, muito mais do que as outras espécies vivas. A afirmação encontra-se também no Gênesis (1,26) ao ensinar que “cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus”. (Laudato se, 65).

A Encíclica  insiste  no significado: “Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana que não é somente algum coisa, mas alguém, capaz de conhecer as respostas e deliberadamente se doar e entrar em comunhão com as outras pessoas. (cf. Laudato se, 65). O Papa João Paulo II ampliou essa concepção do significado da espécie humana. “O amor muito especial que  o Criador tem por cada ser humano confere-lhe uma dignidade infinita”. (cf. Laudadto se, 65). Posta nessa perspectiva a existência humana entra numa dimensão que, sem negar a dimensão como espécie biológica, tem consciência que a vida não  “se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro caos ou por círculos que se repetem sem sentido”. (Laudato se, 65). A criação é um projeto divino que implica numa razão de ser, numa teleologia que a orienta para um objetivo a ser alcançado. Melhor que qualquer outro Teilhard de Chardin resumiu o projeto da criação na mega compreensão do universo em que o “alfa” é o começo de tudo e o “ômega” o destino de tudo. É oportuno lembrar que no “alfa” já estão previstos os caminhos a seguir e as leis que regem a jornada em direção ao objetivo final, o “ômega”, tudo impulsionado por uma teleologia que cuida para não acontecerem desvios capazes de frustrar o plano como um todo. As características físico-geográficas moldam o cenário natural no qual os nano e micro organismos, plantas, animais e o homem em harmonia fazem acontecer a caminhada universal em busca do “ômega”, razão de ser de tudo o que acontece na Criação. Em meio a esse acontecer da Criação o homem é, de um lado um fator como as demais espécies. Distancia-se, porém, por ser portador de inteligência reflexa, de consciência moral e dotado de liberdade.  Pela primeira participa conscientemente, com espírito curioso e crítico, de tudo o que acontece e sua volta e interfere intencionalmente no curso dos acontecimentos. A consciência moral aponta os limites de ação. Enfim, a liberdade permite inclusive contrariar as exigências da consciência moral e, em se tratando dos bens naturais levar ao desastre pelo abuso da intervenção no seu habitat natural. Em resumo. Junto com a natureza Deus criou o homem. De um lado tem raízes existenciais nessa “sua casa” natural, do outro, pela inteligência reflexa, pela consciência moral  e, sobretudo, pela liberdade dispõe do livre arbítrio de, ou zelar pela “morada” ou degradá-la.

O Papa continua a reflexão sobre a criação do homem e seu lugar na natureza, insistindo no fato de que o Gênesis se vale de uma narrativa simbólica. (cf. Laudato se, 66). A  leitura dessa passagem do texto sagrado sugere como causa do pecado a ruptura da harmonia nas relações fundamentais que vinculam o homem com Deus, com o próximo e com a natureza. Não foi uma ruptura superficial e externa e, sim, interna e existencial. ”Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a Criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas” (Laudato se, 66). Interpretando mal o mandato “dominar a terra”, o homem arvorou-se em “senhor da terra”, em dono dos seus recursos. Em nome desse entendimento, permite-se qualquer exploração dos recursos naturais, qualquer agressão, mesmo gratuita, ao habitat natural. “Como resultado  a relação originalmente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se em conflito” (Laudato se, 66).

E voltamos ao ponto de partida das nossas reflexões, A criação, a terra, “a nossa casa”, na qual nascemos, vivemos e que nos sustenta, é ontologicamente um bem comum e como tal não pode privatizado. Em última análise o homem não pode ser dono, apenas usufrutuário e administrador da terra e dos seus recursos. E, novamente nesses termos, qualquer pessoa tem o direito de “nascença” ao uso e fruto dos dons da terra. Sob hipótese alguma justifica-se o domínio absoluto sobre esses bens. Por isso a propriedade legal de uma porção  de terra, por ex., não pode negar os “frutos da terra” quando está em jogo um mínimo de vida digna de seres humanos. Se o estatuto da propriedade legal é a condição para estimular os proprietários na exploração produtiva dos bens, não pode servir de pretexto para negar às pessoas a satisfação das demandas básicas para viver.

Mais uma vez impõem-se os postulados éticos como critérios últimos a motivar a consciência, as políticas e ações em favor da vida na terra. O subverter ou o ignorar desse fundamento, levou o viver na natureza, em muitas situações ao conflito. Longe do modelo original da convivência harmoniosa do homem com a terra, optou-se pelo caminho da ruptura e da desarmonia. No seu estilo peculiar Nietzsche  fustiga essa ruptura da harmonia primordial. “Antigamente havia povos e rebanhos, não entre nós, irmãos. Entre nós temos o Estado. O Estado? que vem a ser isso? Vamos lá. Abram bem os ouvidos o que penso da morte dos povos. O Estado é o mais gélido de todos os monstros. Mente com frieza. A mentira flui da sua boca: Eu, o Estado, sou o  povo”. (Nietzsche, 1913, p. 69). Na versão do Papa o pecado como entendido mais acima é o responsável pela situação. “O pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza”. (Laudato si, 66). Vale a pena reproduzir a passagem da Encíclica onde, como autoridade máxima da Igreja, o Papa insiste na interpretação correta do Gênesis quando fala da relação homem-natureza.

Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o pensamento  judaico-cristão: foi dito que a narração do Gênesis (Gn,1,28) que convida a dominar a terra, favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador  e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia. como  a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos rejeitar decididamente que, do fato de ser  criado à imagem e semelhança de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica e lembrar que nos convidam a “cultivar e guardar”  o jardim do mundo. (Gn, 2, 15) Enquanto “cultivar” quer dizer  trabalhar um terreno, “guardar” significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de  reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de proteger e garantir a sua continuidade  a sua fertilidade para as gerações futuras (Laudato se, 67)
A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor um Pai criador o único dono do mundo; caso contrário, o ser humano  tenderá sempre a querer  impor à natureza as suas próprias leis e interesses. (Lauato si, 75)


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 39 -

A Sabedoria das narrações bíblicas

O título dessa segunda parte da Encíclica, ocupa-se com a relação da narração bíblica com a questão ecológica. Essa narração, com destaque para o Gênesis, mais diretamente relacionado com a problemática motivou, senão o maior, pelo menos um dos maiores obstáculos para uma aliança entre a Ciência e a Religião. Falar em visão bíblica da natureza costumava provocar calafrios nos cientistas. Para os exegetas falar em evolução ou coisa do gênero soava como alerta de heresia. Já refletimos mais acima em que terminou essa rejeição mútua em relação ao entendimento sobre a origem  e o que se entendia pelo conceito de natureza. A interpretação literal do texto do Gênesis e de outros livros sagrados, terminou no confronto direto com as conquistas e revelações da Ciência. Em algumas denominações confessionais terminou num fundamentalismo beirando o fanatismo religioso. Um fenômeno parecido deu-se com figuras representativas  da Ciência. Um fundamentalismo não menos irredutível tomou conta de suas convicções e atitudes. No que deu também já foi objeto de reflexões mais acima.

Apesar do arrefecimento das tensões entre a Ciência e a Religião, posições irredutíveis ainda podem ser identificadas em ambos os arraiais. Entretanto, o auspicioso é que de ambos os lados partem sempre mais acenos para o entendimento e a colaboração. Vamos deixar de lado as denominações cristãs que somam dezenas, sua visão da natureza, sua posição em relação à ecologia, para nos fixarmos na cosmovisão cristã-católica. Afinal, ela foi apresentada como versão oficial para mais de um bilhão de católicos, pela autoridade máxima da Igreja por meio de uma Encíclica, documento oficial de maior peso.

Durante todo o século XIX e as três primeiras décadas do século XX, a posição oficial da Igreja foi de reserva, desconfiança e rejeição aos avanços da Ciência. Em alguns momentos, com no Concílio Vaticano I e durante todo o pontificado de Pio IX e de Pio X no começo do século, reinou um verdadeiro fundamentalismo na esfera oficial da Igreja.  No Vaticano I, interrompido pela guerra franco-prussiana, constava na agenda a condenação do evolucionismo com heresia. Notórias foram as manifestações e determinações de Pio X no tocante à Ciência e ao Modernismo. A interpretação literal  do Gênesis figurava como intocável.

Passaram-se os anos. A cada dia a Ciência vinha a público anunciando novas descobertas, fundamentadas em bases sólidas. Neste período entram em cena cientistas saídos das fileiras do clero secular e de ordens religiosas com o propósito de harmonizar Ciência e Religião. Entre os mais  conhecidos e mundialmente reconhecidos no meio científico, figuram: o monge agostiniano Gregor Mendel; o padre secular Girolamo Bresadolla, autoridade no estudo dos fungos; o jesuíta Erich Wassmann, especialista em colônias de formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos; o jesuíta Johannes Rick, discípulo de Bresadolla; o também jesuíta Teilhard de Chardin, antropólogo, etnólogo e filósofo, com sua famosa síntese universal exposta no “Fenômeno Humano”, sua obra mais conhecida; Balduino Rambo, também jesuíta, botânico e ambientalista. A estes somam-se dezenas de outros religiosos cientistas nas mais diversas especialidade. Cada qual foi percebendo pelos resultados de suas especialidades o que Erich Wassmann resumiu na pergunta: “Será que a visão da Igreja em relação à sua visão do mundo, não está há séculos defasada daquilo que a Ciência vem revelando a cada dia que passa?” (Stimmen der Zeit, vol. 100, 1921, p.  ?)

