O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria. (Balduino Rambo)
As florestas tropicais da Ásia, África, América e Austrália, as florestas subtropicais, especialmente do Brasil, as florestas temperadas e subárticas, as mais extensas do mundo cobrindo em grande parte o hemisfério norte, na Ásia, Europa e América do Norte, assistiram ao nascimento e à evolução de milhares de povos e culturas.
Pela sua própria natureza, as florestas oferecem um ambiente peculiar, formam uma “morada”, proporcionam um “estar em casa”, uma “Heimat”, uma “querência”, transmitem a sensação de pertencimento a um todo mais amplo, mais vasto, mais universal, mais rico do que qualquer outro entorno geográfico.
As florestas existiram antes do homem e provavelmente continuarão a existir depois dele. Entre esses dois extremos situa-se o tempo em que o homem e as florestas foram obrigados a conviver. A floresta que no passado cobria o chão da nossa terra natal nada tinha de amigável. Era terrível e hostil. Do conflito originou-se, apos muitos desencontros, maus tratos e danos para os dois lados, a certeza: na terra há espaço tanto para o homem quanto para a floresta. Importa para o próprio homem que haja espaço para ambos. As florestas subsistem sem nós homens, não nós homens sem a floresta.
Em poucas linhas, e principalmente nas entrelinhas, o autor conseguiu condensar todo o potencial oculto nas entranhas de uma floresta. À primeira vista e ao primeiro contato ela assusta pela sua imponência e desperta sentimentos de temor perante o desconhecido que oculta e o mistério que a povoa. Um longo e penoso aprendizado se faz necessário até que o homem consiga estabelecer uma relação existencial de parceria com a floresta, para que o susto, quem sabe pânico do primeiro contato, evolua para uma convivência mutuamente útil, e finalmente, consolide uma síntese, uma simbiose entre a floresta, o homem, sua cultura e sua história.
O autor descreve a sensação vivida por um personagem jovem, que saindo da ilha de Heligoland, coberta apenas com ervas rasteiras e arbustos, se defrontou pela primeira vez, com as florestas do continente.
Apos poucos minutos de caminhada, encontrava-me bem na entrada da floresta sem fim. As árvores elevavam-se à altura do farol da terra natal. Apesar de silenciosas, falavam de alguma forma. Incontáveis elas o rodeavam, cercando pelos lados e o fechavam pelo alto. Tolhiam a visão e o apequenavam de tal modo que o suor começou a escorrer. Para fora! Correndo livrou-se do sufoco. Somente fora, ao ar livre, o peito tornou a encher-se. Meu pai costumava referir-se seguidamente a essa primeira experiência com a floresta. Décadas foram necessárias até perceber que é possível descansar bem na sombra de uma árvore da floresta.
Essas observações levam a uma pergunta de difícil resposta: “Afinal o que vem a ser uma floresta?” Dependendo da perspectiva da qual se observa, das intenções do espectador, do nível de leitura que é capaz de fazer da floresta, da intimidade ou estranheza, da atração ou do temor perante o desconhecido, sua compreensão será mais pragmática, mais utilitária, mais interesseira, mais sentimental, mais romântica, mais épica, mais mística.
Para o madeireiro a floresta não passa de um pedaço de chão destinado a produzir madeira e todos os objetos que nela encontram a matéria prima. Acontece que a inegável utilidade prática da floresta é incapaz sequer de ultrapassar a epiderme dessa complexa realidade. Além e mais a fundo dessa compreensão utilitária, ocultam-se dimensões que somente um observador atento que se aproxima da floresta e estabelece com ela relações mais íntimas como o cientista, o filósofo, o poeta, o místico, é capaz de perceber, intuir e vivenciar.
O madeireiro entra na floresta munido com os instrumentos de trabalho, localiza a árvores que lhe oferece a madeira desejada. Anima-o apenas a preocupação de, o mais rápido possível, pôr abaixo o gigante que levou séculos para crescer, não importando, ou nem suspeitando o que o seu ato significa na verdade em meio àquela aparente confusão de troncos, galhos, arbustos, ervas, insetos, pássaros e animais. Esse nível de relacionamento com a floresta, obviamente não tem condições de fornecer elementos, nem quantitativos nem qualitativos, para formular um conceito com uma abrangência mínima.
O cientista entra na floresta e começa a observá-la, armado com o espírito e objetivos muito mais ambiciosos. Para ele a floresta não se resume àquela infinidade de troncos, cipós, arbustos, árvores caídas, ao ponto de subtrair a capacidade de perceber que, a tudo isso, subjaz um sentido, realiza-se uma processo, cumpre-se uma finalidade, enfim, é capaz de avaliar até certo ponto o que é um floresta. Desde os fenômenos e as realidades mais simples e mais singelas, até as mais grandiosas, mais espetaculares, os troncos gigantescos, a abóbada moldada pelas copas, a perpétua penumbra povoada de sons, ruídos, urros, gritos e cantos, tudo deixa de ser um aglomerado em que a multidão dos indivíduos mascara a harmonia e a percepção da totalidade. Pouco a pouco fica claro que:
A experiência vivida na floresta que oferece apenas proveitos imediatos, não responde à indagação pela sua natureza. Aprende que o chão, as plantas, os animais e um clima adequado também fazem parte dessa realidade. E fazem parte também as nuvens que velejam no alto, o raio do sol que se infiltra pelas copas das árvores, o ruído da chuva que cai e o gelo que verga os galhos? Quando, finalmente soubermos de tudo o que lhe pertence, será que então penetramos na sua natureza? E a que ponto tudo isso se insere na dinâmica do tempo que avança sem conhecer descanso?
