Sobre a floresta #2

E para  mostrar a que ponto o caminhar por uma floresta é capaz de estimular a  as emoções, fazer ferver a imaginação, viajar em espírito  pela história e pinçar momentos em que a simbólica das árvores da floresta se mostra especialmente vigorosa, reproduzimos aqui as impressões registradas pelo Pe. Balduino Rambo em seu diário, quando da visita ao parque das Sequoias nos Estados Unidos.

Em meio a essa floresta sem igual há um pequeno museu no qual o professor universitário Frank Potter e sua esposa explicam aos hóspedes tudo que merece ser conhecido. Onde as sequoias se concentram em grande  número, como em volta do museu, difunde-se por toda a pare na floresta, o brilho marrom-vermelho da sua casca. Centena de árvores que se confundem com ciprestes, ladeiam os caminhos. Misturadas com as sequoias e formando a massa principal da floresta. Crescem milhares de cedros da Califórnia, pinheiros brancos, pinheiros Douglas, que em altura não perdem para os gigantes, embora raras vezes passem de dois metros de diâmetro. Um líquen amarelo-ouro reveste o tronco do pinheiro branco. O reflexo mescla-se com o marrom-claro da casca da sequo ia, e combinado com as manchas  do sol e a sombra, resultam numa luz colorida de estrema suavidade, envolvendo todo o chão da floresta. Sem querer a gente se flagra pequenino como um camundongo entre esses gigantes reunidos em conselho. Que cantos não teriam deixado os poetas e cantores do Antigo Testamento, que falam com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos gigantes do Monte Sião, se tivessem escutado a voz de Deus nessas florestas. Enquanto Davi e Salomão cantavam seus salmos; quando Isaías levava ao seu povo o anúncio a vinda futura do Filho do Homem; quando Ezequiel contemplava o Senhor dos dias sentado no trono da sua glória, mais de mil anos já pesavam sobre muitas dessas árvores. O Grizzly Gigante contava com dois mil anos quando no Gólgota foi erguida aquela árvore da qual cantamos: Verdadeira árvore na qual pendeu o Senhor mergulhado em angustia mortal”. O canto de luto da árvore do Paraíso, o canto da árvore da vida dos deuses germânicos, o canto de vitória da árvore da Redenção, toda a simbólica da árvore nas sagas e na arte da humanidade, toma conta do homem que caminha na penumbra mortiça dessa floresta. Há muitas verdades entre o céu e a terra que não se encontram  nos livros. Revelam-se no silêncio da floresta. [1]

Como se pode ver é na trilha da literatura, e em especial da poética, em que o tema floresta aparece como fonte inspiradora rica e sempre presente. Conclui-se daí que nela  se ocultam muito mais nuances e desdobram-se dimensões que o utilitarismo puro e simples, a percepção estática da curiosidade à procura de causas e efeitos, leis naturais, correlações e interdependências estão em condições de perceber, registrar e interpretar. Uexkühl fornece a dica para aprofundar mais um pouco a reflexão.

Embriagados pelo papel de senhores  da natureza, esquecemo-nos de que, mesmo que tudo fosse obra das nossas descobertas, da nossa criação, a nossa tarefa na natureza não se resumiria  em última análise nem em descobrir, nem em criar, mas que nós próprios somos descoberta e criação da natureza, a qual estamos em condição de usar mal, mas que somos tão pouco capazes de criar com as nossas condições físicas e espirituais. [2]

Data do tempo do barroco a determinação dada por Christian V. von Schleswig-Hostein em 1671, empenhado em impedir a destruição das florestas do ducado: “Para que com o tempo não desapareça uma das grandes  maravilhas com que Deus brindou a natureza do nosso arquiducado. E Hans Carl von Carlowitz escreveu em 1708:

Escritores antigos e recentes testemunham que as belas florestas, também as grandes árvores excepcionalmente belas, sempre foram  consideradas com grandes honras entre os nossos velhos alemães e seus vizinhos. Por isso, não é de admirar muito que a quantidade, a elegância e o tamanho de tantas árvores reunidas, além de reinar permanentemente um silêncio profundo e sombra escura, fossem tomadas por temor sagrado, atribuindo a esses lugares algo de divino. (... ) Entre eles milhões de troncos semeiam-se a si mesmos sem ajudar e sem serem ajudados. Plantam-se sem a ajuda do homem. Deus os semeia, planta, multiplica e os conserva, apesar de todos os obstáculos, intempéries e prejuízos. [3]

