Acontece
que a fé não se resume na conclusão final de um raciocínio irretocável ou da
lógica de um silogismo sem brechas. De forma análoga a fé que leva um cientista
a crer não vem a ser uma resposta conclusiva a perguntas que foram sendo
respondidas por descobertas e pesquisas de laboratório, simulados por meio de
modelos matemáticos, ou reveladas por médias estatísticas. Dito de outra
maneira. A fé não é indutível a partir de conclusões obtidas de resultados
científicos, nem dedutível pela lógica.
Cabe
então a pergunta: no final das contas como é que um cientista ou um filósofo
chega a ter uma fé convicta e não resignar-se ao “ignoramus et ignorabimus” do
agnóstico, ou professar o ateísmo, que em última análise não passa de uma modalidade de fé?
O
ato de fé vem a ser sempre um passo para
o improvável, para o não racional, mas não para o irracional. Não resulta de
uma demonstração com a certeza “do dois mais dois são quatro”, mas da percepção
sensorial, do “farejar”, da intuição, da espontaneidade que dispensa a
comprovação científica ou a racionalidade da lógica. Em outras palavras. Dispensa a racionalidade
científica e a racionalidade filosófica.
Pensando
bem as duas racionalidades têm como fonte geradora a inteligência reflexa.
Trabalha, portanto, com dois instrumentos de que homem dispõe para entender o
universo, a natureza e a si próprio.. Abre-se aqui toda uma nova perspectiva
quando se trata da fé e com todas as consequências que decorrem dela. A
repercussão prática da fé transcende em muito o nível do racional. Dito de
outra maneira. O humano no homem - “Die Menschlichkeit”
– como o definiu o o Pe. Rambo, abarca a totalidade existencial do homem. A
racionalidade científica e a racionalidade filosófica, iluminam o humano no
homem a partir dos resultados obtidos com seus métodos. Mas a complexidade das
questões que envolvem o homem são de tal ordem que é inevitável o recurso a
outras vias de explicação: o instinto, a emoção, a percepção sensorial e,
sobretudo, a intuição. Em outras palavras. Cabe ao cérebro e ao coração a
tarefa solidária de apresentar uma solução aceitável para as Ciências Naturais
e as Ciências do Espírito. A combinação
harmônica dessas esferas de informação, fornecem os dados que levam as pessoas
à decisão ou não decisão por uma fé em Deus, em deuses, espíritos, forças
sobrenaturais e, não nos espantemos, na “fé” de que essas entidades não
existem, o que equivale à situação paradoxal da “fé” no ateísmo, que chega a ser tão convicta como a fé do cristão em
Deus, judeu em Jeová, do muçulmano em Alá.
Como
podemos concluir, não estamos falando de uma fé específica. Entendemos a fé
como um ato, uma postura diante de uma situação ou fato, cuja explicação foge
do alcance das vias convencionais da indução e da dedução. Sendo assim,
significa, pela sua própria natureza, um salto no escuro. O ato de fé nesse
caso, como vimos insistindo, não é racional
como também não é irracional, dependendo do ponto de vista que se olha.
Não é racional, porque a intuição, a
contemplação de uma paisagem grandiosa, de uma tempestade, o enfrentar uma
enfermidade sem cura, uma alegria fora do comum, um drama interior, o belo em
todas suas manifestações, reclama uma resposta que faça sentido. É neste
contexto que a Fé encontra o seu lugar
como resposta à intuição que se orienta por uma lógica própria, em sintonia com
as características pessoais e as singularidades de cada cultura. Foi desta
forma que foram aparecendo na história
dos povos anjos, demônios, espíritos
sobrenaturais, e nas grandes religiões monoteístas um Deus supremo.
Com
isso dispomos de uma possibilidade real de síntese consistente entre a racionalidade
dos dados da ciência e a racionalidade filosófico-teológica que levam a
intuição a perceber que na raiz do ser e acontecer da natureza, age um fator
que transcende esse nível. A intuição
encontra-se na base que prepara o salto
e legitima a aceitação de uma causa acima e além da natureza fora do tempo e do
espaço..
A
reflexão que acabamos de fazer, leva à conclusão de que não há nenhum
impedimento para a Ciência e a Religião
se darem as mãos, para, num esforço solidário entender a natureza pois, as
conclusões da ciência não excluem a doutrina religiosa e vice-versa. Pelo
contrário, complementam-se.