Aprofundemos um pouco mais a reflexão. A busca pela natureza da floresta está completa? Satisfaz? Parece que não. A intuição nos sugere que falta algo, algo mais profundo, algo mais indevassável, para conferir ao conceito a sua plenitude. Sua compreensão integral, exaustiva e completa nos leva para além dos interesses dos que retiram da floresta a matéria prima para construir seus abrigos ou suprir a alimentação. Constatamos também que a curiosidade e os métodos dos cientistas conseguem penetrar apenas até uma determinada profundidade. Acontece que a floresta é uma realidade que, de alguma forma, interessa a todos. No quotidiano das culturas que emergem das florestas ainda hoje flui a seiva vitalizadora e regeneradora, haurida de suas entranhas fecundas e lhe garante fôlego para enfrentar e superar com êxito as calmarias e tempestades de milhares de anos de história. Nela as incógnitas da vida encontram contrapartida. O eterno e inexorável ciclo do germinar, nascer, crescer, florescer, amadurecer frutos, declinar e morrer, num vir e devir ininterrupto, fazem com que o homem se veja espelhado na floresta. E ao mesmo tempo em que se reconhece na floresta, esta lhe oferece todo um universo povoado de incógnitas, ameaças e mistérios. A literatura universal está repleta de referencias a essa face mais íntima da natureza. Tácito ao descrever a Germânia assim se expressou. “No seu todo essa terra é assustadora, ou por suas florestas ou por seus pântanos”. Sêneca deixou registrado na ep. 14.: “Ao te aproximares de uma floresta muito antiga, formada por árvores vigorosas, na qual a proximidade sobrepõe um galho ao outro, através dos quais não se enxerga nem a luz, nem o céu. A imponência, o silêncio e a penumbra da floresta te convencem de que algum deus deve habitar nela”. E Bermardo de Claraval: “Acredita-me, eu mesmo o experimentei. Encontrarás mais para ser lido nas florestas do que nos livros. Árvores e pedras te ensinarão o que nenhum mestre é capaz de transmitir”. A floresta serve também de pano de fundo dos versos de Eichendorf em “Lorelei”: “A floresta é grande e estás sozinha, bela noiva ( ... ) Conheces-me bem. Do alto do penhasco meu tranquilo castelo contempla o Reno. É tarde. O frio aumenta. Jamais sairás dessa floresta”. Também os versos de Friedrich Rückert. “Deparei-me com uma área coberta de mata e um homem junto à caldeira. Com o machado em punho tomba a árvore. Pergunto que idade tem essa floresta? Ele fala: A floresta é uma protetora eterna! Moro nesse lugar há uma eternidade e as árvores continuam crescendo sem parar. Há quinhentos anos, percorro o mesmo caminho”. E os versos de Anette von Dorste-Hülsdorf: “Como é assustadora a penumbra da floresta nos dias de bruma em novembro. Maravilhoso é o gemido dos galhos e o queixume do vento”. As folhas da floresta tornam-se cúmplices do homem nos versos de Eduard Morike: “Vós, milhares de folhas na floresta sois testemunhas que beijei a boca da bela Rothraut”. O poeta teuto-brasileiro Hans Grimen, nascido em São Leopoldo, legou uma impressionante metáfora nos versos de uma poesia intitulada: “Die Kirche im Walde”- “A Igreja na Floresta”, comparando a floresta a uma catedral.
Pôs-se de pé e subiu até o alto onde a estrutura se confunde com a penumbra das copas. Examina polegada por polegada as paredes cobertas de verde ao ponto de mal perceber as paredes ao ponto de mal perceber os blocos de rocha vermelha. As colunas redondas com capitéis formados pelos rabos do macacos acocorados sob a pesada cumeeira, e por sobre o portal, uma cruz de ametistas incrustadas na parede. O portal de entrada tem a soleira desgastada como se muitas pessoas passassem diariamente por ele. Fiquei com receio de cruzar apressado por causa do tapete úmido, intocado, estendido sobre ela. Afastado o último medo, entrei. Um grande espaço abriu-se diante de mim. Encontro-me numa igreja. Na minha frente ergue-se o altar-mor de pedra, sem toalhas e sem velas, nos nichos figuras imóveis de santos. Tudo verde, tudo verde, da cabeça aos pés e lá o Menino Jesus no colo da mãe. Com a mão estendida, iluminado por um claridade mística que penetra nas fendas da cobertura, oferece-me uma orquídea cor de fogo. São José com uma coroa de samambaias na cabeça reverencia a Rainha do céu. É assim com todos. A floresta os adorna com seus adereços. O verde penetra por janelas sem vidro. Os cipós envolvem os ramos trincados. O clima que envolve e paralisa ao ponto de meus passos me assustarem e o eco reverberar de leve nas paredes. Olho para o alto e procuro as ladainhas petrificadas do sacerdote e a oração dos fieis, o incenso aqui queimado e que ficou retido em algum lugar na abóbada. Espera. Algo se movimenta como se fosse o leve farfalhar dos enfeites. Foi um passarinho que bebeu na pia de água benta. Em lugar do brilho pálido e bandeiras de amarelo vivo, balançam grinaldas e cipós com suas flores vivas que pendem da abóbada.