Felizmente essa advertência da parte da Ciência, encontrou eco no papa Pio XII, um intelectual de mente aberta. A partida oficial da Igreja Católica em busca do diálogo com a Ciência se deu em agosto de 1943 com a Encíclica “Divino Afflante Spiiritu”. Esse documento mexeu com um dos tabus defendidos com unhas e dentes pelos “cães de guarda da ortodoxia”, isto é, a interpretação das narrativas sobre a Criação, em especial do Gênesis. À luz das descobertas científicas já não foi mais possível sustentar a interpretação ao pé da letra dos textos sagrados. A arqueologia comprovara a existência do homem  há dezenas de milhares de anos. A paleontologia, a genética,  a biologia, a botânica, a zoologia desfizeram as dúvidas sobre os mecanismos da evolução, responsáveis  pela diversificação e complexificação dos seres vivos. Diante dessa avalanche de evidências já não havia mais como insistir razoavelmente na leitura literal daqueles textos. Em resposta a tudo isso Pio XII publicou a Encíclica “Divino Afflante Spiritu”. Em resumo argumentou que  os estudos arqueológicos e as pesquisas históricas, recomendavam uma revisão da “Vulgata” de São Jerônimo, tradução oficial adotada pela Igreja. Para um interpretação mais correta é preciso recorrer aos documentos originais encontrados nesse meio tempo, tomar em consideração as circunstâncias históricas em que foram escritos, as peculiaridades culturais e linguísticas e outros critérios. Além dos avanços nos estudos arqueológicos e históricos, a pressão das circunstâncias por uma revisão na interpretação dos textos sagrados, certamente influíram  nos termos da Encíclica. Essa nova perspectiva abiu as portas para o reencontro entre a Ciência e a Religião. A importância do documento foi de tal ordem que Raymond Brown, especialista em estudos bíblicos o classificou como a “Carta Magna” do progresso bíblico.  A Encíclica “Humani Generis” de 1950, também de Pio XII veio a sacramentar, explicitar e consolidar a relação entre Ciência e Religião, em busca de um entendimento produtivo no que se relaciona com a natureza. Remetemos maiores detalhes sobre  a posição da Igreja nesta questão para o que foi apontado, mais acima, na primeira parte destas reflexões.

Posto esse pano de fundo convido a refletir um pouco mais sobre o que nos dizem as grandes narrações bíblicas sobre “a relação do ser humano com o mundo” (Laudato si, 65). A Encíclica ensina sobre a relação do ser humano com o mundo: “Na primeira narração da obra criadora, o plano de Deus incluía a criação da humanidade. Depois da criação do homem e da mulher, diz-se que Deus, vendo sua obra, considerou-a muito boa”. (Laudato si, 65) O que de fato importa nesse versículo do Gênesis é que a humanidade faz parte integrante da obra da criação da Natureza. O que parece importante destacar é, em primeiro lugar, o fato de a natureza e o universo, o mundo e a natureza terem sido criados. O mundo tem um autor, não se fez a si mesmo, não é o resultado de um acaso, duma geração espontânea. E  a humanidade faz parte da obra da criação, feita do mesmo “pó da terra” como os demais seres vivos. Esse fato  foi fartamente comprovado pela ciência. O corpo da espécie humana é feito dos mesmos elementos químicos do qualquer outra espécie viva. A unidade da espécie humana na multiplicidade de suas formas, resultam das leis que comandam a evolução, como nas demais espécies, e tem no genoma a sua explicação científica. Como as demais espécies está inserido existencialmente no habitat natural e nele prospera ou sucumbe. Um segundo aspecto merece atenção especial pois, é o ponto mais crítico na interpretação do Gênesis. As opiniões se dividem entre os que aceitam a Criação como um fato. Há as denominações confessionais cristã que não abrem mão da interpretação literal do texto. Quando se faz menção ao barro, significa barro, argila como definido pelo dicionário; a sequência dos sete dias ao longo dos quais aconteceu a criação, significam literalmente os sete dias da semana; para criar a mulher, Deus tirou uma costela de Adão. E assim  todos os eventos da criação devem ser entendidos ao pé da letra. É  o fundamentalismo que em questões referentes à  criação que tem como referência a opinião de Cuvier: “Existem tantas espécies quantas foram criadas por Deus no início”. Acontece que essa interpretação do Gênesis e outros textos da Sagrada Escritura, vão na contra mão do avanço das Ciências e dos seus resultados.