Voltando
à Encíclica, o Papa coloca a fé expressa na Sagrada Escritura, com destaque
para o Gênesis, como um dado fundamental quando o cristão participa da preocupação com o meio ambiente.
Se pelo simples fato de
serem humanas, as pessoas se sentem motivadas a cuidar do ambiente de que fazem
parte, os cristãos, em particular, advertem que sua tarefa no seio da Criação e
os seus deveres em relação à natureza e
ao Criador fazem parte da sua fé. Por isso é bom, para a humanidade e
para o mundo, que nós crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que
brotam das nossas convicções. (Laudato se, 64)
Aqui
o Papa toca numa questão que merece a nossa atenção. Seguidas vezes repete-se a observação que a
doutrina e, principalmente, a ascese cristã-católica estimula uma atitude de
pouca importância, até de desprezo, em relação às questões ambientais. Essa
crítica tem a sua dose de verdade, não tanto em relação à doutrina, mas quanto
à ascese. O fato de a doutrina ensinar que a vida na terra é um estágio preparatório para a vida eterna
depois da morte, repercutiu como continua repercutindo, na forma de valorizar o
meio ambiente e a vida das pessoas. A doutrina da vida como passagem distorceu
o conceito da ascese e, como consequência, a sua prática, chegando ao extremo
de considerar o corpo como um mal necessário, se muito como um instrumento
incômodo para garantir a vida eterna da alma. De outra parte a natureza não
passa de uma morada transitória, quase como que uma tenda de acampamento em
trânsito na jornada em busca da felicidade perene. Sobre essa base doutrinária
a ascese consolidou durante séculos, modelos de comportamento. É neste plano
ascético e não doutrinário, que se consagraram
desvios, abusos e verdadeiras aberrações, que explicam as reservas, as
desconfianças e a acusações do pouco interesse
de muitos cristãos pela salvação da vida na terra.
Esses
desvios levam a um equívoco na maneira de avaliar a inserção do homem no seu
habitat natural. Como já foi fartamente
demonstrado, a espécie humana, como qualquer outra está ontologicamente
condicionada pela “sua casa” natural. Nela surgiu como as demais espécies vivas
os elementos que entram na estrutura e funcionamento do seu organismo vem da
terra em que vive. Os alimentos de que precisa para viver, são os mesmos das demais espécies. Divide com elas os
mesmos instintos e a mesma forma de perpetuar-se. Soma-se a tudo isso o fato de
encontrar na natureza os estímulos para as suas emoções, suas manifestações
artísticas, sua criatividade, gozo do belo, seu imaginário, suas percepções
mágicas e religiosas.
O
equívoco de muitos teóricos da ascese consiste em considerar o homem como que
condenado a passar um tempo de prova na natureza, um transeunte, um peregrino
que está de passagem, merecendo a entrada na “casa definitiva”. O corpo precisa
ser disciplinado e despojado para suportar e superar os acidentes de percurso. Estamos assim
diante do cenário propício para o tratamento do corpo com rigor e disciplina. A
história do cristianismo está repleta de modalidades de mortificações do corpo
que, em casos extremos, passam das fronteiras do irracional. Exemplos de
extremismo temos nos anacoretas reclusos em claustros sem comunicação com o
mundo exterior, nos eremitas em suas cavernas no deserto ou na montanha.
Práticas de jejum e flagelação que comprometem a saúde e a própria vida, são
irracionais e beiram ao suicídio. Essas formas de desprezo do mundo a ponto de
degradá-lo a um mal necessário e tratar o corpo como uma fera que precisa ser
mantida na linha com chicote, não podem
ser justificadas para quem goza de sã
razão.
De
uma forma ou outra a ascese da alienação e desvalorização das coisas materiais
generalizou-se em não poucos ambientes cristãos. Contaminou curas de almas que,
por sua vez, as difundiram nas suas comunidades. Explica-se assim, até certo
ponto, que justa ou injustamente acusa-se a religião como responsável pelo baixo interesse
de muitos pela questão ambiental. A verdade é que se essa influência existe mas
não se pode creditar à doutrina cristã, mas à ascese que dita as regras para o comportamento e assim,
indiretamente, influi na valorização das “coisas terrenas”. É claro que essa problemática
abre um enorme leque de matérias que merecem uma séria reflexão. O Papa deixa
claro que o zelo pela natureza faz parte da doutrina e, em sendo assim, é uma
questão de fé, de acordo com a citação mais acima.
