Archive for outubro 2015

Sobre a floresta #2

E para  mostrar a que ponto o caminhar por uma floresta é capaz de estimular a  as emoções, fazer ferver a imaginação, viajar em espírito  pela história e pinçar momentos em que a simbólica das árvores da floresta se mostra especialmente vigorosa, reproduzimos aqui as impressões registradas pelo Pe. Balduino Rambo em seu diário, quando da visita ao parque das Sequoias nos Estados Unidos.

Em meio a essa floresta sem igual há um pequeno museu no qual o professor universitário Frank Potter e sua esposa explicam aos hóspedes tudo que merece ser conhecido. Onde as sequoias se concentram em grande  número, como em volta do museu, difunde-se por toda a pare na floresta, o brilho marrom-vermelho da sua casca. Centena de árvores que se confundem com ciprestes, ladeiam os caminhos. Misturadas com as sequoias e formando a massa principal da floresta. Crescem milhares de cedros da Califórnia, pinheiros brancos, pinheiros Douglas, que em altura não perdem para os gigantes, embora raras vezes passem de dois metros de diâmetro. Um líquen amarelo-ouro reveste o tronco do pinheiro branco. O reflexo mescla-se com o marrom-claro da casca da sequo ia, e combinado com as manchas  do sol e a sombra, resultam numa luz colorida de estrema suavidade, envolvendo todo o chão da floresta. Sem querer a gente se flagra pequenino como um camundongo entre esses gigantes reunidos em conselho. Que cantos não teriam deixado os poetas e cantores do Antigo Testamento, que falam com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos gigantes do Monte Sião, se tivessem escutado a voz de Deus nessas florestas. Enquanto Davi e Salomão cantavam seus salmos; quando Isaías levava ao seu povo o anúncio a vinda futura do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos dias sentado no trono da sua glória, mais de mil anos já pesavam sobre muitas dessas árvores. O Grizzly Gigante contava com dois mil anos quando no Gólgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: Verdadeira árvore na qual pendeu o Senhor mergulhado em angustia mortal”. O canto de luto da árvore do Paraíso, o canto da árvore da vida dos deuses germânicos, o canto de vitória da árvore da Redenção, toda a simbólica da árvore nas sagas e na arte da humanidade, toma conta do homem que caminha na penumbra mortiça dessa floresta. Há muitas verdades entre o céu e a terra que não se encontram  nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta. [1]

Como se pode ver é na trilha da literatura, e em especial da poética, em que o tema floresta aparece como fonte inspiradora rica e sempre presente. Conclui-se daí que nela  se ocultam muito mais nuances e desdobram-se dimensões que o utilitarismo puro e simples, a percepção estática da curiosidade à procura de causas e efeitos, leis naturais, correlações e interdependências estão em condições de perceber, registrar e interpretar. Uexkühl fornece a dica para aprofundar mais um pouco a reflexão.

Embriagados pelo papel de senhores  da natureza, esquecemo-nos de que, mesmo que tudo fosse obra das nossas descobertas, da nossa criação, a nossa tarefa na natureza não se resumiria  em última análise nem em descobrir, nem em criar, mas que nós próprios somos descoberta e criação da natureza, a qual estamos em condição de usar mal, mas que somos tão pouco capazes de criar com as nossas condições físicas e espirituais. [2]

Data do tempo do barroco a determinação dada por Christian V. von Schleswig-Hostein em 1671, empenhado em impedir a destruição das florestas do ducado: “Para que com o tempo não desapareça uma das grandes  maravilhas com que Deus brindou a natureza do nosso arquiducado. E Hans Carl von Carlowitz escreveu em 1708:

Escritores antigos e recentes testemunham que as belas florestas, também as grandes árvores excepcionalmente belas, sempre foram  consideradas com grandes honras entre os nossos velhos alemães e seus vizinhos. Por isso, não é de admirar muito que a quantidade, a elegância e o tamanho de tantas árvores reunidas, além de reinar permanentemente um silêncio profundo e sombra escura, fossem tomadas por temor sagrado, atribuindo a esses lugares algo de divino. (... ) Entre eles milhões de troncos semeiam-se a si mesmos sem ajudar e sem serem ajudados. Plantam-se sem a ajuda do homem. Deus os semeia, planta, multiplica e os conserva, apesar de todos os obstáculos, intempéries e prejuízos. [3]

E para fechar a série de manifestações que, quem sabe, ajudam numa tentativa de aproximação maior ao âmago complexo  e misterioso  do significado da floresta, Rosegger afirma: “Somente o homem solitário encontra  a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e deixa  apenas árvores para trás”. E segundo Ewelk: “Pois a floresta não representa nenhuma alienação da vida. Pelo contrário. A floresta é vida intensa”. E como conclusão, a opinião de Riehl: “Também quando já não precisarmos mais de madeira seca para aquecer por fora, tanto mais indispensável será a verde para o homem, viva e cheia de seiva”. [4]

Depois do registro de todas essas opiniões, interpretações e conclusões, ousamos uma aproximação maior do significado de floresta. Dependendo do ângulo pelo qual se olha e o interesse que subjaz  à análise, a compreensão  que se tem da floresta e do conceito que se formula, vão de uma visão utilitária e mecanicista até aproximar-se de uma concepção panteísta do mundo e da natureza.