Diante da autenticidade  dos dados científicos que comprovam objetivamente a evolução atuando na natureza viva, os criacionistas recorreram a teorias conciliatórias: a teoria do “Design Inteligente” e a do “Deus das Lacunas”. Em resumo a teoria do “Design Inteligente” pretende oferecer uma resposta explicativa para a existência e o funcionamento das altas complexidades observadas no funcionamento em todos os níveis da escala da vida. A célula é um exemplo dessa complexidade. “Há máquinas complexas que traduzem o RNA para proteínas, outras ajudam as células  se locomover e ouras que transmitem sinais da superfície da célula até o núcleo, deslocando-se ao longo de uma trilha em cascata de múltiplos componentes” (Collins, 2007, p. 191). Collins cita também o olho como um exemplo emblemático de órgão complexo, semelhante a uma câmera fotográfica, mas de anatomia e fisiologia que causam surpresa no mais experimentado e treinado cientista e fisiologista. Collins que vem a ser um cientista de primeira linha, especialista em genética médica, declaradamente crente em Deus, observou em relação ao “Design Inteligente”. Essa teoria foi recebida com euforia de modo especial por aqueles que se empenhavam em achar um lugar para Deus no processo da evolução. Teve, porém, ressonância mínima entre os cientistas mesmo entre os que  aceitam a existência de Deus. Não é aqui o lugar para entrar mais a fundo nas razões que questionam a validade do “Design Inteligente” para explicar a complexidade constatada na estrutura e funcionamento da vida. (mais em Collins, 2007, p. 187 ss)

A teoria do “Deus das Lacunas” vem a ser uma consequência lógica  da teoria do “Design Inteligente”, mais ou menos uma versão moderna do “Deus ex Machina” do antigo teatro grego. A diferença vem a ser que apela à intervenção divina em eventos que desafiam explicações científicas. A teoria carrega no seu bojo o que compromete a sua credibilidade. Cada vez que a ciência encontra uma explicação solidamente fundamentada, dispensa a intervenção divina. A história da ciência oferece uma longa sequência de fatos e eventos, atribuídos a deuses, espíritos, forças sobrenaturais e outras explicações não científicas. Essas intervenções tornam-se supérfluas na medida em que vão sendo superadas pelas descobertas da ciência. E na medida em que as complexidades irredutíveis forem explicadas pela ciência, o recurso, tanto ao “Design Inteligente”, quanto ao “Deus das Lacunas”, vai perdendo a sua utilidade. Como então salvar o Criacionismo?

O nosso já conhecido geneticista Francis Collins propõe uma saída, tanto para a ciência, quanto para a religião. A solução encontra-se no pouco conhecido e pouco utilizado conceito: “evolução teísta”. Apesar da pouca popularidade de que goza. encontra cada vez mais adeptos e defensores nas fileiras dos cientistas sérios e respeitados que creem em Deus, como é caso do próprio Collins. Ele cita como exemplos o cientista americano Asa Gray talvez o maior defensor do darwinismo nos Estados Unidos e Thodosius Dobzhansky que no século XX consolidou as bases da genética científica e um defensor entusiasta do evolucionismo. Collins continua afirmando que essa foi também a concepção dos adeptos do hinduísmo, do islamismo, do sionismo e do cristianismo. Por essa saída optariam também Santo Agostinho e o filósofo judeu do século XII Maimonides, caso tivessem em mãos as evidências científicas de que hoje dispomos. Cita ainda  a declaração de João Paulo II, também já registrada mais acima. Já que seu livro é de 2007, é lícito acrescentar o que pensaram sobre a questão ecológica os papas anteriores, Bento XVI e Francisco. A teoria “teísta” fundamenta-se de acordo com o nosso cientista  sobre as seguintes premissas.

1.     O universo surgiu do nada, há aproximadamente  14 bilhões de anos.
2.     Apesar das improbabilidades incomensuráveis, as propriedades do universo parecem ter sido ajustadas para a criação da vida.
3.     Embora o mecanismo exato da origem da vida  na Terra permaneça desconhecido, uma vez que a vida surgiu, o processo da evolução e seleção natural permitiu o desenvolvimento da diversidade biológica e da complexidade durante espaços de tempo muito vastos.
4.     Tão logo a evolução seguiu seu rumo não foi necessária nenhuma intervenção sobrenatural.
5.     Os humanos fazem parte desse processo, partilhando um ancestral comum com os grandes símios.
6.     Entretanto, os humanos são exclusivos em características que desafiam a explicação evolucionária e indicam nossa natureza espiritual. Isso inclui a existência da Lei Moral (conhecimento do certo e errado) e a busca de Deus, que caracterizam todas as culturas humanas. (Collins, 2007, p. 206)

Uma visão do mundo e da natureza a partir dessas seis premissas conclui que uma síntese entre Ciência e Religião é perfeitamente possível. Satisfaz intelectualmente tanto o cientista, quanto o filósofo e o teólogo, porque se fundamenta numa lógica validada pelos dados científicos. É preciso não esquecer que Deus existe fora ou independente do tempo e do espaço. Neste caso sua ação criadora não é limitada ou influenciada pelas leis que regem os processos e as leis que comandam o acontecer no espaço e no tempo. Acontece que essas leis  e processos foram criados por Ele. A ciência imerge cada dia mais fundo na complexidade da estrutura e funcionamento da natureza. É previsível,  se não acontecer um acidente de percurso, num futuro, quem sabe não muito longínquo, poucos, ou nenhum segredo de “como” funciona a natureza, não estejam desvendados. Contudo ficarão abertas as perguntas: “como começou tudo?”, “porque existe  natureza que está aí?”, “para onde caminha o universo, a natureza e a humanidade?”.

