[ Reflexões ]

A lógica que preside o esforço do homem no entender o que ocorre em seu derredor e de alguma forma prever e escolher caminhos e assim consolidar uma parceria com ele, nada mais é do que a via pela qual se consolida o conhecimento. Conhecimento no sentido rigoroso conceito, portanto, só é possível quando consegue formular uma explicação compreensiva, possível somente com o concurso de todas as formas de aproximação possíveis, com o potencial dos instrumentos teóricos e metodológicos disponíveis. 

Colocada a questão nessa perspectiva, quanto mais se recua na história, tanto menos “científico” e tanto menos “racional” se mostra o conhecimento. Isso não significa, porém, que sua eficácia tenha sido menos importante e menos determinante para a função do que lhe cabia na vida individual e coletiva. Aliás a importância do conhecimento que com certo desprezo, com ar de superioridade e até com certa complacência, não poucos rotulam de “pré-científico”, é muito maior do que se quer admitir. Basta percorrer qualquer um dos corpos do conhecimento consolidados durante milênios pelas culturas do oriente, com destaque para a chinesa, japonesa, da indiana, coreana e outras mais. Mesmo Ernst Bloch, um dos mais respeitados pensadores ocidentais do século XX, despertou para a ideia-motriz que impulsionou e norteou todo o seu pensamento, nos romances de aventura de Karl May, descrevendo os índios da América do Norte. Aquela paisagem intocada de pradarias sem fim, povoadas por índios caçando búfalos em total liberdade, forneceu-lhe o conceito-chave de todo o seu pensamento; “Heimat”, que poderíamos traduzir por “querência”. Sua concretização só é possível onde reina a absoluta liberdade e harmonia. Onde há liberdade existem possibilidades onde há possibilidade existe esperança, onde há esperança, a harmonia entre todas as coisas faz com que o homem se sinta “em casa”, numa querência, numa Heimat”. E deixando de lado o racionalismo científico, o rigor da lógica aristotélica-tomista e a doutrina teológica do Deus Criador, Bloch colocou “a matéria animada” orientada para um objetivo final por ele denominado de “Ideal do Bem”. Chegado ao término do processo evolutivo “o Bem como tal” estará realizado. Paul Heinz Koesters resumiu assim o pensamento de Bloch:

No momento em que a matéria tiver concluído o processo da evolução ao nível em que se encontra de momento, o “bem como tal” estará concretizado. O cosmos, o nosso mundo, os animais e os homens, todos feitos de matéria, ao final do processo estarão reconciliados. Reinará então a situação para a qual tudo – as pedras como o homem, as estrelas como as moscas na parede – convergem (sehnen sich) consciente ou inconscientemente: a Harmonia. Nesse momento finalmente o cosmos inteiro tornou-se “Heimat – Querência”. (Kösters, 1981, p. 300).

Essa abertura para uma cosmovisão que percebe a unidade nas partes, o todo na diversidade, a verdade na multiplicidade das doutrinas, bate de frente na contramão com a pós-modernidade. Para ela o que interessa são as partes. Nos laboratórios dos pesquisadores, nos gabinetes dos analistas da sociedade e da economia, nas redações dos meios de comunicação, nos discursos e manifestações dos políticos e burocratas, nas preocupações dos governantes, não há lugar para o Todo e a Verdade. O que decide são os fatos do momento, as ocorrências da hora, a oportunidade senão o puro oportunismo. Não há nenhuma, ou no máximo pouca preocupação em buscar as raízes históricas, o significado mais profundo dos acontecimentos. O que importa é o impacto do momento, o barulho, o estardalhaço, a dissonância. A preocupação por paradigmas, balizas norteadoras e princípios que presidem as ações dos indivíduos e das coletividades, senão ignorados acham-se em cotação baixa. 

O alerta contra essa opção generalizada para o comportamento das massas, vem sendo dado exatamente por representantes de áreas científicas nas quais os métodos e instrumentos de investigação avançaram mais em especialização. Por enquanto trata-se de vozes isoladas. Mas o que autoriza a esperança da reversão do quadro descrito acima, é a autoridade e o peso desses cientistas. Um deles é nada menos do que Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético do homem. O próprio título da sua obra “A Linguagem de Deus”, sinaliza para o rompimento dos paradigmas e dogmas intocáveis do racionalismo científico. A certa altura das suas reflexões o Dr. Collins nos deixa um parágrafo que convida a pensar, a refletir e meditar.

Ironicamente, outro motivo importante para a visibilidade da posição do Bio-Logos é justamente a harmonia que essa cria entre as facções beligerantes. Como sociedade, não parecemos atraídos pela harmonia, mas pelo conflito. Em parte, a culpa é dos meios de comunicação; entretanto eles apenas atendem aos desejos do público. Por meio dos telejornais, você provavelmente fica sabendo de colisões envolvendo inúmeros carros, furacões destrutivos, crimes violentos, divórcios conturbados de celebridades e debates ásperos entre professores sobre ensinar a teoria da evolução. Provavelmente você não ouviu nada a respeito de reuniões de grupos de vizinhança de credos diferentes para tentar resolver os problemas da comunidade, nem sobre a transformação de Anthony Flew, que por toda vida foi ateu e passou a acreditar em Deus, e com certeza nada sobre a evolução teísta ou sobre o arco íris duplo desta tarde sobre a cidade. Adoramos conflito e discórdia, e quanto mais cruel, melhor.  No meio acadêmico, música e arte produzidos com seriedade pelos seus membros parecem festejar sua dificuldade em serem ouvidas e apreciadas. A harmonia é chata.  (Collins, p. 209-210)