A magnitude do desafio que nos espera no esforço da busca de uma definição satisfatória do que seja uma floreta, fica evidente na teorização do problema por Dengels.

A floresta é uma comunidade viva composta por todas as formas  e graus imagináveis de interdependências recíprocas, somadas à competição e à mutua ajuda sob as mais diversas formas imagináveis. Comandado pelo princípio do equilíbrio, o qual, sob a influência dos mais variados condicionamentos externos, incorpora constantemente formas de floresta mais ou menos delimitadas, para as quais, apos perturbações e oscilações, se orienta sempre de novo a biocinose.[5]

Esse tipo de comunidades são tecnicamente definidas como “biocinoses”. No contexto em que o conceito foi criado e está sendo empregado, mostra que seu significado é limitado. Limita-se na sua versão original, à relação mútua que prospera  entre os seres vivos no seio de uma comunidade desse tipo. Oferece, sem dívida, uma compreensão da floresta muito mais compreensiva e muito mais completa do que o conceito de floresta como fábrica de madeira, como refúgio de animais, como abrigo para o homem, como fator de equilíbrio climático e edafológico, de preservação de mananciais de água, etc., etc. Uma análise mais atenta deixa claro de que algumas questões reclamam um aprofundamento maior. O conceito de biocinose, comunidade viva é útil e até certo ponto fundamental. Oferece como que uma macrovisão de ordem, de arquitetura integrada, de funcionalidade interna complementar, entre os elementos que integram uma floresta. Apesar  de todas as vantagens o conceito de “biocinose” oferece riscos e armadilhas nada desprezíveis.

Primeiro, silencia ou desconsidera o lugar decisivo que cabe ao solo, ao ar, à temperatura, à topografia, à região climática, à regularidade e à definição na demarcação das estações do ano, à composição, estrutura e disposição das rochas.

Segundo, atribui um peso exagerado à noção de “comunidade viva”. Além das restrições a serem feitas à origem do conceito emprestado à Sociologia, e por isso mesmo pedindo precaução quando utilizado na definição da floresta. Visto por esse lado não poucos fatos e fenômenos acontecem à margem da “comunidade de vida”. Já em 1943 Fabricius alertou que o conceito é capaz de induzir ao equívoco.

Trata-se de uma definição de floresta que preocupa, porque cada membro dessa comunidade  (portanto seres vivos), exceto poucos casos de uma verdadeira comunidade, somados a casos de parasitismo, cada integrante da comunidade tem perfeitas condições de levar vida autônoma, e conforme cada caso, associa-se a outros seres vivos. Acontece que a acepção alemã do conceito é que cada membro de uma comunidade faz livremente sacrifícios pelo outro e lhe presta serviços, coisas, que em se tratando da floresta, não passam de um grande equívoco. No caso de o conceito não ter sido apresentado com o nome de “biocinose”, provavelmente não teria significado uma grande descoberta. [6]

Conclui-se daí que a floresta significa algo mais, e como realidade, situa-se além de uma simples comunidade de vida. Não poucos estudiosos tentam valer-se  do conceito de “organismo”, no esforço de uma compreensão mais objetiva e mais completa da natureza da floresta. Lemnertz faz  a seguinte consideração:

 O que e torna evidente na comunidade de vida é o que aparece como a somatória dos indivíduos justapostos. Mas as relações biológicas íntimas e a interdependência funcional, escapam inteiramente à percepção e são passíveis apenas de especulação. [7]

A concepção de floresta como organismo autônomo foi pela primeira vez formulada por Alfred Möller, com o objetivo de insistir no ponto de vista de que a floresta representa uma realidade biológica única, em oposição àquelas que a simplificam, reduzindo-a a uma mera fornecedora de matéria prima, perdendo a visão do todo. De tantas árvores e troncos já não se percebe a floresta. Na proposta de Möller nota-se claramente uma reorientação do foco de discussão. Opõe a visão biológica à visão mecanicista e utilitária para superar e compensar as limitações da visão sociológica da floresta. Sinaliza com uma proposta de aproximação da concepção holística, em oposição às tentativas de dissecar as estruturas que compõem uma floresta, dando ênfase à função das partes no todo.