Recorrendo ao princípio da causalidade que afirma que tudo quanto existe tem uma causa – a causa que produz um efeito tem quer suficiente, isto é, ter potencial para produzir o respectivo efeito  -  causa e efeito não se identificam, são de natureza diferente. Aplicando esse raciocínio ao Teísmo é legítimo concluir que “o nada” não é suficiente para produzir alguma coisa. Aplicado  esse princípio à origem do universo não há outra saída a não ser recorrer a uma causa preexistente que criou “do nada” a sua matéria, seu “estofo, no linguajar de Teilhard de Chardin. Ao mesmo tempo que criou esse “estofo”, equipou-o com todas potencialidades capaz de desdobrá-lo numa infinita variedade de formas  e complexidades. Ao mesmo tempo vinculou essa dinâmica a um objetivo, a uma teleologia, que confere sentido à obra no seu conjunto. Nessa perspectiva aconteceu um único ato criador dando existência à matéria prima ou o estofo  do universo. O que aconteceu depois em diversificação  e complexificação é obra da evolução natural já prevista no projeto criador lá no começo de tudo. Cadmon um m antigo poeta inglês pastor de ovelhas escutou numa noite de vigília junto ao rebanho: “Cadmon canta-me a canção do começo de todas a coisa”. E Einstein numa carta a sua filha Lieserl responde que a canção do começo de todas as coisas “é uma canção de amor”.

Conclui-se daí que  o teísmo apela para um ato de criação direto, uma única vez na história do universo lá no começo dos começos. Os demais passos aconteceram de acordo como a previsão do Criador. Em outras palavras. Deus Criador é a “causa primeira” que previu todas as “causas secundárias” responsáveis imediatas por todas as etapas e passos posteriores ocorridos na história da evolução. Collins observa.

Se alguém aceita esses seis princípios (mencionados acima) percebe que surge uma síntese completamente aceitável, que satisfaz intelectualmente e tem consistência lógica: Deus que não se limita ao tempo e ao espaço criou o universo e estabeleceu as leis naturais que o regem. Para povoar esse universo antes estéril com criaturas vivas, Deus escolheu o mecanismo distinto da evolução para criar micróbios, plantas e animais de todos os tipos. O mais extraordinário  que Ele escolheu propositadamente, o mesmo mecanismo para originar criaturas especiais que teriam inteligência, conhecimento do certo e do  errado, livre arbítrio e o desejo de afinidade com Ele. Deus também sabia que esses seres, ao fim, optariam por desobedecer a Lei Moral. (Collins, 2007, p. 206-207)

Depois de sintetizar a compreensão teísta sobre a origem e a evolução do universo e da natureza, Collins acrescenta algumas conclusões explicativas. Opina que a concepção teísta do universo, da natureza, inclusive da humanidade, é perfeitamente compatível com o que a ciência ensina a respeito. De outra parte concorda com o que ensina e creem as grandes religiões monoteístas, com destaque para o cristianismo, o sionismo e o islamismo. Mas é um fato também que na linha da evolução teísta nenhum argumento da parte da lógica racional consegue provar “preto no branco”, a existência de Deus. Crer em Deus, em última análise, “é um ato de fé”, “um salto no escuro”. Dito de outra maneira. Crer em Deus não é racional no sentido que se usa convencionalmente o conceito, tanto na ciência quanto na filosofia. De outra parte também não é irracional porque decorre das outras forma de conhecer, também já explicitadas acima, sobretudo a percepção sensorial e a intuição. Para as duas formas de conhecer, o ter certeza,  “acreditar” em algo, dispensa os argumentos e certezas legitimadas tanto pela racionalidade  científica quanto pela racionalidade filosófica. Aliás, o conhecimento e as certezas oferecidas pela intuição, representam o fio condutor, o “Leitmotiv” de todo o conhecimento construído desde o começo da história da humanidade. O Pe. Rambo defende essa modalidade de conhecer  como a mais importante dentre todas as demais.

Entre a Ciência e a Fé (entre as Ciências Naturais, as Ciências do Espírito. das Ciências Humanas, das Letras e Artes, inciso do autor), estende-se o vasto campo da intuição, que não é outra coisa  senão um conhecimento condensado. Não se trata tanto do significado e da expressão da palavra, como do som subliminar que emite e da ressonância que desperta. A essa melodia concomitante da linguagem humana até hoje se emprestou muito pouca atenção. Bem considerada ela não é um som secundário, e sim a nota dominante no concerto musical do espírito dinâmico do homem. (Rambo, 1994, p. 265)

Com isso dispomos de uma possibilidade real, de uma saída consistente para a racionalidade dos dados da ciência e a racionalidade filosófico-teológica. Na raiz do ser e acontecer na natureza age uma causa de outro nível. A fé alimentada pela intuição, confere legitimidade para aceitar uma causa acima e além da natureza, fora do tempo e do espaço. Identificar essa causa como um Deus Criador exige um ato de fé  que não é “racional” no sentido com que é entendido normalmente. Contudo, não é “irracional” porque legitimado pela intuição. Collins conclui a reflexão sobre as perspectivas da possibilidade de uma síntese pelo teísmo.