E para fechar a série de manifestações que, quem sabe, ajudam numa tentativa de aproximação maior ao âmago complexo  e misterioso  do significado da floresta, Rosegger afirma: “Somente o homem solitário encontra  a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e deixa  apenas árvores para trás”. E segundo Ewelk: “Pois a floresta não representa nenhuma alienação da vida. Pelo contrário. A floresta é vida intensa”. E como conclusão, a opinião de Riehl: “Também quando já não precisarmos mais de madeira seca para aquecer por fora, tanto mais indispensável será a verde para o homem, viva e cheia de seiva”. [4]

Depois do registro de todas essas opiniões, interpretações e conclusões, ousamos uma aproximação maior do significado de floresta. Dependendo do ângulo pelo qual se olha e o interesse que subjaz  à análise, a compreensão  que se tem da floresta e do conceito que se formula, vão de uma visão utilitária e mecanicista até aproximar-se de uma concepção panteísta do mundo e da natureza.

A magnitude do desafio que nos espera no esforço da busca de uma definição satisfatória do que seja uma floreta, fica evidente na teorização do problema por Dengels.

A floresta é uma comunidade viva composta por todas as formas  e graus imagináveis de interdependências recíprocas, somadas à competição e à mutua ajuda sob as mais diversas formas imagináveis. Comandado pelo princípio do equilíbrio, o qual, sob a influência dos mais variados condicionamentos externos, incorpora constantemente formas de floresta mais ou menos delimitadas, para as quais, apos perturbações e oscilações, se orienta sempre de novo a biocinose.[5]

Esse tipo de comunidades são tecnicamente definidas como “biocinoses”. No contexto em que o conceito foi criado e está sendo empregado, mostra que seu significado é limitado. Limita-se na sua versão original, à relação mútua que prospera  entre os seres vivos no seio de uma comunidade desse tipo. Oferece, sem dívida, uma compreensão da floresta muito mais compreensiva e muito mais completa do que o conceito de floresta como fábrica de madeira, como refúgio de animais, como abrigo para o homem, como fator de equilíbrio climático e edafológico, de preservação de mananciais de água, etc., etc. Uma análise mais atenta deixa claro de que algumas questões reclamam um aprofundamento maior. O conceito de biocinose, comunidade viva é útil e até certo ponto fundamental. Oferece como que uma macrovisão de ordem, de arquitetura integrada, de funcionalidade interna complementar, entre os elementos que integram uma floresta. Apesar  de todas as vantagens o conceito de “biocinose” oferece riscos e armadilhas nada desprezíveis.

Primeiro, silencia ou desconsidera o lugar decisivo que cabe ao solo, ao ar, à temperatura, à topografia, à região climática, à regularidade e à definição na demarcação das estações do ano, à composição, estrutura e disposição das rochas.

Segundo, atribui um peso exagerado à noção de “comunidade viva”. Além das restrições a serem feitas à origem do conceito emprestado à Sociologia, e por isso mesmo pedindo precaução quando utilizado na definição da floresta. Visto por esse lado não poucos fatos e fenômenos acontecem à margem da “comunidade de vida”. Já em 1943 Fabricius alertou que o conceito é capaz de induzir ao equívoco.

Trata-se de uma definição de floresta que preocupa, porque cada membro dessa comunidade  (portanto seres vivos), exceto poucos casos de uma verdadeira comunidade, somados a casos de parasitismo, cada integrante da comunidade tem perfeitas condições de levar vida autônoma, e conforme cada caso, associa-se a outros seres vivos. Acontece que a acepção alemã do conceito é que cada membro de uma comunidade faz livremente sacrifícios pelo outro e lhe presta serviços, coisas, que em se tratando da floresta, não passam de um grande equívoco. No caso de o conceito não ter sido apresentado com o nome de “biocinose”, provavelmente não teria significado uma grande descoberta. [6]

Conclui-se daí que a floresta significa algo mais, e como realidade, situa-se além de uma simples comunidade de vida. Não poucos estudiosos tentam valer-se  do conceito de “organismo”, no esforço de uma compreensão mais objetiva e mais completa da natureza da floresta. Lemnertz faz  a seguinte consideração:

 O que e torna evidente na comunidade de vida é o que aparece como a somatória dos indivíduos justapostos. Mas as relações biológicas íntimas e a interdependência funcional, escapam inteiramente à percepção e são passíveis apenas de especulação. [7]

A concepção de floresta como organismo autônomo foi pela primeira vez formulada por Alfred Möller, com o objetivo de insistir no ponto de vista de que a floresta representa uma realidade biológica única, em oposição àquelas que a simplificam, reduzindo-a a uma mera fornecedora de matéria prima, perdendo a visão do todo. De tantas árvores e troncos já não se percebe a floresta. Na proposta de Möller nota-se claramente uma reorientação do foco de discussão. Opõe a visão biológica à visão mecanicista e utilitária para superar e compensar as limitações da visão sociológica da floresta. Sinaliza com uma proposta de aproximação da concepção holística, em oposição às tentativas de dissecar as estruturas que compõem uma floresta, dando ênfase à função das partes no todo.

A atividade florestal de caráter permanente percebe na floresta uma entidade viva, uma unidade integrada por inúmeros órgãos, todos operando em conjunto, em regime de reciprocidade. [8]

A concepção organísmica da floresta, conforme Möller, conquistou adeptos entusiastas e incondicionais. Não tardou, porém, que se escutassem vozes  e opiniões fortes apontando para os flancos vulneráveis. Uma dessas opiniões discordantes foi a de Dengler, classificando-a como falsa, como exagerada, capaz de levar a conclusões equivocadas.

De qualquer forma, a ligação é muito frouxa comparada com a de um organismo propriamente dito. Os membros da floresta não são órgãos no sentido estrito do termo (organo-instrumentos), destituídos de uma função e uma destinação própria e a relação superficial com o todo não os priva da sua capacidade vital e funcional.  De outra parte, a floresta não cresce de dentro para fora como um organismo, mas seus membros encontram-se na sua origem numa dinâmica livre,  de fora para dentro, como pode ser  observado em qualquer nova formação de uma floresta. [9]

Para de Fabricius o argumento  mais contundente contra a concepção organísmico de Möller.

Quando se atribui à floresta a natureza de um organismo, transfere-se a ela um conceito inspirado no conhecimento da vida dos indivíduos em determinadas partes constitutivas da floresta totalmente ignoradas. [10]

Seckholzer completa, afirmando que “a floresta é orgânica, isto é, una na sua organização, mas não organísmica, isto é, um ser vivo”. [11] Segundo ele, falta existir o gérmen como potência do todo. A vida acontece por gênese e a floresta por síntese.

De todas essas reflexões, concepções e formulações, é possível tirar algumas conclusões. Começa pelo fato de que todas elas oferecem mais ou menos elementos que iluminam a compreensão do conceito de floresta. Uns conseguem aproximar-se mais, outros menos, do âmago da questão.

Em 1943, um outro estudioso e intérprete da floresta, interessou-se  por mais uma nuança de não pouco significado. Chamou a atenção para o fato de uma floresta manifestar uma busca permanente do equilíbrio na sua economia interna.

Sua existência manifesta a propriedade da auto regulação, e caso as perturbações não tiverem ultrapassado  um determinado  nível, restabelece o equilíbrio, uma característica privativa  dos organismos, e por isso,  fala-se de uma  floresta e com razão se entende um organismo, não no sentido de um ser vivo individual, um indivíduo, mas de um organismo de ordem mais elevada. [12]

Na literatura especializada encontram-se muitas outras formulações, que em última análise, nada mais são do que tentativas para conceituar o que seja um organismo, enriquecendo-o com nuanças mais ou menos significativas. Da grande   diversidade de formulações, conclui-se que a questão não está definitivamente resolvida. Isso não significa  que cada uma delas não acrescente alguma coisa, ou ilumine alguma faceta a mais. Confirma-se o dito quando Aichinger fala em “organismo global”, ou quando Thienemann define o oceano ou a floresta, por exemplo, como uma unidade biológica formada pela comunidade viva mais o espaço vital. Expressões como “totalidade  viva”, “sistema”, “forma”, etc., de um lado mostram  uma direção comum na qual se esboça a tentativa de definição que se aproxima da natureza da floresta. Do outro, a falta de um consenso em torno de um conceito aceito por todos, prova que nem tudo está tão claro e resolvido. Qualquer uma das formulações contem muito de verdadeiro, deixando, porém, margem a questionamentos.