A atividade florestal de caráter permanente percebe na floresta uma entidade viva, uma unidade integrada por inúmeros órgãos, todos operando em conjunto, em regime de reciprocidade. [8]

A concepção organísmica da floresta, conforme Möller, conquistou adeptos entusiastas e incondicionais. Não tardou, porém, que se escutassem vozes  e opiniões fortes apontando para os flancos vulneráveis. Uma dessas opiniões discordantes foi a de Dengler, classificando-a como falsa, como exagerada, capaz de levar a conclusões equivocadas.

De qualquer forma, a ligação é muito frouxa comparada com a de um organismo propriamente dito. Os membros da floresta não são órgãos no sentido estrito do termo (organo-instrumentos), destituídos de uma função e uma destinação própria e a relação superficial com o todo não os priva da sua capacidade vital e funcional.  De outra parte, a floresta não cresce de dentro para fora como um organismo, mas seus membros encontram-se na sua origem numa dinâmica livre,  de fora para dentro, como pode ser  observado em qualquer nova formação de uma floresta. [9]

Para de Fabricius o argumento  mais contundente contra a concepção organísmico de Möller.

Quando se atribui à floresta a natureza de um organismo, transfere-se a ela um conceito inspirado no conhecimento da vida dos indivíduos em determinadas partes constitutivas da floresta totalmente ignoradas. [10]

Seckholzer completa, afirmando que “a floresta é orgânica, isto é, una na sua organização, mas não organísmica, isto é, um ser vivo”. [11] Segundo ele, falta existir o gérmen como potência do todo. A vida acontece por gênese e a floresta por síntese.

De todas essas reflexões, concepções e formulações, é possível tirar algumas conclusões. Começa pelo fato de que todas elas oferecem mais ou menos elementos que iluminam a compreensão do conceito de floresta. Uns conseguem aproximar-se mais, outros menos, do âmago da questão.

Em 1943, um outro estudioso e intérprete da floresta, interessou-se  por mais uma nuança de não pouco significado. Chamou a atenção para o fato de uma floresta manifestar uma busca permanente do equilíbrio na sua economia interna.

Sua existência manifesta a propriedade da auto regulação, e caso as perturbações não tiverem ultrapassado  um determinado  nível, restabelece o equilíbrio, uma característica privativa  dos organismos, e por isso,  fala-se de uma  floresta e com razão se entende um organismo, não no sentido de um ser vivo individual, um indivíduo, mas de um organismo de ordem mais elevada. [12]

Na literatura especializada encontram-se muitas outras formulações, que em última análise, nada mais são do que tentativas para conceituar o que seja um organismo, enriquecendo-o com nuanças mais ou menos significativas. Da grande   diversidade de formulações, conclui-se que a questão não está definitivamente resolvida. Isso não significa  que cada uma delas não acrescente alguma coisa, ou ilumine alguma faceta a mais. Confirma-se o dito quando Aichinger fala em “organismo global”, ou quando Thienemann define o oceano ou a floresta, por exemplo, como uma unidade biológica formada pela comunidade viva mais o espaço vital. Expressões como “totalidade  viva”, “sistema”, “forma”, etc., de um lado mostram  uma direção comum na qual se esboça a tentativa de definição que se aproxima da natureza da floresta. Do outro, a falta de um consenso em torno de um conceito aceito por todos, prova que nem tudo está tão claro e resolvido. Qualquer uma das formulações contem muito de verdadeiro, deixando, porém, margem a questionamentos.

Parece que o conceito de organismo, combinado com o de sistema, tem tudo para oferecer uma compreensão útil, quando  se analisam as marcas que as florestas deixaram nas culturas que nelas se desenvolveram. Na verdade contemplam todos os elementos que de alguma forma tiveram papel importante na configuração cultural. Começa pela matéria prima: madeira, frutas, fibras, insetos, indispensáveis para a subsistência biológica. Passa pelos animais, pássaros, insetos, microbiologia, o clima, enfim, todo o ambiente natural característico que abrigou o homem e suas culturas. Em poucas palavras, todos esses, e certamente muitos outros, formam para o homem o espaço das suas vivências, o palco sobre o qual de desenrolou e ainda se desenrola a sua história, o entorno visível, material, concreto, invisível e imaginário, que marca  o cotidiano dos povos das florestas e perpassa toda a sua maneira de ser e agir. E para concluir esse esforço para formular um conceito aceitável do que seja uma floresta, registramos a opinião de mais três estudiosos do assunto. É de Rosegger a afirmação de que somente o solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e só ficam árvores. Para Welh a floresta é vida intensa. Mesmo durante a noite e sob a neve, continua acontecendo a vida nas suas milhares de formas  e Riehl  observa que mesmo quando já não necessitamos  da madeira seca, tanto mais o homem sentirá falta da madeira verde, com a sua seiva e sua vida.