Contudo essa  síntese proporcionou, a legiões de cientistas  que acreditam em Deus, uma perspectiva satisfatória, consistente e enriquecedora que permite uma coexistência pacífica das visões  do mundo científica e espiritual em nós. Essa perspectiva permite ao cientista que acredita em Deus realizar-se intelectualmente e sentir-se espiritualmente vivo, tanto ao idolatrar o Criador, quanto ao utilizar os instrumentos da ciência para descobrir alguns dos admiráveis mistérios da Sua Criação. (Collins, 2007, p. 207)

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 38 -

Neste capítulo da Encíclica o Papa  aponta a contribuição que a religião está em condições de oferecer para resolver os graves problemas a serem enfrentados pelos ecologistas. Acabamos de constatar que a colaboração entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito é possível. Mais. Não é só possível como explicitamente proposta por ambos os lados. Esse propósito mutuamente declarado por porta vozes altamente credenciadas de ambos os lados, é fundamental. Pela enorme complexidade do tema a efetiva colaboração de todos os campos do saber, não é só desejável, como indispensável. Nessa empreitada ninguém, por razão alguma, está autorizado a se omitir. De outra parte negar a validade  da participação nesses diálogo ou desqualificar a contribuição  que não venha do próprio campo de interesse, impede que se chegue a um resultado conclusivo. Isto vale tanto para a Ciência, quanto para a Filosofia, a Teologia e a Religião. Qualquer unilateralidade  ou exclusividade nessa missão, termina em fundamentalismo o que a significa a sentença de morte para um conhecimento que mereça esse nome. Neste sentido vai a advertência do Papa.

Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar  e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria. (Laudto se, 63).

Ao que tudo indica  já não há mais impedimento que as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito dialoguem e juntas formulem uma proposta de solução para a grave questão ecológica. Já existe abertura suficiente de ambas as partes. Há mais de 60 anoso Papa Pio XII criou a “Pontifícia Academia de Ciências”. Trata-se de um fórum no qual cientistas das mais diversas especialidades e orientações são convidados ao debate questões de fronteira do conhecimento com seus colegas de outras áreas. Seis são as áreas de destaque: Ciências Básicas,  Ciência e Tecnologia dos Problemas Globais, Ciência dos Problemas do Mundo em Desenvolvimento, Política Científica, Bioética, Epistemologia. O princípio que orienta os esforços da Academia foram resumidas nas palavras do Papa Bento  XVI: “A natureza é uma história cuja evolução e o sentido da sua escrita é interpretada de acordo com as diferentes aproximações das Ciências, pressupondo sempre a presença do seu Autor, que quer-se revelar por meio dela”.

A Encíclica faz referência a uma forma de conhecer a natureza que costuma causar calafrios aos que poderíamos chamar de cientistas ortodoxos. Chamamos de cientistas ortodoxos aqueles que só aceitam os resultados de suas pesquisas capazes de conhecer a natureza e rejeitam qualquer outra forma de entendimento. Acontece que do outra lado a Filosofia e a Teologia ortodoxa pretende entender a natureza pela lógica dos seus silogismos. Essa guerra inútil e mortal ao verdadeiro conhecimento separou os dois campos durante 200 anos e em parte ainda continua. Acontece que essas duas vias de conhecer resulta numa visão totalmente racionalizada da natureza. Para esse tipo de cosmovisão o recurso a outras vias do conhecimento como intuição, arte beleza, percepção sensorial, não passam de um romantismo ou misticismo que não resiste minimamente aos rigores da experimentação ou da lógica formal.

Sucede que o conhecimento da natureza construído apenas sobre a racionalidade científica e filosófico-teológica, pode até ser considerado o esqueleto e os músculos que garantem solidez. Falta, entretanto, a vida, a alma para as realidades que constituem o nosso habitat. Para  preencher essa lacuna, para dar alma, coração e sentido para “a nossa casa” é necessário recorrer a outras vias para conhece-la e, principalmente para entende-la e usufruí-la. Essa via chama-se “percepção sensorial-intuitiva”.

