Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 40 -

Acontece que a fé não se resume na conclusão final de um raciocínio irretocável ou da lógica de um silogismo sem brechas. De forma análoga a fé que leva um cientista a crer não vem a ser uma resposta conclusiva a perguntas que foram sendo respondidas por descobertas e pesquisas de laboratório, simulados por meio de modelos matemáticos, ou reveladas por médias estatísticas. Dito de outra maneira. A fé não é indutível a partir de conclusões obtidas de resultados científicos, nem dedutível pela  lógica.

Cabe então a pergunta: no final das contas como é que um cientista ou um filósofo chega a ter uma fé convicta e não resignar-se ao “ignoramus et ignorabimus” do agnóstico, ou professar o ateísmo, que em última análise não passa  de uma modalidade de fé?

O  ato de fé vem a ser sempre um passo para o improvável, para o não racional, mas não para o irracional. Não resulta de uma demonstração com a certeza “do dois mais dois são quatro”, mas da percepção sensorial, do “farejar”, da intuição, da espontaneidade que dispensa a comprovação científica ou a racionalidade da lógica.  Em outras palavras. Dispensa a racionalidade científica e a racionalidade filosófica.

Pensando bem as duas racionalidades têm como fonte geradora a inteligência reflexa. Trabalha, portanto, com dois instrumentos de que homem dispõe para entender o universo, a natureza e a si próprio.. Abre-se aqui toda uma nova perspectiva quando se trata da fé e com todas as consequências que decorrem dela. A repercussão prática da fé transcende em muito o nível do racional. Dito de outra maneira. O humano no homem -  “Die Menschlichkeit” – como o definiu o o Pe. Rambo, abarca a totalidade existencial do homem. A racionalidade científica e a racionalidade filosófica, iluminam o humano no homem a partir dos resultados obtidos com seus métodos. Mas a complexidade das questões que envolvem o homem são de tal ordem que é inevitável o recurso a outras vias de explicação: o instinto, a emoção, a percepção sensorial e, sobretudo, a intuição. Em outras palavras. Cabe ao cérebro e ao coração a tarefa solidária de apresentar uma solução aceitável para as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito.  A combinação harmônica dessas esferas de informação, fornecem os dados que levam as pessoas à decisão ou não decisão por uma fé em Deus, em deuses, espíritos, forças sobrenaturais e, não nos espantemos, na “fé” de que essas entidades não existem, o que equivale à situação paradoxal da “fé” no ateísmo, que chega  a ser tão convicta como a fé do cristão em Deus, judeu em Jeová, do muçulmano em Alá.

Como podemos concluir, não estamos falando de uma fé específica. Entendemos a fé como um ato, uma postura diante de uma situação ou fato, cuja explicação foge do alcance das vias convencionais da indução e da dedução. Sendo assim, significa, pela sua própria natureza, um salto no escuro. O ato de fé nesse caso, como vimos insistindo, não é racional  como também não é irracional, dependendo do ponto de vista que se olha. Não é  racional, porque a intuição, a contemplação de uma paisagem grandiosa, de uma tempestade, o enfrentar uma enfermidade sem cura, uma alegria fora do comum, um drama interior, o belo em todas suas manifestações, reclama uma resposta que faça sentido. É neste contexto  que a Fé encontra o seu lugar como resposta à intuição que se orienta por uma lógica própria, em sintonia com as características pessoais e as singularidades de cada cultura. Foi desta forma que foram aparecendo na  história dos povos  anjos, demônios, espíritos sobrenaturais, e nas grandes religiões monoteístas um  Deus supremo.

Com isso dispomos de uma possibilidade real de síntese consistente entre a racionalidade dos dados da ciência e a racionalidade filosófico-teológica que levam a intuição a perceber que na raiz do ser e acontecer da natureza, age um fator que transcende  esse nível. A intuição encontra-se na base  que prepara o salto e legitima a aceitação de uma causa acima e além da natureza fora do tempo e do espaço..