Como se pode ver, as florestas oferecem o  ambiente natural que talvez reúna, numa síntese praticamente todos  os elementos que de alguma forma, acompanharam o homem na sua trajetória histórica e moldaram o perfil das suas culturas. Em meio ao grande cinturão de florestas subárticas que cobriram e cobrem ainda vastas áreas do hemisfério norte, tanto da Ásia, como da Europa, como da América do Norte, as florestas temperadas e as possantes florestas tropicais, gestaram-se dezenas  e milhares de culturas, entre elas das mais importantes e mais decisivas, na moldagem histórica do mundo. Nas florestas os ciclos anuais e mensais adquirem significa todo especial. Nelas fervilha a vida com uma abundancia, numa espantosa profusão e numa variedade de formas. Nela brotam milhões de fontes, são percorridas por córregos, arroios  rios caudalosos. No seu interior escondem-se lagos misteriosos. Em suas planícies, planaltos  e montanhas, a vegetação rasteira, os arbustos e os gigantes da floresta exibem toda a sua exuberância, oferecem seus frutos e essências e convidam o homem a viver à sua sombra  e ao seu abrigo, a fantástica história da sua existência. A prodigalidade da floresta lhe garante o alimento, a matéria prima para construir os abrigos, a segurança contra os inimigos naturais e contra os próprios homens. Entre os povos das florestas, revela-se com nitidez , talvez maior do que em outras circunstâncias, o convívio simbólico, a relação existencial do homem com seu hábitat. As fontes tornam-se sagradas, nos lagos moram espíritos e monstros, duendes e deuses povoam a florestas e as grandes árvores transformam-se em símbolos. Os ciclos que regem  a dinâmica  do multicolorido  e multifacetado mundo animal e vegetal  terminam por traçar a trajetória do homem que nelas vive a sua história.



[1] Rambo, Balduino. Três meses na América. Manuscrito inédito p. 205-206
[2] in  Horsmann, Erich. op. cit. p. 7
[3] Mantel, Wilhelm. Wald und Forst. Op. cit. p. 12
[4] As três citações encontram-se em Manatel, Wilherlm. Wald und Forst. Op. cit. p. 12-13
[5] in Horsmann, Erich.  Der Wald. op. cit. p. 12
[6] in Wolfath, Erich. op. cit. p. 13
[7] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 13
[8] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 13-14
[9] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 14
[10] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 14
[11] in Wolfarth, Erich. Op. cit. p. 14
[12] in Wolfarth, Erich. Op. cit. p. 14

Sobre a floresta #1

O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual,  sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria. (Balduino Rambo)

 As florestas tropicais da Ásia, África, América e Austrália, as florestas subtropicais, especialmente do Brasil, as florestas temperadas e subárticas, as mais extensas do mundo cobrindo em grande parte o hemisfério norte, na Ásia, Europa e América do Norte, assistiram ao nascimento e à evolução de milhares de povos e culturas. 

Pela sua própria natureza, as florestas oferecem um ambiente peculiar, formam uma “morada”, proporcionam um “estar em casa”, uma “Heimat”, uma “querência”, transmitem a sensação de pertencimento a um todo mais amplo, mais vasto, mais universal, mais rico do que qualquer outro entorno geográfico.

As florestas existiram antes do homem e provavelmente continuarão a existir depois dele. Entre esses dois extremos situa-se o tempo em que o homem e as florestas foram obrigados a conviver. A floresta que no passado cobria o chão da nossa terra natal nada tinha de amigável. Era terrível e hostil. Do conflito originou-se, apos muitos desencontros, maus tratos e danos para os dois lados, a certeza: na  terra há espaço tanto para o homem quanto para a floresta. Importa para o próprio homem que haja espaço para ambos. As florestas subsistem sem nós homens, não nós homens sem a floresta.  

Em poucas linhas, e principalmente nas entrelinhas,  o autor conseguiu condensar todo o potencial oculto nas entranhas de uma floresta. À primeira vista e ao primeiro contato ela assusta pela sua imponência e desperta sentimentos de temor perante o desconhecido que oculta e o mistério que a povoa. Um longo e penoso aprendizado se faz necessário  até que o homem consiga estabelecer uma relação existencial de parceria com a floresta, para que o susto, quem sabe pânico do primeiro contato, evolua para uma convivência mutuamente útil, e finalmente, consolide uma síntese, uma simbiose entre a floresta, o homem, sua cultura e sua história. 

O autor descreve a sensação vivida por um personagem jovem, que saindo da ilha de Heligoland, coberta apenas com ervas rasteiras e arbustos, se defrontou pela primeira vez, com as florestas do continente.

Apos poucos minutos de caminhada, encontrava-me bem na entrada da floresta sem fim. As árvores elevavam-se à altura do farol da terra natal. Apesar de silenciosas, falavam de alguma forma. Incontáveis elas o rodeavam, cercando pelos lados e o fechavam pelo alto. Tolhiam a visão e o apequenavam de tal modo que o suor começou a escorrer. Para fora! Correndo livrou-se do sufoco. Somente fora, ao ar livre, o peito tornou a encher-se. Meu pai costumava  referir-se seguidamente  a essa primeira experiência com a floresta. Décadas foram necessárias até perceber que é possível descansar bem na sombra de uma árvore da floresta.  