Se a via da racionalidade filosófica tem sua consolidação em Aristóteles, 300 anos antes de Cristo e a via científica há menos de 500 anos, pergunta-se: quais foram as bases sobre as quais a humanidade consolidou o conhecimento antes?; ou aquilo não era conhecimento?. Desqualificá-lo como ilegítimo, significa nada mais nada menos do que rebaixar o homem do paleolítico e neolítico à condição de bárbaro. Hoje felizmente nenhum cientista sério, nenhum antropólogo, etnógrafo ou etnólogo ainda se vale de conceitos como “selvagem-selvageria” ou “bárbaro-barbárie” ao se referir à pré-história. Não há dúvida de que o conhecimento daquele longo período de dezenas e centenas de milhares de anos é um verdadeiro conhecimento. Tanto assim que impediu que a espécie humana não sucumbisse às implacáveis leis da natureza que comandam a evolução. De outra parte dispomos de elementos e conhecimentos suficientes daquele período que cobre a história total da humanidade acima de 95%, de que nos deparamos com um conhecimento tão legítimo quanto o nosso.

As raízes remotas do conhecimento devem ser procuradas entre os caçadores e coletores do paleolítico. Munidos com as ferramentas mais rudimentares que se possam imaginar, a sobrevivência aconteceu na dependência total das condições ambientais. Valendo-se dos cinco sentidos com janelas, como vias de contato  com o habitat natural, o homem foi obtendo as informações  indispensáveis para garantir a sobrevivência. Orientado pelos instintos instrumentalizados pela intuição e os resultados postos à disposição da inteligência reflexa, foi colocando  os fundamentos do conhecimento. A partir daí, somando observação a observação, experiência a experiência, explicação a explicação, resposta a resposta, consolidaram-se, em velocidade geométrica, os corpos do conhecimento, ao mesmo tempo em que a humanidade se dispersou pelos continente e ilhas do planeta inteiro. Não se pode esquecer que em paralelo, em estreita interdependência  e mútua emulação com o instinto, intuição e reflexão, aconteceu a descoberta, a diversificação e aperfeiçoamento dos instrumentos e utensílios. Do mais antigo instrumento conhecido como tal, o rudimentar, tosco e pouco eficiente “machado de punho”, evoluiu uma sofisticada tecnologia e indústria de  lascamento de sílex, granito, basalto  e vidro vulcânico. Do primeiro artefato multifuncional, pouco eficiente, evoluiu, durante dezenas de milhares de anos, um arsenal de ferramentas e instrumentos líticos especializados: ferramentas para cavar, cortar, arremessar, defender-se, tirar a pele de animais, separar a carne dos ossos, Entre os objetos de pedra, sílex e vidro vulcânico, merece destaque uma variedade sem conta de pontas de flecha, facas, punhais de vidro vulcânico de tamanhos fora do comum, cujo acabamento exigiu técnicas refinadas de  lascamento. Explica-se que entre os vestígios materiais que acompanham a história da humanidade, predominam os artefatos de pedra. Pela sua natureza são muito mais duráveis e resistentes à ação do tempo do que qualquer outra matéria prima. Pelo fácil manuseio. disponibilidade em qualquer lugar, versatilidade para utilidades múltiplas, a madeira, osso, chifre, dentes, etc. foram certamente utilizadas. Sujeitas à uma rápida  destruição pelos agentes da natureza, aparecem só muito mais tarde na história.

A sobrevivência e o sucesso histórico do homem do paleolítico, portanto, dependia inteiramente dos seus instintos, sua intuição e sua inteligência reflexa. instrumentalizada por um aparato de tecnologias complexo, variado e multifuncional,  servindo-se das matérias primas imediatamente disponíveis no seu habitat. Por todos os milênios e dezenas de milênios, pelos quais o paleolítico se prolongou, a humanidade viveu na mais completa simbiose  com a natureza, na forma e modalidade própria de cada região geográfica.

O grande salto deu-se por volta dos 15.000 anos atrás. Darcy Ribeiro chamou-o de “Revolução dos Alimentos” e Edward Wilson de “Primeira Traição à Natureza”. Tem na agricultura e domesticação de animais seu fator dinâmico determinante. Mas não foi só por essas duas novidades. Veio implementado por outras de difícil dimensionamento. Destaca-se o uso do fogo, a descoberta de metais “in natura”,  cobre, estanho, prata e ouro. A descoberta da amálgama do cobre e estanho dando no bronze, veio a ser de importância sem igual.  A tecnologia da fundição de ferro veio  completar esse quadro. Tecnologias cada vez mais apuradas de manipulação dessas matérias primas aceleraram exponencialmente o processo civilizatório no decorrer do neolítico. Depois de visitar o “Field Museum” de Chicago o Pe Rambo comentou num tom quase jocoso que qualquer pessoa minimamente instruída entende, do que viu sobre a cultura do homem assim chamado primitivo.