Parece que o conceito de organismo, combinado com o de sistema, tem tudo para oferecer uma compreensão útil, quando  se analisam as marcas que as florestas deixaram nas culturas que nelas se desenvolveram. Na verdade contemplam todos os elementos que de alguma forma tiveram papel importante na configuração cultural. Começa pela matéria prima: madeira, frutas, fibras, insetos, indispensáveis para a subsistência biológica. Passa pelos animais, pássaros, insetos, microbiologia, o clima, enfim, todo o ambiente natural característico que abrigou o homem e suas culturas. Em poucas palavras, todos esses, e certamente muitos outros, formam para o homem o espaço das suas vivências, o palco sobre o qual de desenrolou e ainda se desenrola a sua história, o entorno visível, material, concreto, invisível e imaginário, que marca  o cotidiano dos povos das florestas e perpassa toda a sua maneira de ser e agir. E para concluir esse esforço para formular um conceito aceitável do que seja uma floresta, registramos a opinião de mais três estudiosos do assunto. É de Rosegger a afirmação de que somente o solitário encontra a floresta. Onde muitos a procuram ela foge e só ficam árvores. Para Welh a floresta é vida intensa. Mesmo durante a noite e sob a neve, continua acontecendo a vida nas suas milhares de formas  e Riehl  observa que mesmo quando já não necessitamos  da madeira seca, tanto mais o homem sentirá falta da madeira verde, com a sua seiva e sua vida.

Como se pode ver, as florestas oferecem o  ambiente natural que talvez reúna, numa síntese praticamente todos  os elementos que de alguma forma, acompanharam o homem na sua trajetória histórica e moldaram o perfil das suas culturas. Em meio ao grande cinturão de florestas subárticas que cobriram e cobrem ainda vastas áreas do hemisfério norte, tanto da Ásia, como da Europa, como da América do Norte, as florestas temperadas e as possantes florestas tropicais, gestaram-se dezenas  e milhares de culturas, entre elas das mais importantes e mais decisivas, na moldagem histórica do mundo. Nas florestas os ciclos anuais e mensais adquirem significa todo especial. Nelas fervilha a vida com uma abundancia, numa espantosa profusão e numa variedade de formas. Nela brotam milhões de fontes, são percorridas por córregos, arroios  rios caudalosos. No seu interior escondem-se lagos misteriosos. Em suas planícies, planaltos  e montanhas, a vegetação rasteira, os arbustos e os gigantes da floresta exibem toda a sua exuberância, oferecem seus frutos e essências e convidam o homem a viver à sua sombra  e ao seu abrigo, a fantástica história da sua existência. A prodigalidade da floresta lhe garante o alimento, a matéria prima para construir os abrigos, a segurança contra os inimigos naturais e contra os próprios homens. Entre os povos das florestas, revela-se com nitidez , talvez maior do que em outras circunstâncias, o convívio simbólico, a relação existencial do homem com seu hábitat. As fontes tornam-se sagradas, nos lagos moram espíritos e monstros, duendes e deuses povoam a florestas e as grandes árvores transformam-se em símbolos. Os ciclos que regem  a dinâmica  do multicolorido  e multifacetado mundo animal e vegetal  terminam por traçar a trajetória do homem que nelas vive a sua história.



[1] Rambo, Balduino. Três meses na América. Manuscrito inédito p. 205-206
[2] in  Horsmann, Erich. op. cit. p. 7
[3] Mantel, Wilhelm. Wald und Forst. Op. cit. p. 12
[4] As três citações encontram-se em Manatel, Wilherlm. Wald und Forst. Op. cit. p. 12-13
[5] in Horsmann, Erich.  Der Wald. op. cit. p. 12
[6] in Wolfath, Erich. op. cit. p. 13
[7] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 13
[8] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 13-14
[9] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 14
[10] in Wolfarth, Erich. op. cit. p. 14
[11] in Wolfarth, Erich. Op. cit. p. 14
[12] in Wolfarth, Erich. Op. cit. p. 14

This entry was posted on sexta-feira, 23 de outubro de 2015. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.