Essas observações levam a uma pergunta de difícil resposta: “Afinal o que vem a ser uma floresta?” Dependendo da perspectiva  da qual se observa, das intenções do espectador, do nível de leitura que é capaz de fazer da floresta, da intimidade ou estranheza, da atração ou do temor perante o desconhecido, sua compreensão será mais pragmática, mais utilitária, mais interesseira, mais sentimental, mais romântica, mais épica, mais mística. 

Para o madeireiro  a floresta não passa de um pedaço de chão destinado a produzir madeira e todos os objetos que nela encontram a matéria prima. Acontece que a inegável utilidade prática da floresta é incapaz sequer de ultrapassar a epiderme dessa complexa realidade. Além e mais a fundo dessa compreensão utilitária, ocultam-se dimensões que somente um observador atento que se aproxima da floresta e estabelece com ela relações mais íntimas como o cientista, o filósofo, o poeta, o místico, é capaz de perceber, intuir e vivenciar.

O madeireiro entra na floresta munido com os instrumentos de trabalho, localiza a árvores que lhe oferece a madeira desejada. Anima-o apenas a preocupação de, o mais rápido possível, pôr abaixo o gigante que levou séculos para crescer, não importando, ou nem suspeitando o que o seu ato significa na verdade em meio àquela aparente confusão de troncos, galhos, arbustos, ervas, insetos, pássaros e animais. Esse nível de  relacionamento com a floresta, obviamente não tem condições de fornecer elementos, nem quantitativos nem qualitativos, para formular um conceito com uma abrangência mínima.

O cientista entra na floresta e começa a observá-la, armado com o espírito e objetivos muito mais ambiciosos. Para ele a floresta não se resume àquela  infinidade de troncos, cipós, arbustos, árvores caídas, ao ponto de subtrair a capacidade de perceber que, a tudo isso, subjaz um sentido, realiza-se uma processo, cumpre-se   uma finalidade, enfim, é capaz de avaliar até certo ponto o que é um floresta. Desde os fenômenos  e as realidades mais simples e mais singelas, até as mais grandiosas, mais espetaculares, os troncos gigantescos, a abóbada moldada pelas copas, a perpétua penumbra povoada de sons, ruídos, urros, gritos e cantos, tudo deixa de ser um aglomerado em que a multidão dos indivíduos mascara a harmonia e a percepção da totalidade. Pouco a pouco fica claro que:

A experiência vivida na floresta que oferece apenas proveitos imediatos, não responde à indagação pela sua natureza. Aprende que o chão, as plantas, os animais e um clima adequado também fazem parte dessa realidade. E fazem parte também as nuvens que velejam no alto, o raio do sol que se infiltra pelas copas das árvores, o ruído da chuva que cai e o gelo que verga os galhos? Quando, finalmente soubermos de tudo o que lhe pertence, será que então penetramos na sua natureza? E a que ponto tudo isso se insere na dinâmica do tempo que avança sem conhecer descanso?  