Frente
à e declaração explícita que o cristão tem compromisso com a questão ecológica
como algo que decorre da própria Fé, leva a desdobramentos de natureza
teológica e histórica. Evidentemente não cabe numa Encíclica que centra suas
atenções na questão ecológica, desenvolver uma Teologia da Criação. Por isso o
Papa sinaliza no Gênesis e em outros tantos textos sagrados a intenção do
Criador de deixar claro que para Ele, a criação do homem faz parte do conjunto
da Criação como qualquer outra espécie. Não só se insere nessa gigantesca e
complexa obra, como é a sua coroação. Uma corrente de cientistas chega ao ponto
de afirmar que a espécie humana não significa, por assim dizer, o último e mais
complexo dos rebentos da evolução, mas a sua própria razão de ser, isto é, a evolução da natureza e da
vida têm como finalidade o surgimento da espécie humana. Na primeira narração da obra criadora, o plano de Deus incluiu a criação
da humanidade. Depois da criação homem e da mulher, afirma-se que “Deus,
observando a sua obra, considerou-a muito boa”. (Laudato si, 65)
Mas
o significado da criação do homem não se esgota nesse nível. De um lado, o
homem equipara-se com os demais seres
vivos por ter sido criado sobre as mesmas bases químicas, físicas e biológicas.
Foi feito do “mesmo pó da terra”. Por esse
lado a espécie humana não se diferencia das outras e, como tal, a sua
compreensão é legitimamente reivindicada
pela ciência. Acontece que o homem vem a ser mais, muito mais do que as outras
espécies vivas. A afirmação encontra-se também no Gênesis (1,26) ao ensinar que
“cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus”.
(Laudato se, 65).
A
Encíclica insiste no significado: “Esta afirmação mostra-nos a
imensa dignidade de cada pessoa humana que não é somente algum coisa, mas alguém,
capaz de conhecer as respostas e deliberadamente se doar e entrar em comunhão
com as outras pessoas. (cf. Laudato se, 65). O Papa João Paulo II ampliou essa
concepção do significado da espécie humana. “O amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano confere-lhe
uma dignidade infinita”. (cf. Laudadto se, 65). Posta nessa perspectiva a
existência humana entra numa dimensão que, sem negar a dimensão como espécie
biológica, tem consciência que a vida não “se perde num caos desesperador, num mundo
regido pelo puro caos ou por círculos que se repetem sem sentido”. (Laudato se,
65). A criação é um projeto divino que implica numa razão de ser, numa
teleologia que a orienta para um objetivo a ser alcançado. Melhor que qualquer
outro Teilhard de Chardin resumiu o projeto da criação na mega compreensão do
universo em que o “alfa” é o começo de tudo e o “ômega” o destino de tudo. É
oportuno lembrar que no “alfa” já estão previstos os caminhos a seguir e as
leis que regem a jornada em direção ao objetivo final, o “ômega”, tudo
impulsionado por uma teleologia que cuida para não acontecerem desvios capazes
de frustrar o plano como um todo. As características físico-geográficas moldam
o cenário natural no qual os nano e micro organismos, plantas, animais e o
homem em harmonia fazem acontecer a caminhada universal em busca do “ômega”,
razão de ser de tudo o que acontece na Criação. Em meio a esse acontecer da
Criação o homem é, de um lado um fator como as demais espécies. Distancia-se,
porém, por ser portador de inteligência reflexa, de consciência moral e dotado
de liberdade. Pela primeira participa
conscientemente, com espírito curioso e crítico, de tudo o que acontece e sua
volta e interfere intencionalmente no curso dos acontecimentos. A consciência
moral aponta os limites de ação. Enfim, a liberdade permite inclusive
contrariar as exigências da consciência moral e, em se tratando dos bens
naturais levar ao desastre pelo abuso da intervenção no seu habitat natural. Em
resumo. Junto com a natureza Deus criou o homem. De um lado tem raízes
existenciais nessa “sua casa” natural, do outro, pela inteligência reflexa,
pela consciência moral e, sobretudo,
pela liberdade dispõe do livre arbítrio de, ou zelar pela “morada” ou
degradá-la.