E os noticiários confirmam cada vez mais a preocupação do Dr. Collins. Enquanto redijo essas linhas uma fatia predominante dos noticiários de todos os meios de comunicação do País, volta-se para o julgamento do casal Nardoni, acusado de ter asfixiado e ter jogado a filha do sexto andar de um prédio em São Paulo. A movimentação da policia, o translado dos acusados da prisão para o recinto do julgamento, o aparato do tribunal, o frenesi das rádios e canais de  televisão, as manchetes de primeira página dos jornais, o acotovelar-se  dos curiosos, as opiniões emocionadas e emocionais, beirando à histeria, dos entrevistados nas ruas, as fisionomias de apocalipse de alguns apresentadores de telejornais, envolve o caso num cenário no qual um  misto de sadismo, masoquismo e prazer mórbido, comandam a cacofonia. Na mesma direção e no mesmo nível foi anunciado um acidente provocado, pelo que se presume, por duas camionetas praticando racha numa das rodovias mais movimentadas do Rio Grande do Sul. Uma delas perdeu o controle e o radialista escolhendo os termos foi descrevendo: O motorista perdeu o controle do veículo, atravessou o canteiro central da  rodovia, derrubou todas as placas de sinalização que encontrou pela frente e despedaçou um carro que vinha na direção contrária, matando as três pessoas que se encontravam nele, a si próprio e seu acompanhante. Na sequência das notícias do começo do dia, constam ainda mortes por assassinato, assaltos, etc., etc. Nenhuma notícia que fosse capaz de munir as pessoas com um pensamento positivo para enfrentar a rotina do novo dia. E ai daquele que se atreve a lembrar aos comunicadores que já estaria na hora de baixar um pouco o volume das trombetas que saciam a curiosidade do povo avesso à harmonia, ao sossego e ao lado humano da sociedade. A resposta vem pronta e cortante: É o público que assim o exige!” Não há como não concordar com o Dr. Collins: “A harmonia é chata”. 

Outra autoridade reconhecida como um dos biólogos mais respeitados mundialmente, é Edward Wilson. Em 1978 ele publicou o livro “On Human Nature (Cambridge Harvard University Press, 1978). Nele faz uma observação que o Dr. Collins classificou como “palavra forte”. Wilson citado por Collins escreveu naquela obra:

A arma decisiva apreciada pelo naturalismo científico virá com sua capacidade de explicar a religião tradicional, sua competição entre líderes, como um fenômeno totalmente material. Não é provável que a Teologia sobreviva como uma disciplina intelectual independente. 

Em 2006 Edward Wilson publicou um novo livro com o título: “The Creation – an appeal to save live on Earth”. Salvo melhor juízo, essa obra revela uma radical mudança de posição do autor. O livro em forma de diálogo dirigido a um pastor evangélico, convida-o para um esforço comum entre a ciência e a teologia, a fim de salvar a vida sobre a terra. Não se notam mais vestígios das “palavras fortes” de trinta anos passados. Pelo contrário. O ilustre professor e cientista de Harvard faz um convite, melhor talvez, um apelo a um pastor fundamentalista, para de mãos dadas, Ciência, Religião e Teologia, resolverem as intrincadas questões que envolvem o binômio Homem-Natureza. Rendeu-se, ao que parece, à evidência de que as abordagens unilaterais não bastam para entender e, consequentemente, para enfrentar com sucesso as grandes questões que dizem respeito à relação do homem com a natureza. Eis o resumo de sua posição e o apelo ao esforço mútuo:

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil como parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas tem um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos pessoas éticas, patrióticas altruístas, mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos, com a mesma intensidade, santificar a vida humana, compartilharmos o amor pela Criação. (Wilson, Edward, 2007, p. 188)

A mesma convicção de que está na hora de deixar de lado as reivindicações dos donos da verdade, tanto do lado das Ciências do Espírito quanto das Ciências Naturais, é partilhada por muitos outros cientistas. Fundaram até uma associação cujos associados creem em Deus: a “American Scientific Affiliation”. 

Os gigantescos avanços dos conhecimentos nos campos da química, física, astronomia, biogenética e outros, tornados possíveis por um complexo e sofisticado arsenal de tecnologias de investigação, vem multiplicando as manifestações de reconhecidas autoridades científicas, sinalizando para uma convergência no entendimento das questões de fundo. Pondo de lado uma linguagem feita de conceitos completamente fora do alcance da compreensão dos não especialistas, nota-se um sincero esforço para tornar as conquistas científicas compreensíveis para o comum dos mortais, fora dos laboratórios e longe dos congressos de especialistas. Para o grande público conceitos como Big Bang, fóton, elétron, quark, quanta, etc., etc., localizam-se fora do âmbito da compreensão. Para os cientistas o desvendar progressivo das incógnitas da natureza, abre caminho para entender o comportamento dos fenômenos naturais, a inter-relação entre eles e o papel que lhes cabe nos níveis superiores de complexidade nos quais se inserem. Passo por passo a própria Ciência e representantes paradigmáticos do seu meio, formulam alternativas de interpretação nada convencionais, melhor talvez, impensáveis há não muitas décadas atrás. A convicção que se percebe nas entrelinhas do livro do Dr. Francis Collins, permite mais um testemunho seu: 

Apesar de eu, no fim das contas, passar da ciência física à biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, que descrevem a realidade do mundo natural, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apelo estético. Isso levantou a primeira de várias perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Por que a matéria se comporta dessa maneira? Citando a frase de Eugen Wigner, qual seria a explicação para a “inexplicável eficiência da matemática?” Não seria nada além de um feliz acidente ou referência a alguma intuição profunda na natureza e como outros ter encontrado o divino? (Collins,  2007, p.)

Collins cita ainda “Uma breve História do Tempo” de Stephen Hawking, e como observa, “em geral nada dado a contemplações metafísicas”. 