Aprofundemos um pouco mais a reflexão. A busca pela natureza da floresta está completa? Satisfaz? Parece que não. A intuição nos sugere que falta algo, algo mais profundo, algo mais indevassável, para conferir ao conceito a sua plenitude. Sua compreensão integral, exaustiva e completa nos leva para além dos interesses dos que retiram da floresta a matéria prima para construir  seus abrigos ou suprir a alimentação. Constatamos  também que a curiosidade  e os métodos dos cientistas conseguem penetrar apenas até uma determinada profundidade. Acontece que a floresta é uma realidade que, de alguma forma, interessa a todos. No  quotidiano das culturas que emergem das florestas ainda hoje flui a seiva vitalizadora e regeneradora, haurida de suas entranhas fecundas e lhe garante fôlego para enfrentar e superar com êxito as calmarias e tempestades de milhares de anos de história. Nela as incógnitas da vida encontram contrapartida. O eterno e inexorável ciclo do germinar, nascer, crescer, florescer, amadurecer frutos, declinar e morrer, num vir e devir ininterrupto, fazem com que o homem se veja espelhado na floresta. E ao mesmo tempo em que se reconhece na floresta, esta lhe oferece todo um universo povoado de incógnitas, ameaças e mistérios. A literatura universal está repleta de referencias a essa face mais íntima da natureza. Tácito ao descrever a Germânia assim se expressou. “No seu todo essa terra é assustadora, ou por suas florestas ou por seus pântanos”. Sêneca deixou registrado na ep. 14.: “Ao te aproximares de uma floresta muito antiga, formada por árvores vigorosas, na qual a proximidade sobrepõe um galho ao outro, através dos quais não se enxerga nem a luz, nem o céu. A imponência, o silêncio e a penumbra da floresta te convencem de que algum deus deve habitar nela”. E Bermardo de Claraval: “Acredita-me, eu mesmo o experimentei. Encontrarás mais para ser lido nas florestas do que nos livros. Árvores e pedras te ensinarão o que nenhum mestre é capaz de transmitir”.   A floresta serve também de pano de fundo dos versos de Eichendorf em “Lorelei”: “A floresta é grande  e estás sozinha, bela noiva ( ... ) Conheces-me bem. Do alto do penhasco meu tranquilo castelo contempla o Reno. É tarde. O frio aumenta. Jamais sairás dessa floresta”. Também os versos de Friedrich Rückert. “Deparei-me com uma área   coberta de mata e um homem junto à caldeira. Com o machado em punho tomba a árvore. Pergunto que idade tem essa floresta? Ele fala: A floresta é uma protetora eterna! Moro nesse lugar há uma eternidade e as árvores continuam crescendo sem parar. Há quinhentos anos, percorro o mesmo caminho”. E os versos de Anette von Dorste-Hülsdorf: “Como é assustadora a penumbra da floresta nos dias de bruma em novembro. Maravilhoso é o gemido dos galhos e o queixume do vento”. As folhas da floresta tornam-se cúmplices do homem nos versos de Eduard Morike: “Vós, milhares de folhas na floresta sois testemunhas que beijei a boca da bela Rothraut”. O poeta teuto-brasileiro Hans Grimen, nascido em São Leopoldo, legou uma impressionante metáfora nos versos de uma poesia intitulada: “Die Kirche im Walde”-  “A Igreja na Floresta”, comparando a floresta a uma catedral.
 
Pôs-se de pé e subiu até o alto onde a estrutura se confunde com a penumbra das copas. Examina polegada por polegada as paredes cobertas de verde ao ponto de mal perceber as paredes ao ponto de mal perceber os blocos de rocha vermelha. As colunas redondas com capitéis formados pelos rabos do macacos acocorados sob a pesada  cumeeira, e por sobre o portal, uma cruz de ametistas incrustadas na parede. O portal de entrada tem a soleira desgastada como se muitas pessoas  passassem diariamente por ele. Fiquei com receio de cruzar apressado por causa do tapete úmido, intocado, estendido sobre ela. Afastado o último medo, entrei. Um grande espaço abriu-se diante de mim. Encontro-me numa igreja. Na minha frente ergue-se o altar-mor de pedra, sem toalhas e sem velas, nos nichos figuras imóveis de santos. Tudo verde, tudo verde, da cabeça aos pés e lá o Menino Jesus no colo da mãe. Com a mão estendida, iluminado por um claridade mística que penetra nas fendas da cobertura, oferece-me uma orquídea cor de fogo. São José com uma coroa de samambaias na cabeça reverencia a Rainha do céu. É assim com todos. A floresta os adorna com seus adereços. O verde penetra por janelas sem vidro. Os cipós envolvem os ramos trincados. O clima que envolve e paralisa ao ponto de meus passos me assustarem e o eco reverberar de leve nas paredes. Olho para o alto e procuro as ladainhas petrificadas do sacerdote e  a oração dos fieis, o incenso  aqui queimado e que ficou retido em algum lugar na abóbada. Espera. Algo se movimenta como se fosse o leve farfalhar dos enfeites. Foi um passarinho que bebeu na pia de água benta. Em lugar do brilho pálido e bandeiras de amarelo vivo, balançam grinaldas e cipós com suas flores vivas que pendem da abóbada. 