A reflexão que acabamos de fazer, leva à conclusão de que não há nenhum impedimento para  a Ciência e a Religião se darem as mãos, para, num esforço solidário entender a natureza pois, as conclusões da ciência não excluem a doutrina religiosa e vice-versa. Pelo contrário, complementam-se.

Voltando à Encíclica, o Papa coloca a fé expressa na Sagrada Escritura, com destaque para o Gênesis, como um dado fundamental quando o cristão  participa da preocupação com o meio ambiente.

Se pelo simples fato de serem humanas, as pessoas se sentem motivadas a cuidar do ambiente de que fazem parte, os cristãos, em particular, advertem que sua tarefa no seio da Criação e os seus deveres em relação à natureza e  ao Criador fazem parte da sua fé. Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções. (Laudato se, 64)

Aqui o Papa toca numa questão que merece a nossa atenção.  Seguidas vezes repete-se a observação que a doutrina e, principalmente, a ascese cristã-católica estimula uma atitude de pouca importância, até de desprezo, em relação às questões ambientais. Essa crítica tem a sua dose de verdade, não tanto em relação à doutrina, mas quanto à ascese. O fato de a doutrina ensinar que a vida na terra é um  estágio preparatório para a vida eterna depois da morte, repercutiu como continua repercutindo, na forma de valorizar o meio ambiente e a vida das pessoas. A doutrina da vida como passagem distorceu o conceito da ascese e, como consequência, a sua prática, chegando ao extremo de considerar o corpo como um mal necessário, se muito como um instrumento incômodo para garantir a vida eterna da alma. De outra parte a natureza não passa de uma morada transitória, quase como que uma tenda de acampamento em trânsito na jornada em busca da felicidade perene. Sobre essa base doutrinária a ascese consolidou durante séculos, modelos de comportamento. É neste plano ascético e não doutrinário, que se consagraram  desvios, abusos e verdadeiras aberrações, que explicam as reservas, as desconfianças e a acusações do pouco interesse  de muitos  cristãos  pela salvação da vida na terra.

Esses desvios levam a um equívoco na maneira de avaliar a inserção do homem no seu habitat natural. Como já foi fartamente  demonstrado, a espécie humana, como qualquer outra está ontologicamente condicionada pela “sua casa” natural. Nela surgiu como as demais espécies vivas os elementos que entram na estrutura e funcionamento do seu organismo vem da terra em que vive. Os alimentos de que precisa para viver, são os mesmos  das demais espécies. Divide com elas os mesmos instintos e a mesma forma de perpetuar-se. Soma-se a tudo isso o fato de encontrar na natureza os estímulos para as suas emoções, suas manifestações artísticas, sua criatividade, gozo do belo, seu imaginário, suas percepções mágicas e religiosas.

O equívoco de muitos teóricos da ascese consiste em considerar o homem como que condenado a passar um tempo de prova na natureza, um transeunte, um peregrino que está de passagem, merecendo a entrada na “casa definitiva”. O corpo precisa ser disciplinado e despojado para suportar e superar  os acidentes de percurso. Estamos assim diante do cenário propício para o tratamento do corpo com rigor e disciplina. A história do cristianismo está repleta de modalidades de mortificações do corpo que, em casos extremos, passam das fronteiras do irracional. Exemplos de extremismo temos nos anacoretas reclusos em claustros sem comunicação com o mundo exterior, nos eremitas em suas cavernas no deserto ou na montanha. Práticas de jejum e flagelação que comprometem a saúde e a própria vida, são irracionais e beiram ao suicídio. Essas formas de desprezo do mundo a ponto de degradá-lo a um mal necessário e tratar o corpo como uma fera que precisa ser mantida na linha com  chicote, não podem ser   justificadas para quem goza de sã razão.

De uma forma ou outra a ascese da alienação e desvalorização das coisas materiais generalizou-se em não poucos ambientes cristãos. Contaminou curas de almas que, por sua vez, as difundiram nas suas comunidades. Explica-se assim, até certo ponto, que justa ou injustamente acusa-se a  religião como responsável pelo baixo interesse de muitos pela questão ambiental. A verdade é que se essa influência existe mas não se pode creditar à doutrina cristã, mas à ascese que dita as  regras para o comportamento e assim, indiretamente, influi na valorização das “coisas terrenas”. É claro que essa problemática abre um enorme leque de matérias que merecem uma séria reflexão. O Papa deixa claro que o zelo pela natureza faz parte da doutrina e, em sendo assim, é uma questão de fé, de acordo com a citação mais acima.