No entanto, se de fato descobrirmos uma teoria completa, todos acabarão compreendendo seus princípios amplos, não apenas alguns cientistas. Então poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão de o    por-que de nós e o universo existirmos. Se descobrirmos a respostas para isso, será o triunfo supremo da razão humana – pois, então, conheceremos a mente de Deus. (Hawking, 2015, p. 229)

Interrogações, interrogações e mais interrogações, perguntas e mais perguntas. E destinam-se a responder o que? Resumindo, externam a ânsia do homem em saber como surgiu o universo cósmico e nele o mundo que nos rodeia; como surgiu o homem, o que é o homem, qual a sua razão de ser e qual o seu destino; qual é o lugar ou não lugar de Deus nesse cenário de tantas incógnitas. Encontrar enfim a Verdade, o Todo na multiplicidade das doutrinas, eis o desafio maior.

[ Reflexões ]

O homem é um animal racional. Essa velha definição que nos foi passada quando arriscávamos as primeiras incursões nos meandros das incógnitas da nossa espécie, continua ainda hoje de grande utilidade para entendê-la. Na gênese, compreensão e evolução do conhecimento o “animal” e o “racional” no homem ocupam importância igual. Pela lógica da evolução, porém, nos estágios mais próximos ao “animal”, componentes não “racionais”, não “científicos”, predominam na natureza aparente do conhecimento. Nem poderia ser outra forma. Em primeiro lugar as realidades das quais procedem os estímulos e fornecem os elementos, a matéria prima para a construção do conhecimento, encontram-se no entorno ambiental em que homem vive. Em segundo lugar, o acesso e a apropriação a esta “matéria prima” acontece via sentidos e no primeiro momento é elaborada pela percepção instintiva peculiar dos receptores. No nível animal a possibilidade de conhecer, esgota-se nesse patamar. Por isso mesmo não se pode falar em conhecimento no verdadeiro sentido da palavra, quando se avalia o comportamento de espécies animais. Em se tratando, porém, do homem, entra a ação da reflexão. A relação interativa do homem com meio não se esgota em respostas instintivas, padronizadas para todos os indivíduos de uma espécie como reações que não ultrapassam o nível dos reflexos condicionados.

No caso do homem entram em ação simultaneamente os estímulos de natureza instintiva e o processamento pela capacidade reflexiva. Na medida em que entra em contato com as oportunidades, os desafios e as incógnitas que encontra, a inteligência reflexa entra em ação. A construção do conhecimento começa. Nesse processo em que o instintivo e o intuitivo se aliam ao racional para gerar o conhecimento, não se pode ignorar que o primeiro contribui com o “qualitativo”, o “substantivo” com que as coisas se apresentam, ou o valor em si das coisas, ou ainda a natureza das coisas. À qualidade de que as coisas vêm revestidas pela própria natureza, soma-se a qualidade que o homem atribui a elas. E é exatamente essa “qualidade atribuída”, que contribui de maneira decisiva na construção do conhecimento. E como as “qualidades atribuídas” diferem de indivíduo para indivíduo, de cultura para cultura, os perfis do conhecimento são tantos quantos os sistemas construídos. Como exemplo universal pode servir a água. Fazem parte das suas qualidades naturais a composição química e os estados físicos que assume em temperaturas diferentes, sua importância na manutenção de todos os tipos de vida, etc., independente da destinação dada pelo homem. Mas exatamente pela importância para a vida do homem, nas mais diversas épocas e situações culturais, este somou às qualidades naturais, “qualidades atribuídas”. A água de uma fonte brotando das entranhas da terra rejuvenesce, garante vida longa; a água benta nos rituais litúrgicos purifica, apaga pecados, cura enfermidades. Todos esses elementos e muitos mais entram na formação do corpo dos conhecimentos que os povos elaboraram nas mais diversas circunstâncias de espaço e tempo. Em termos as mesmas observações são válidas para o fogo, a luz, as estrelas, o sol, os cometas, florestas, montanhas, vulcões, animais e plantas. Tanto o “qualitativo” quanto o “quantitativo” não podem ser ignorados nem menosprezados ou diminuídos na sua importância, quando se pretende acompanhar a gênese do conhecimento e compreender a sua razão de ser, seja profana ou religiosa. 

O “qualitativo” atribuído às realidades que compõem o cenário em que o homem vive a sua história representam, entretanto, uma face da mesma moeda que é o conhecimento. Não resta dúvida de que essa perspectiva predomina e é determinada na fase que poderíamos chamar de “infantil” na história do conhecimento. Carente ainda das indispensáveis observações, experimentações, métodos e equipamentos adequados, o homem valeu-se dos recursos com os quais a natureza o dotara: a observação, a comparação, a análise, a seleção, a experimentação, a curiosidade e a imaginação, a capacidade de intuir e atribuir significados, e assim, dar forma e coerência aos corpos do conhecimento, equivocadamente desqualificados como “primitivos”. Na medida, porém, em que o homem mergulhava  nos meandros da natureza em sua volta e se dava conta da complexa incógnita que ele próprio era, crescia o desejo de entender o “como” funcionava, e dessa forma, minorar a insegurança perante tantas incógnitas, e ao mesmo tempo, assumir o comando do seu destino. Ora esse passo significou uma reviravolta de proporções difíceis de dimensionar. De dependente do entorno em quase tudo o homem passa a equipar-se com métodos e meios que o habilitaram gradativamente a entender, prever e controlar a situação. A partir daí o componente “quantitativo” assume importância cada vez maior na construção do conhecimento, até chegar ao ponto de o racionalismo científico desqualificar tudo o que não é experimentalmente aferível, como “não conhecimento”, como “não científico”. Os únicos caminhos para se chegar a um conhecimento que merece esse nome, são a Filosofia de um lado e Ciências Naturais do outro. Acontece que a exigência dos filósofos reclamando para si e seus métodos, a condição de únicos capazes de produzir um conhecimento digno desse nome, e do outro lado, os cientistas reivindicando o mesmo para si e seus métodos, deu no que deu. Uma disputa inútil, prejudicial, e em não poucos casos, irracional. A prejudicada maior foi a produção de autêntico conhecimento, acompanhado de um séquito de efeitos maléficos, tanto para as Ciências do Espírito quanto para as Ciências Naturais. Não é aqui o momento para entrarmos mais a fundo no detalhamento da situação criada com esse estado de coisas. 