Sobre o fazer história #2

Fazer história consiste nos esforço de acompanhar, passo a passo, o acontecer da síntese entre os muitos elementos que compõem a trajetória humana através do tempo e do espaço. E quais são os campos que necessariamente precisam ser tomados em conta se de alguma forma quisermos entender a história da humanidade no seu todo ou nas suas inúmeras formas particulares? Pelo fato de formar uma espécie biológica o homem acha-se imerso existencialmente no mundo natural. Não é aqui nem o lugar nem o momento para uma análise mais aprofundada da sua vinculação com a natureza química, física, biológica, biogenética e evolutiva. O que não pode ser ignorado por nenhum historiador é a importância decisiva do entorno geográfico em que as culturas e civilizações históricas se desenvolveram. A disponibilidade, o tipo e a natureza das fontes de alimentação, o clima, a vegetação, a facilidade ou dificuldade de circulação, os solos, a topografia e outros elementos naturais, foram e são ainda fatores determinantes na moldagem do perfil histórico das culturas. Buscando nos seu entorno geográfico os alimentos, o abrigo contra as intempéries, contra as feras e os inimigos da própria espécie, o homem consolidou uma relação de vida e morte com as vicissitudes circunstanciais. Mas não foi só isso. A natureza não oferece apenas o pão de cada dia como também os símbolos, os estímulos para alimentar o imaginário, dar vazão ao impulso estético, personificar o universo mitológico fornecer respostas às questões existenciais. A dependência do homem da natureza ensinou-lhe caminhos, formas e alternativas, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história. E penetrando nos mistérios da natureza, e espelhando-se neles,  procurou compreender-se a si mesmo, e dessa forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica da vida nos acampamentos dos pastores e aldeias dos agricultores e nos fenômenos naturais que envolviam o quotidiano. Fatos como nascer, viver e morrer; a jornada diária do sol, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a lua em divindades, personagens mitológicos. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo não tinha nada de estático. Os astros movimentavam-se  numa dança disciplinada, percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis fixas. De tempos em tempos essa coreografia celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões iluminavam as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava pelo firmamento, para em seguida, submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas e a queda de meteoros, devem ter mexido  com o imaginário daqueles povos. E observando as galáxias em noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo contornos de figuras de animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, a libra, os peixes, o touro, o leão e outros mais. Dessa forma os firmamento acima de suas cabeças povoou-se de criaturas imaginarias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia. Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre os criadores de cabras e ovelhas e os agricultores do neolítico e provavelmente mais cedo ainda. A relação real ou imaginaria que se estabeleceu a partir daí entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino dos homens, não parou de se aprofundar. Mesmo hoje, quando o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade e com um número de representantes nada desprezível nas camadas consideradas cultas e ilustradas.

O convívio imediato, diuturno, íntimo e existencial com a natureza, despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua existência desenrolava-se  na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, suas crenças, sua religiosidade, suas religiões, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer se animava e se personalizava de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. Assumia vida e importância pelo que representava no quotidiano e pelo que sugeria à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. Em meio a essa dinâmica de interação, de amálgama e de síntese, as culturas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.

Alguém poderia objetar que há exagero nessas afirmações. A importância atribuída ao meio geográfico poderia levar à falsa compreensão de que as culturas são, em última análise, subproduto do meio geográfico. É verdade que, quanto mais se recua na História, tanto mais se faz perceber essa impressão. Sem cair, porém, no exagero de defender o  determinismo geográfico, não se pode esquecer que sem a colaboração do geógrafo a análise e a pesquisa histórica carecem de um elemento fundamental.   Não por nada a História e Geografia formavam uma unidade acadêmica e curricular até a década de 1960, fornecendo ao egresso o diploma de bacharel ou licenciado em Geografia e História. A profa. Beatriz Franzen e  o Pe. Inácio Schmitz orgulham-se de serem portadores desse diploma verdadeiramente interdisciplinar.

Nas entrelinhas do que vinha afirmando sobre a importância dos subsídios que a geografia fornece ao historiador, um outro campo de vital importância para as Ciências Humanas é formado pela Antropologia, Etnografia e Etnologia. No acontecer da simbiose entre o entorno geográfico e o homem ao qual nos referimos várias vezes, pela versatilidade criativa que a inteligência reflexa lhe proporciona, foi imprimindo um crescente  toque de humanização às paisagens naturais. Cabe ao antropólogo físico, antropólogo cultural e antropólogo social, etnógrafo e etnólogo, municiar o historiador com dados sem os quais este corre o risco de escrever uma história, original talvez, mas carente de sustentação objetiva. Se a origem e natureza das matérias primas empregadas na construção da cultura material, tem tudo a ver com o meio geográfico em que se encontram, as tecnologias de confecção e de utilização reclamam a participação do etnógrafo que as descreve e o etnólogo que realiza o estudo comparativo. Mas os dados por eles fornecidos não são suficientes. É preciso recorrer ao antropólogo cultural para de alguma forma oferecer uma visão e uma compreensão das bases materiais, ideais e organizacionais sobre as quais a humanidade construiu a sua história. O homem por natureza, ou por instinto se preferirem, é um ser social. Desde que dispomos de alguma maneira de informações confiáveis o homem sempre viveu em hordas, bandos, tribos e sociedades complexas, que definiam as regras da convivência, de acordo com cada situação em particular e o nível de desenvolvimento cultural de cada agrupamento. Da mesma forma  a organização econômica mais ou menos complexa, responsável pela regulamentação do acesso, posse  e uso dos bens materiais, encontra-se presente em qualquer ambiente em que convivem humanos. À organização social e econômica veio somar-se a organização política e a organização religiosa, aquela encarregada de definir a hierarquia e esta as crenças, rituais e o comportamento ético e moral. Definiram-se assim os campos da Antropologia que hoje contam com um numero crescente de adeptos e especialistas: A Antropologia Social, a Antropologia Econômica, a Antropologia Jurídica, A Antropologia Religiosa, a Antropologia Filosófica e a Antropologia Teológica.