O homem que, como caçador e coletor, há muitos anos vagava pelas florestas e estepes, não era nem meio ou três quartas partes animal, de forma alguma. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certa forma altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que hoje se fabrica de aço e ferro. inventou a técnica de assar, de fritar, de refogar, de cozinhar, e, com isto, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente, às cozinheiras e aos cozinheiros, o homem primitivo teve de tentar, experimentar e  excogitar, penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor, aos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, devemos em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo, quando da queda de um raio, na erupção de um vulcão, ou aprendeu a produzi-lo pela fricção da madeira ou batendo um fragmento sílex contra o outro. Ele foi, também, o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, da massa, dos punhais e das lanças arremessadas com as mãos. Sorte sua que não descobriu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade já teria perecido nos tempos primigênios. Foi o inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas peças de chifre e osso, com o mesmo feitio e quase tão finas como as nossas agulhas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais, e não vagava nu por aí, como querem os que gostam de venerar animais como seus avós. Foi o inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente,  em casas de verdade, mesmo que fossem menos confortáveis que os nossos arranha-céus ou palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga, como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas comemos até nos saciar”. (Rambo. Três Meses na América, 2.015, p. 400-401)

    A intuição teve em Jean Jacques Rousseau a sua reabilitação como forma legítima de conhecimento. A percepção imediata das realidades naturais pelos sentidos, resulta na construção informal e espontânea dos corpos do conhecimento que subjazem às mais diversas culturas. Com sua autoridade incontestável o grande filósofo da modernidade deixou claro que o homem busca a matéria prima  do conhecimento no mundo ambiente em que vive e apropria-se dela por meio dos sentidos. A forma peculiar como essas percepções são  elaboradas depende da natureza de cada uma delas, do entorno cultural em que é recebida e da maneira única pela qual é percebida e elaborada pelas mentes individuais. Rousseau contentou-se, filósofo que foi, em apresentar a ideia sem propor caminhos para pô-las em prática. Talvez não intuísse o tamanho do potencial prático embutido nessa maneira de conceber  a gênese do  conhecimento. O valor prático, inovador e revolucionário, encontra-se exatamente no plano mais sensível e mais decisivo da vida individual e coletiva: A Educação. Mas este é uma questão que merece uma série de reflexões à parte. Não é aqui o momento nem a oportunidade.

Pelas reflexões feitas até  aqui, tendo como guia a Encíclica “Laudato si”,  além de cientistas das mais variadas orientações filosóficas ficou claro que a natureza é um “fato”, um “ente” objetivo de alta complexidade finamente calibrado. Esses conceitos significam, no fundo no fundo que a natureza é um gigantesco sistema, “uno” na sua essência ontológica, porém, múltiplo nas suas manifestações. A natureza é una na complexidade e plural na sua realização. Dito de outra maneira. A pluralidade das formas e manifestações têm a sua  base na unidade que, por sua vez, lhes confere sentido e razão de ser.

Partindo desse pressuposto percebemos  que para a compreensão desse “ente” complexo todos os recursos disponíveis precisam ser invocados para, num  esforço combinado de muitas mãos, retratar o que a natureza de fato representa e as mensagens que nos quer comunicar. Para tanto, só para recordar são convidadas a participar todas as formas de conhecer: das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, das Letras e Artes, da percepção sensorial, da Intuição, do conhecimento popular, da contribuição das Culturas e Civilizações. Conclui-se daí que, para enfrentar a crise ecológica, é preciso tomar de alguma forma em consideração, todas essa formas de conhecer. Vai neste sentido a observação da Encíclica.

Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de  interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e  à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo que temos destruído, e então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada; nem sequer a sabedoria religiosa com sua linguagem própria. (Laudato se, 63)

Portanto, todos estão convidados, melhor convocados para contribuir, cada qual com o que lhe cabe, par arrumar a “nossa cassa” e preservá-la de danos ainda mais profundos. Depois dessas considerações o Papa dirige sua atenção na perspectiva em que a Igreja Católica e, por extensão, o cristianismo como um todo, compreende a questão ecológica e os motivos que devem animar os critérios para não se omitir. O compromisso com o “salvamento da vida na terra” faz parte da própria doutrina cristã pelo fato de envolver o “maior dos mandamentos: amai-os uns aos outros”. Ora, o amor ao próximo pressupõe que as pessoas  encontrem um ambiente que lhes permita uma existência digna. Em conjunto com outras condições o habitat natural, a “nossa casa”, ocupa um lugar de primeiríssima importância. Mais acima já nos ocupamos amplamente com essa temática. Morar numa casa confortável é o ponto de partida para a realização pessoal, o sucesso no relacionamento com as pessoas e, por isso mesmo, para a harmonia e a paz social. É condição também para que as pessoas  tenham como usufruir do gozo pleno daquilo que o homem tem de mais humano: as emoções, a apreciação do artístico na natureza, a contemplação do belo, a percepção do divino nas modalidades mais inusitadas. “Por isso, é bom  para a  humanidade e o mundo, que nós crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções” (Laudato se, 64),