Mas para que as reflexões acima conduzidas a nível abstrato tornem a questão da produção do conhecimento mais palpável, permito-me recorrer a um exemplo que é tão antigo quanto a própria história do homem. A popularidade da Astrologia nunca perdeu o seu interesse. Mesmo todo o progresso da pesquisa científica e os resultados espetaculares no campo da astronomia, física, química, biologia, biogenética, não a ofuscaram. Pelo contrário. Sua cotação vem crescendo principalmente entre as camadas populares e seu prestígio entre as pessoas cultas e muito cultas está em alta. O termômetro são os horóscopos publicados nos veículos de comunicação, direcionados a todos os públicos. A Astrologia constitui-se num dos exemplos mais emblemáticos de com o ponto de partida, a raiz, a base do conhecimento alimenta-se na síntese entre os elementos dados pela natureza, no caso os astros, e as necessidades materiais a serem atendidas, as incógnitas a serem desvendadas e os desafios existenciais a serem vencidos. Tudo entregue à capacidade reflexiva do homem termina por consolidar o corpo dos conhecimentos da Astrologia. Como é fácil concluir, trata-se de um conhecimento que tem como preocupação central o elemento “qualitativo” na avaliação dos astros. A própria origem etimológica do termo sinaliza para esse sentido. “Astron” – astro e “Logos” – palavra, essência, natureza, qualidade.

Como o homem, entretanto, além de dotado de instinto, de tendências naturais, de percepções, intuições, emoções, sonhos e desejos, é portador de uma inteligência reflexa, a síntese do corpo de conhecimentos que vai elaborando, conta com o concurso decisivo desse componente. Mais. A razão e a lógica insistem cada vez mais em obter respostas para o “como”, o “quanto” e o “quando” e assim não deixar lacunas para a compreensão do todo que envolve o universo cósmico. À compreensão do “que” e o “para que”, elementos qualitativos, é preciso somar o “quantitativo” – o “quanto”, o “como” e o “quando”, objeto da Astronomia - termo composto pelas palavras “Astron” – astro e “Nomos” – “número e por extensão, medida, massa”.

[ Reflexões ]

Doctrina multiplex – Veritas una  
As Doutrinas são muitas – a Verdade uma só.

Na medida em que a vida avança e os anos se somam em décadas, umas depois das outras, a natureza e os objetos das reflexões diminuem gradativamente em número, mas em compensação aqueles que perduram, ganham em importância existencial.  Aos vinte anos olhávamos em nossa volta e percebíamos o mundo como um cenário feito de múltiplas possibilidades. Caminhos em muitas direções nos convidavam a percorrê-los. Percebíamos o mundo como um cenário de múltiplas possibilidades para planejarmos os rumos da nossa existência, realizarmos nos nossos sonhos e concretizarmos os nossos ideais. A imaturidade e a falta de experiência cobraram em não poucas ocasiões um preço muito alto. Não poucos sonhos mostraram-se quimeras fugazes, outros tantos, utopias impossíveis. Opções para darmos rumos à vida que pareciam definitivas, mostraram-se equivocadas no decorrer dos anos. Para não sucumbir em tais situações foi preciso recorrer a correções de rota que, aparentemente, poderiam parecer rupturas pela raiz com o passado. Objetivamente falando, porém, não passaram de escolhas ousadas para não sacrificar a linha mestra da coerência que tínhamos traçado para a vida. E assim nos empenhamos na compreensão da vida e das vivências pessoais, dos relacionamentos com as pessoas, da atividade acadêmica, da procura de soluções para as perguntas de fundo da existência, da busca de respostas satisfatórias pelo sentido e o lugar que no universo cabe à natureza, ao homem e a Deus. Alinham-se nessa lógica também situações limites em que a nossa resistência física, psíquica e espiritual, foi posta à prova próxima ao sobre-humano. Se corretamente entendidas e avaliadas, porém, essas eventualidades que nos surpreenderam na nossa caminhada ao longo dos anos, tinham o poder de depurar, selecionar, descartar, dar valor ao verdadeiro, e dessa forma converter a “Geschenkte Zeit” – como diriam os nossos antepassados, ou “o tempo que nos resta como uma dádiva valiosa” – no coroamento prazeroso dos muitos sonhos que alimentamos e numa lição proveitosa para os que continuam privando conosco. 

E para não ficar apenas em afirmações genéricas, vagas talvez, tentarei aprofundar um pouco a linha de reflexão esboçada. Parece-me que a grande mestra que é a vida nos propõe três lições a serem aprendidas. - A primeira. Nenhuma proposta teórica e metodológica por si só contém potencial suficiente para dar uma resposta final para as questões realmente de fundo como são: a origem e o sentido do universo, da natureza, do homem, e em meio a isso tudo, qual o lugar ou não lugar para Deus. – A segunda. Além das abordagens convencionais pelo lado das Ciências Exatas ou da Filosofia, duas outras aproximações não podem ser ignoradas: o conhecimento que nos fornece a percepção, difusa, de alguma forma instintiva e intuitiva, tão importante na orientação e conduta do quotidiano das pessoas. E a esses níveis de respostas é preciso acrescenta, sob o protesto e a ira do racionalismo científico, o conhecimento teológico. – A terceira – Ninguém é dono da Verdade. Melhor talvez, ninguém descobriu a Verdade, nem o cientista com suas teorias, hipóteses, métodos e tecnologias mais sofisticadas, nem o filósofo com seus mergulhos nos meandros da natureza das coisas e dos fatos, nem o homem comum com sua ciência intuitiva quase  instintiva, nem o teólogo por mais certeza e convicção que lhe garante a fé. Mais do que nunca permanece verdadeiro o princípio que elegemos como título dessa reflexão: “Doctrina Multiplex-Veritas Una” – “As doutrinas são muitas – a Verdade é uma só”, ou como diria Nicolau de Cusa: “Ex partibus ominibus elucet totum” – “Pelas partes vislumbra-se o Todo”. Ou ainda a Verdade é o Todo e somente o Todo é a Verdade.