Frente à e declaração explícita que o cristão tem compromisso com a questão ecológica como algo que decorre da própria Fé, leva a desdobramentos de natureza teológica e histórica. Evidentemente não cabe numa Encíclica que centra suas atenções na questão ecológica, desenvolver uma Teologia da Criação. Por isso o Papa sinaliza no Gênesis e em outros tantos textos sagrados a intenção do Criador de deixar claro que para Ele, a criação do homem faz parte do conjunto da Criação como qualquer outra espécie. Não só se insere nessa gigantesca e complexa obra, como é a sua coroação. Uma corrente de cientistas chega ao ponto de afirmar que a espécie humana não significa, por assim dizer, o último e mais complexo dos rebentos da evolução, mas a sua própria razão  de ser, isto é, a evolução da natureza e da vida têm como finalidade o surgimento da espécie humana. Na  primeira narração da obra  criadora, o plano de Deus incluiu a criação da humanidade. Depois da criação homem e da mulher, afirma-se que “Deus, observando a sua obra, considerou-a muito boa”. (Laudato si, 65)

Mas o significado da criação do homem não se esgota nesse nível. De um lado, o homem equipara-se com os  demais seres vivos por ter sido criado sobre as mesmas bases químicas, físicas e biológicas. Foi feito do “mesmo  pó da terra”. Por esse lado a espécie humana não se diferencia das outras e, como tal, a sua compreensão é legitimamente  reivindicada pela ciência. Acontece que o homem vem a ser mais, muito mais do que as outras espécies vivas. A afirmação encontra-se também no Gênesis (1,26) ao ensinar que “cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus”. (Laudato se, 65).

A Encíclica  insiste  no significado: “Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana que não é somente algum coisa, mas alguém, capaz de conhecer as respostas e deliberadamente se doar e entrar em comunhão com as outras pessoas. (cf. Laudato se, 65). O Papa João Paulo II ampliou essa concepção do significado da espécie humana. “O amor muito especial que  o Criador tem por cada ser humano confere-lhe uma dignidade infinita”. (cf. Laudadto se, 65). Posta nessa perspectiva a existência humana entra numa dimensão que, sem negar a dimensão como espécie biológica, tem consciência que a vida não  “se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro caos ou por círculos que se repetem sem sentido”. (Laudato se, 65). A criação é um projeto divino que implica numa razão de ser, numa teleologia que a orienta para um objetivo a ser alcançado. Melhor que qualquer outro Teilhard de Chardin resumiu o projeto da criação na mega compreensão do universo em que o “alfa” é o começo de tudo e o “ômega” o destino de tudo. É oportuno lembrar que no “alfa” já estão previstos os caminhos a seguir e as leis que regem a jornada em direção ao objetivo final, o “ômega”, tudo impulsionado por uma teleologia que cuida para não acontecerem desvios capazes de frustrar o plano como um todo. As características físico-geográficas moldam o cenário natural no qual os nano e micro organismos, plantas, animais e o homem em harmonia fazem acontecer a caminhada universal em busca do “ômega”, razão de ser de tudo o que acontece na Criação. Em meio a esse acontecer da Criação o homem é, de um lado um fator como as demais espécies. Distancia-se, porém, por ser portador de inteligência reflexa, de consciência moral e dotado de liberdade.  Pela primeira participa conscientemente, com espírito curioso e crítico, de tudo o que acontece e sua volta e interfere intencionalmente no curso dos acontecimentos. A consciência moral aponta os limites de ação. Enfim, a liberdade permite inclusive contrariar as exigências da consciência moral e, em se tratando dos bens naturais levar ao desastre pelo abuso da intervenção no seu habitat natural. Em resumo. Junto com a natureza Deus criou o homem. De um lado tem raízes existenciais nessa “sua casa” natural, do outro, pela inteligência reflexa, pela consciência moral  e, sobretudo, pela liberdade dispõe do livre arbítrio de, ou zelar pela “morada” ou degradá-la.