E o que sugere o que acabamos de afirma ? Em algum momento que se perde nas brumas do tempo, começou a História, quando apareceu a primeira criatura dotada de inteligência reflexa. Não importa nem onde nem quando. Os dados fornecidos pela paleoantropologia, pela biogenética, pela arqueologia apontam para um fato que se deu uma única vez. Em outras palavras: A espécie humana é uma assim como sempre foi uma. À mesma conclusão chega-se quando se parte do conceito filosófico e teológico da espécie humana. A partir daí e na medida em que crescia em número, a humanidade foi ocupando sempre mais espaços, até marcar  a  presença onde de alguma forma encontrava um mínimo de condições de sobrevivência. E nesse processo que consumiu dezenas para não falar em centenas de milhares de anos, aconteceu a diversificação das raças e as incontáveis  formas e modalidades de culturas das quais nos dão conta a paleoantropologia, a geografia humana, a etnografia, a etnologia, a antropologia física e cultura, a história e as áreas complementares do conhecimento. Conclui-se daí que o homem construiu e continua construindo as suas culturas a partir da multiplicidade, da heterogeneidade e da complexidade dos estímulos que vêm do mundo ambiente em que vive. Mas não se pode perder de vista que essa pluralidade tem uma razão de ser na unidade radical de que fala Nicolau de Cusa, Teilhard de Chardin, Ludwig von Bertalannffy, Balduino Rambo, ou a pluralidade é a forma fenomênica do Uno, como observou Alexandro Serrano Caldera. Partindo desse pressuposto todas as culturas têm valor em si. É preciso superar velhos conceitos e preconceitos como: povos selvagens e povos civilizados, baixa, media, alta selvageria e civilização, primitivo e moderno, bárbaro e civilizado, cultura superior e inferior e outros mais. Uma outra base conceitual se impõe. As culturas encontram-se em níveis tecnológicos diferentes  e por isso elas são diferentes, o que não é prova  de inferioridade ou superioridade evolutiva. Não são nem piores nem melhores  umas do que as outras. São apenas diferentes. Cada cultura é uma resposta  singular dada por cada povo em particular, às necessidades materiais e espirituais sintonizadas com as características e estímulos vindos do entorno ambiental concreto.

Partindo dessa perspectiva foi tomando vulto a Filosofia Intercultural que parte do pressuposto de que todos as culturas são em última análise iguais. Cada uma representa uma resposta  original dada aos desafios da vida, estimulada pelo contexto em que vive e como tal válida e digna de respeito. Todo empenho é pouco quando entra em questão o reconhecimento das diferenças, a aceitação das diferenças, o respeito às diferenças e o esforço sincero de incentivar o dialogo entre as diferenças. É a essa altura que se impõe o imperativo ético capaz de reger o encontro e as relações interculturais. Sem um fundamento ético toda a pregação e todo fascínio pela visão intercultural, estagna no plano da especulação, das constatações antropológicas, históricas, sociológicas, políticas ou ideológicas.

Voltamos assim ao ponto de partida: fazer História, diria Alexandro Serrano Caldera, é  percorrer  velhos caminhos, imaginar o ocorrido e sobre ele construir a nossa realidade, o que por sua vez, servirá de ponto de partida para a projeção do futuro. Trata-se de uma empreitada que requer um esforço interdisciplinar sério, honesto, despojado e desinteressado. Ao filósofo cabe identificar, analisar e interpretar os paradigmas, a visão do mundo, a concepção do homem e a sua razão de ser; cabe ao antropólogo interpretar a obra do homem nas suas ambições, limitações e grandezas; cabe ao geógrafo fornecer os dados para entender os milhares de perfis de culturas  que se sucederam e alternaram durante a História; cabe, enfim, ao Historiador a tarefa de, considerando o pano de fundo formulado pelo filósofo, a realidade humana pintada pelo antropólogo e a paisagem natural  desenhada pelo geógrafo, ordenar e descrever a marcha sincrônica e diacrônica do homem através dos tempos.


Conclui-se que a missão das Ciências que lidam diretamente com o homem, não é nem fácil, e não poucas vezes considerada dispensável, inútil e perda de tempo, num momento em que a tecnologia está em alta. O que vale é o aqui e o agora. O passado nada tem a oferecer e o futuro não passa de uma incógnita, uma ilusão. De outra parte, porém, os anseios mais  profundos do homem clamam pela reversão do quadro de “fragmentação, dissociação, desconstrução de paradigmas e a abolição de referenciais”. Percebe-se um apelo crescente que pede por uma proposta de uma nova síntese, que recoloque o Todo, a Verdade, o Uno, como ponto de convergência, como norte, capaz de fazer com o ser humano se reencontre de novo consigo mesmo e com a sua própria razão de ser.