Quando se trata de explicar a natureza dos fatos e acontecimentos que dizem respeito ao homem e tudo que o rodeia e envolve, estamos habituados a considerar apenas duas aproximações válidas: a abordagem a partir das Ciências Naturais e a partir  das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, das Letras e Artes. Acontece, porém, que se formos  rastrear as veredas percorridas pelo conhecimento, desde que estamos de posse de dados confiáveis, uma coisa parece certa. A partir do momento em que, em alguma data remota e em algum lugar não conhecido da terra, faiscou  pela primeira vez a centelha da inteligência reflexa e “o homem se fez homem”, a pergunta pelo quando, o como e o porque da sua própria existência e do universo que o rodeava, fez parte das suas preocupações. Os fatos e fenômenos que acompanhavam a concepção, a gestação, o nascimento, o crescimento, o declínio e a morte individual, colocaram o homem de então frente a incógnitas que pediam explicações. O mesmo se pode afirmar das realidades que o rodeavam: os ciclos do ano, as fases da lua, a trajetória quotidiana do sol, a floresta misteriosa, a majestade das montanhas, o firmamento coberto de estrelas, os assustadores fenômenos da natureza como erupções de vulcões, a fúria das tempestades e tornados. Tudo isso reclamava explicações, sugeria razões de ser, sentidos e significados. E quais foram os instrumentos de que os pastores nômades, os agricultores, os caçadores, os pescadores e os coletores do neolítico e do paleolítico dispunham. Não muito mais do que uma percepção intuitiva, com muita coisa próxima do instinto, estimulando a capacidade reflexiva, alimentando a curiosidade e a procura de explicações. Foi em meio a esse panorama caracterizado por uma sobrevivência amparada num misto de estímulos instintivos, mas municiada também pelos potenciais do seu raciocínio reflexo, que o homem foi consolidando as bases do conhecimento. E conhecer não significa apenas ter certezas matemáticas, demonstrações em laboratórios, observações microscópicas, experimentos em estações experimentais ou observações em telescópios orbitando no espaço. O conhecimento também não se limita aos resultados e às conclusões da lógica racional. O verdadeiro conhecimento é algo muito mais complexo. Ele busca, como sempre buscou, a sua legitimidade na satisfação da curiosidade, no atendimento às necessidades, na resposta aos questionamentos e na contribuição que é capaz de dar ao homem em busca da sua realização existencial.

A premissa de que o conhecimento é fruto da busca do homem por caminhos que o levam a decifrar-se a si mesmo e ao mundo em que vive, faz concluir de que qualquer resposta nesse sentido, é fruto de alguma forma de conhecimento. Tentemos identificar e caracterizar o que parecem ter sido e são ainda hoje os diversos níveis do conhecimento.

[ Reflexões ]

Com o homem as coisas se passam de maneira bem diferente. Munido de Inteligência Reflexa é capaz de “saber o porque do seu saber”. Por isso desde aquele momento único na história do universo em que, em alguma savana da África ou em qualquer outro lugar do nosso planeta, cintilou pela primeira vez a centelha da Consciência Reflexa e o homem se fez homem, sua natureza permaneceu a mesma até hoje. Se a espécie humana fosse apenas mais uma espécie de símios antropoides, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou condenado a uma sobrevivência sem brilho. Suas mãos não especializadas servem para tudo, e por isso mesmo, não servem para nada específico. Seus dentes caninos servem para pouco mais do que completar a arcada dentaria. Seus sentidos pouco apurados não lhe garantem os alertas e alarmes suficientes, num entorno em que atrás de cada árvore, cada arbusto, cada rocha, ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem. A Inteligência Reflexa não só compensou a precariedade da especialização anatômica, como a transformou em trunfo para o sucesso na competição pela conquista dos espaços e na batalha pela sobrevivência.

Com olhar curioso e inquiridor o homem perambulava pelas florestas, pelas estepes, pelos desertos, pelas montanhas e planícies, observando, experimentando, comparando, distinguindo e selecionando aquilo que a natureza lhe punha à disposição em alimentos, vestuário, abrigo, proteção, inspirações, simbolismos e estímulos, responsáveis pela formação do imaginário. A cepa original da espécie humana multiplicou-se e povoou a terra: a África, a Ásia, a Europa, as Américas e o mundo insular do Pacífico. Centenas de raças: brancas, negras, amarelas, vermelhas e todos os matizes que a miscigenação entre elas foi capaz de engendrar, construíram suas histórias, desenvolveram culturas e consolidaram civilizações. E nessa fantástica epopeia o homem buscou no seu entorno ambiental o sustento, o abrigo e os símbolos para construir o seu imaginário. A partir de então aconteceu a lenta e gradativa simbiose, a síntese entre o homem e a paisagem, e com ela, definiu-se o caleidoscópio multicolorido das culturas das centenas de milhares de povos que povoaram e ainda povoam a terra.