O Papa continua a reflexão sobre a criação do homem e seu lugar na natureza, insistindo no fato de que o Gênesis se vale de uma narrativa simbólica. (cf. Laudato se, 66). A  leitura dessa passagem do texto sagrado sugere como causa do pecado a ruptura da harmonia nas relações fundamentais que vinculam o homem com Deus, com o próximo e com a natureza. Não foi uma ruptura superficial e externa e, sim, interna e existencial. ”Esta ruptura é o pecado. A harmonia entre o Criador, a humanidade e toda a Criação foi destruída por termos pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas” (Laudato se, 66). Interpretando mal o mandato “dominar a terra”, o homem arvorou-se em “senhor da terra”, em dono dos seus recursos. Em nome desse entendimento, permite-se qualquer exploração dos recursos naturais, qualquer agressão, mesmo gratuita, ao habitat natural. “Como resultado  a relação originalmente harmoniosa entre o ser humano e a natureza transformou-se em conflito” (Laudato se, 66).

E voltamos ao ponto de partida das nossas reflexões, A criação, a terra, “a nossa casa”, na qual nascemos, vivemos e que nos sustenta, é ontologicamente um bem comum e como tal não pode privatizado. Em última análise o homem não pode ser dono, apenas usufrutuário e administrador da terra e dos seus recursos. E, novamente nesses termos, qualquer pessoa tem o direito de “nascença” ao uso e fruto dos dons da terra. Sob hipótese alguma justifica-se o domínio absoluto sobre esses bens. Por isso a propriedade legal de uma porção  de terra, por ex., não pode negar os “frutos da terra” quando está em jogo um mínimo de vida digna de seres humanos. Se o estatuto da propriedade legal é a condição para estimular os proprietários na exploração produtiva dos bens, não pode servir de pretexto para negar às pessoas a satisfação das demandas básicas para viver.

Mais uma vez impõem-se os postulados éticos como critérios últimos a motivar a consciência, as políticas e ações em favor da vida na terra. O subverter ou o ignorar desse fundamento, levou o viver na natureza, em muitas situações ao conflito. Longe do modelo original da convivência harmoniosa do homem com a terra, optou-se pelo caminho da ruptura e da desarmonia. No seu estilo peculiar Nietzsche  fustiga essa ruptura da harmonia primordial. “Antigamente havia povos e rebanhos, não entre nós, irmãos. Entre nós temos o Estado. O Estado? que vem a ser isso? Vamos lá. Abram bem os ouvidos o que penso da morte dos povos. O Estado é o mais gélido de todos os monstros. Mente com frieza. A mentira flui da sua boca: Eu, o Estado, sou o  povo”. (Nietzsche, 1913, p. 69). Na versão do Papa o pecado como entendido mais acima é o responsável pela situação. “O pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza”. (Laudato si, 66). Vale a pena reproduzir a passagem da Encíclica onde, como autoridade máxima da Igreja, o Papa insiste na interpretação correta do Gênesis quando fala da relação homem-natureza.

Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação lançada contra o pensamento  judaico-cristão: foi dito que a narração do Gênesis (Gn,1,28) que convida a dominar a terra, favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como dominador  e devastador. Mas esta não é uma interpretação correta da Bíblia. como  a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos rejeitar decididamente que, do fato de ser  criado à imagem e semelhança de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica e lembrar que nos convidam a “cultivar e guardar”  o jardim do mundo. (Gn, 2, 15) Enquanto “cultivar” quer dizer  trabalhar um terreno, “guardar” significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de  reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de proteger e garantir a sua continuidade  a sua fertilidade para as gerações futuras (Laudato se, 67)
A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor um Pai criador o único dono do mundo; caso contrário, o ser humano  tenderá sempre a querer  impor à natureza as suas próprias leis e interesses. (Lauato si, 75)


This entry was posted on quarta-feira, 27 de dezembro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.