O
Papa continua a reflexão sobre a criação do homem e seu lugar na natureza,
insistindo no fato de que o Gênesis se vale de uma narrativa simbólica. (cf.
Laudato se, 66). A leitura dessa
passagem do texto sagrado sugere como causa do pecado a ruptura da harmonia nas
relações fundamentais que vinculam o homem com Deus, com o próximo e com a
natureza. Não foi uma ruptura superficial e externa e, sim, interna e
existencial. ”Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade
e toda a Criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus,
recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas” (Laudato se, 66).
Interpretando mal o mandato “dominar a terra”, o homem arvorou-se em “senhor da
terra”, em dono dos seus recursos. Em nome desse entendimento, permite-se qualquer
exploração dos recursos naturais, qualquer agressão, mesmo gratuita, ao habitat
natural. “Como resultado a relação
originalmente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se em
conflito” (Laudato se, 66).
E
voltamos ao ponto de partida das nossas reflexões, A criação, a terra, “a nossa
casa”, na qual nascemos, vivemos e que nos sustenta, é ontologicamente um bem
comum e como tal não pode privatizado. Em última análise o homem não pode ser
dono, apenas usufrutuário e administrador da terra e dos seus recursos. E,
novamente nesses termos, qualquer pessoa tem o direito de “nascença” ao uso e
fruto dos dons da terra. Sob hipótese alguma justifica-se o domínio absoluto
sobre esses bens. Por isso a propriedade legal de uma porção de terra, por ex., não pode negar os “frutos
da terra” quando está em jogo um mínimo de vida digna de seres humanos. Se o
estatuto da propriedade legal é a condição para estimular os proprietários na
exploração produtiva dos bens, não pode servir de pretexto para negar às
pessoas a satisfação das demandas básicas para viver.
Mais
uma vez impõem-se os postulados éticos como critérios últimos a motivar a
consciência, as políticas e ações em favor da vida na terra. O subverter ou o
ignorar desse fundamento, levou o viver na natureza, em muitas situações ao
conflito. Longe do modelo original da convivência harmoniosa do homem com a
terra, optou-se pelo caminho da ruptura e da desarmonia. No seu estilo peculiar
Nietzsche fustiga essa ruptura da
harmonia primordial. “Antigamente havia povos e rebanhos, não entre nós,
irmãos. Entre nós temos o Estado. O Estado? que vem a ser isso? Vamos lá. Abram
bem os ouvidos o que penso da morte dos povos. O Estado é o mais gélido de
todos os monstros. Mente com frieza. A mentira flui da sua boca: Eu, o Estado,
sou o povo”. (Nietzsche, 1913, p. 69).
Na versão do Papa o pecado como entendido mais acima é o responsável pela
situação. “O pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas
guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis,
nos ataques contra a natureza”. (Laudato si, 66). Vale a pena reproduzir a
passagem da Encíclica onde, como autoridade máxima da Igreja, o Papa insiste na
interpretação correta do Gênesis quando fala da relação homem-natureza.
Não somos Deus. A terra
existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação
lançada contra o pensamento
judaico-cristão: foi dito que a narração do Gênesis (Gn,1,28) que
convida a dominar a terra, favoreceria a exploração selvagem da natureza,
apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador. Mas esta não é uma
interpretação correta da Bíblia. como a
entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos
de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos rejeitar decididamente que, do
fato de ser criado à imagem e semelhança
de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as
outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma
justa hermenêutica e lembrar que nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo. (Gn, 2, 15) Enquanto
“cultivar” quer dizer trabalhar um
terreno, “guardar” significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica
uma relação de reciprocidade responsável
entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra
aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de
proteger e garantir a sua continuidade a
sua fertilidade para as gerações futuras (Laudato se, 67)
A melhor maneira de colocar
o ser humano no seu lugar e acabar com sua pretensão de ser dominador absoluto
da terra, é voltar a propor um Pai criador o único dono do mundo; caso
contrário, o ser humano tenderá sempre a
querer impor à natureza as suas próprias
leis e interesses. (Lauato si, 75)