Fazer história consiste no esforço de acompanhar, passo a passo, o acontecer da síntese entre os muitos elementos que compõem a trajetória humana através do tempo e do espaço. E quais são os campos que necessariamente precisam ser tomados em conta se de alguma forma quisermos entender a história da humanidade no seu todo ou nas suas inúmeras formas particulares? Pelo fato de formar uma espécie biológica o homem acha-se imerso ontologicamente no mundo natural. Não é aqui nem o lugar nem o momento para uma análise mais aprofundada da sua vinculação com a natureza química, física, biológica, biogenética e evolutiva. O que não pode ser ignorado por nenhum historiador é a importância decisiva do entorno geográfico em que as culturas e civilizações históricas se desenvolveram. A disponibilidade, o tipo e a natureza das fontes de alimentação, o clima, a vegetação, a facilidade ou dificuldade de circulação, os solos, a topografia e outros elementos naturais, foram e são ainda fatores determinantes na moldagem do perfil histórico das culturas. Buscando no seu entorno geográfico os alimentos, o abrigo contra as intempéries, contra as feras e os inimigos da própria espécie, o homem consolidou uma relação de vida e morte com as vicissitudes circunstanciais. Mas não foi só isso. A natureza não oferece apenas o pão de cada dia como também os símbolos, os estímulos para alimentar o imaginário, dar vazão ao impulso estético, personificar o universo mitológico e fornecer respostas às questões existenciais. A dependência do homem da natureza ensinou-lhe caminhos, formas e alternativas, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história. E penetrando nos mistérios da natureza, e espelhando-se neles, procurou compreender-se a si mesmo, e dessa forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica da vida nos acampamentos dos pastores e aldeias dos agricultores e nos fenômenos naturais que envolviam o quotidiano. Fatos como nascer, viver e morrer; a jornada diária do sol, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a lua em divindades, personagens mitológicos. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo não tinha nada de estático. Os astros movimentavam-se numa dança disciplinada, percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis fixas. De tempos em tempos essa coreografia celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões iluminavam as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava pelo firmamento, para em seguida, submergir novamente no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas e a queda de meteoros, devem ter mexido com o imaginário daqueles povos. E observando as galáxias em noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo contornos de figuras de animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, a libra, os peixes, o touro, o leão e outros mais. Dessa forma o firmamento acima de suas cabeças povoou-se de criaturas imaginarias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia. Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre os criadores de cabras e ovelhas e os agricultores do neolítico e provavelmente mais cedo ainda. A relação real ou imaginaria que se estabeleceu a partir daí entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino dos homens, não parou de se aprofundar. Mesmo hoje, quando o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade e contando com um número de representantes nada desprezível nas camadas consideradas cultas e ilustradas.

O convívio imediato, diuturno e íntimo com a natureza, despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua existência desenrolava-se na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, suas crenças, sua religiosidade, suas religiões, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer se animava e se personalizava de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. Assumia vida e importância pelo que representava no quotidiano e pelo que sugeria à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. Em meio a essa dinâmica de interação, de amálgama e de síntese, as culturas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo. 

Alguém poderia objetar que há exagero nessas afirmações. A importância atribuída ao meio geográfico poderia levar à falsa compreensão de que as culturas são, em última análise, subproduto do meio geográfico. É verdade que, quanto mais se recua na História, tanto mais se faz perceber essa impressão. Sem cair, porém, no exagero, defendendo o determinismo geográfico, não se pode esquecer que sem a colaboração do geógrafo a análise e a pesquisa histórica carecem de um elemento fundamental. Não por nada a História e Geografia formavam uma unidade acadêmica e curricular até a década de 1960, fornecendo ao egresso o diploma de bacharel ou licenciado em Geografia e História.
Nas entrelinhas do que vinha afirmando sobre a importância dos subsídios que a geografia fornece ao historiador, um outro campo de vital importância para as Ciências Humanas é formado pela Antropologia, Etnografia e Etnologia. No acontecer da simbiose entre o entorno geográfico e o homem ao qual já nos referimos várias vezes, pela versatilidade criativa que a inteligência reflexa lhe proporciona, foi imprimindo um crescente toque de humanização às paisagens naturais. Cabe ao antropólogo físico, antropólogo cultural e antropólogo social, etnógrafo e etnólogo, municiar o historiador com dados sem os quais este corre o risco de escrever uma história, original talvez, mas carente de sustentação objetiva. Se a origem e natureza das matérias primas empregadas na construção da cultura material, tem tudo a ver com o meio geográfico em que se encontram, as tecnologias de confecção e de utilização reclamam a participação do etnógrafo que as descreve e o etnólogo que realiza o estudo comparativo. Mas os dados por eles fornecidos não são suficientes. É preciso recorrer ao antropólogo cultural para de alguma forma oferecer uma visão e uma compreensão das bases materiais, ideais e organizacionais sobre as quais a humanidade construiu a sua história. O homem por natureza, ou por instinto se preferirem, é um ser social. Desde que dispomos de alguma maneira de informações confiáveis o homem sempre viveu em hordas, bandos, tribos e/ou sociedades complexas, que definiam as regras da convivência, de acordo com cada situação em particular e o nível de desenvolvimento cultural de cada agrupamento. Da mesma forma a organização econômica mais ou menos complexa, responsável pela regulamentação do acesso, posse e uso dos bens materiais, encontra-se presente em qualquer ambiente em que convivem humanos. À organização social e econômica veio somar-se a organização política e a organização religiosa, aquela encarregada de definir a hierarquia e esta as crenças, rituais e o comportamento ético e moral. Definiram-se assim os campos da Antropologia que hoje contam com um número crescente de adeptos e especialistas: A Antropologia Social, a Antropologia Econômica, a Antropologia Jurídica, A Antropologia Religiosa, a Antropologia Filosófica e a Antropologia Teológica.

E o que sugere o que acabamos de afirmar? Em algum momento que se perde nas brumas do tempo, começou a História, quando apareceu a primeira criatura dotada de inteligência reflexa. Não importa nem onde nem quando. Os dados fornecidos pela paleontologia antropológica, pela biogenética, pela arqueologia apontam para um fato que se deu uma única vez. Em outras palavras: A espécie humana é uma assim como sempre foi uma. À mesma conclusão chega-se quando se parte do conceito filosófico e teológico de espécie humana. A partir daí e na medida em que crescia em número, a humanidade foi ocupando sempre mais espaços, até marcar                               presença onde de alguma forma encontrava as condições mínimas de sobrevivência. E nesse processo que consumiu dezenas para não falar em centenas de milhares de anos, aconteceu a diversificação das raças e as incontáveis formas e modalidades de culturas das quais nos dão conta a geografia humana, a etnografia, a etnologia, a antropologia física e cultural, a história e as áreas complementares do conhecimento. Conclui-se daí que o homem construiu e continua construindo as suas culturas a partir da multiplicidade, da heterogeneidade e da complexidade dos estímulos que vêm do mundo ambiente em que vive. Mas não se pode perder de vista que essa pluralidade tem uma razão de ser na unidade radical de que fala Nicolau de Cusa, Teilhard de Chardin, Ludwig von Bertalannffy, Balduino Rambo, ou a pluralidade é a forma fenomênica do Uno, como observou Alexandro Serrano Caldera. Partindo desse pressuposto todas as culturas têm valor em si. É preciso superar velhos conceitos e preconceitos como: povos selvagens e povos civilizados, baixa, média, alta selvageria e civilização, primitivo e moderno, bárbaro e civilizado, cultura superior e inferior e outros mais. Uma outra base conceitual se impõe. As culturas encontram-se em níveis tecnológicos diferentes e em condições geográficas peculiares. Por isso elas são diferentes, o que não é prova de inferioridade ou superioridade evolutiva. Não são nem piores nem melhores umas do que as outras. São apenas diferentes. Cada cultura não passa de uma resposta singular dada por cada povo em particular, às necessidades materiais e espirituais sintonizadas com as características e estímulos vindos do entorno ambiental concreto.

Partindo dessa perspectiva foi tomando vulto a Filosofia Intercultural que parte do pressuposto de que todos as culturas são iguais na sua raiz.. Cada uma representa uma resposta peculiar dada aos desafios da vida, estimulada pelo contexto em que vive e como tal válida e digna de respeito. Todo empenho é pouco quando entra em questão o reconhecimento das diferenças, a aceitação das diferenças, o respeito às diferenças e o esforço sincero de incentivar o diálogo entre as diferenças. É a essa altura que se impõe o imperativo ético capaz de reger o encontro e as relações interculturais. Sem um fundamento ético toda a pregação e todo fascínio pela visão intercultural, estagna no plano da especulação, das constatações antropológicas, históricas, sociológicas, políticas ou ideológicas.

Voltamos assim ao ponto de partida: fazer História, diria Alexandro Serrano Caldera, “é percorrer novamente velhos caminhos, imaginar o ocorrido e sobre ele construir a nossa realidade, o que por sua vez, servirá de ponto de partida para a projeção do futuro pois, as coisas não são como as vemos, mas como as recordamos” (Caldera, 2004, p. 14). Trata-se de uma empreitada que requer um esforço interdisciplinar sério, honesto, despojado e desinteressado. Ao filósofo cabe identificar, analisar e interpretar os paradigmas, a visão do mundo, a concepção do homem e a sua razão de ser; cabe ao antropólogo interpretar a obra do homem nas suas ambições, limitações e grandezas; cabe ao geógrafo fornecer os dados para entender os milhares de perfis de culturas  que se sucederam e alternaram durante a História; cabe, enfim, ao Historiador a tarefa de, considerando o pano de fundo formulado pelo filósofo, a realidade humana pintada pelo antropólogo e a paisagem natural  desenhada pelo geógrafo, ordenar e descrever a marcha sincrônica e diacrônica do homem através dos tempos.

Conclui-se que a missão das Ciências que lidam diretamente com o homem, não é nem fácil, e não poucas vezes considerada dispensável, inútil e perda de tempo, num momento em que a tecnologia está em alta. O que vale é o aqui e o agora. O passado nada tem a oferecer e o futuro não passa de uma incógnita, uma ilusão, uma utopia ilusória e impossível. De outra parte, porém, os anseios mais profundos do homem clamam pela reversão do quadro de fragmentação, dissociação, desconstrução de paradigmas e a abolição de referenciais. Percebe-se um apelo crescente que pede por uma proposta de uma nova síntese, que recoloque o Todo, a Verdade, o Uno, como ponto de convergência, como norte, capaz de fazer com que o ser humano se reencontre de novo consigo mesmo e com a sua própria razão de ser.

[ Reflexões ]

Reflexão sobre o fazer História

Depois de mais de cinco décadas em sala de aula e dedicação à pesquisa chegou o momento de arriscar um olhar retrospectivo e proceder a um balanço dos resultados auferidos nessa jornada dedicada à academia. Esses anos todos não foram simplesmente consumidos em ministrar aulas, e por meio delas, familiarizar as novas gerações com os conhecimentos essenciais que cobrem os diversos campos do conhecimento, ou na orientação de trabalhos científicos, dissertações e teses. É comum a impressão de que a razão de ser de um mestre se esgota ao nível dessas atribuições formais. Acontece que as demandas que caracterizam um autêntico mestre, e eu me incluo entre eles, podem rotula-lo de falta de modéstia, não me importo, pressupõem uma constante atualização, ampliação e aprofundamento dos conhecimentos. E na medida em que informa e principalmente forma gerações de discípulos elabora, consolida e interioriza uma cosmovisão própria, fruto da percepção original e singular pela qual enxerga os acontecimentos e fatos que o rodeiam. Muitos há que não passam do alinhar-se ou filiar-se a linha teórica e metodológica de um determinado autor ou de uma determinada escola. Com orgulho autodenominam-se marxistas, liberais, positivistas, hegelianos, tomistas, platônicos, aristotélicos, agostinianos, cramscianos, da Escola de Frankfurt, etc. Costumam analisar e interpretar tudo sob a ótica teórica e seguir a cartilha metodológica das autoridades acadêmicas ou escolas de sua preferência. Em outras palavras. Bitolam suas investigações na linha de teóricos, teorias e escolas de plantão no momento. Uma opção nesta linha, porém, esconde uma perigosa armadilha. Não raro termina numa percepção unilateral e parcial da realidade e com facilidade leva à adesão a ideologias de ação equivocadas que, se levadas ao extremo, terminam em posições fundamentalistas, tanto no campo estritamente religioso, quanto no político, econômico e até científico. Não se  dão conta de que as teorias não costumam durar mais que “uma manhã de verão”, como alerta  Teilhard de Chardin. Essa é a sina que ronda cientistas, pesquisadores e estudiosos de modo especial na civilização pós-moderna. Diante de um universo fragmentado, a ponto de perder a noção do todo, constroem mundos individuais cada vez mais acanhados e estanques. O físico, o biólogo, o geneticista, o geógrafo, o sociólogo, o economista, o antropólogo, o historiador, o filósofo, o teólogo, recolhem-se aos seus cubículos sem janelas. A perda da capacidade de perceber o Todo, a Totalidade, é diretamente proporcional ao avanço de suas descobertas. De tanto dissecar, desmontar e analisar já não percebem mais o corpo, muito menos a alma. Só restam tecidos, engrenagens, peças de máquina, fatos e ideias dispersas. Há mais de setenta anos escrevia Teilhard de Chardin, prenunciando a pós-modernidade que se anunciava no horizonte:

Ao contrário dos “primitivos” que dão personalidade a tudo que se mexe, ou mesmo dos primeiros grupos que divinizavam todos os aspectos e todas as forças da natureza, o homem moderno tem a obsessão de despersonalizar o que mais admira. Duas razões para essa tendência. A primeira é a análise – esse maravilhoso instrumento da pesquisa científica, ao qual devemos todos os nossos progressos – mas que, de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e de partículas que se esvaem. E a segunda é a descoberta do mundo sideral, objeto tão vasto que se tem a impressão de que toda a proporção entre o nosso ser e as dimensões do Cosmos à nossa volta, foi abolida”. 

E a profecia de Teillhard de Chardin tornou-se dura realidade neste começo do terceiro milênio. O mundo pós-moderno caracteriza-se pela perda de referências e pela negação de princípios e valores sociais, éticos, morais e religiosos permanentes. E a razão de ser desse cenário preocupante é a perda da perspectiva de um Todo que serve de referência e faz com que o universo, a natureza e o próprio homem façam sentido e não desande em “náusea existencial”, no entender de Sartre.  O esforço maior, portanto, que cabe à Academia e mais especificamente à Universidade consiste, em de alguma forma, trilhar o caminho de volta ao reencontro com o Todo, a Totalidade, a Verdade. Alexandro Serrano Caldera chama a atenção que:

 “Vivemos num mundo cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação e que cabe à Universidade reunir de novo os fatores dispersos numa unidade que é o ser humano; numa síntese que é o homem, a mulher, o sujeito histórico”... “Há nisso a intenção fundamental de síntese e integração do ser humano com sua realidade, com a sua sociedade e com a sua história. É nesse particular que a Universidade e o Conhecimento têm de jogar um papel unificador”. (Caldera, 2004, p. 106)

Deixemos de lado os campos que se ocupam com as assim chamadas ciências empíricas, ciências experimentais, ciência exatas, ciências duras, ou qualquer outro nome que se prefira. O nosso “negócio”, para nos servirmos do termo tão prestigiado pelo homem pós-moderno, são as Ciências Humanas, e mais especificamente, as Ciências Históricas.

Como sugere o próprio conceito as “Ciências Humanas” cobrem um vasto e complexo campo de conhecimentos e investigações complementares que têm no homem o centro das preocupações. E sendo assim, todo e qualquer esforço para encontrar respostas para as muitas perguntas que se colocam para o historiador, pressupõe uma que é a condição sem a qual as demais ficam no ar: quem é afinal o Homem? As respostas são tantas quantos os pontos de vista a partir dos quais o observamos. Parece que os antigos gregos formularam uma que pode ser útil como ponto de partida para uma reflexão sobre o homem como ser histórico: o homem existe  como a natureza mineral; o homem existe e vegeta como as plantas; o homem existe, vegeta, sente como os animais; o homem existe, vegeta, sente e raciocina. Em outras palavras. Os minerais existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam, sentem, têm consciência e memória, o homem existe, vegeta, sente, tem consciência e memória, mas   distancia-se das categorias taxonômicas anteriores, por tomar conhecimento e “raciocinar”. São várias as conclusões que podemos tirar dessa constatação.

Primeiro. Ao percorrermos a história dos povos, um fato inequívoco impõe-se: a relação do homem e de suas culturas com o meio natural em que surgiram e se consolidaram. E não se trata de uma simples relação conjuntural, mas de uma inserção existencial, ontológica, no mundo natural. E não poderia ser de outra forma. Começa pelo fato de o corpo material do homem buscar os componentes estruturais entre os elementos comuns encontráveis na natureza: oxigênio, nitrogênio, carbono e hidrogênio, além de duas dezenas de outros, constantes na tábua periódica dos elementos.

Segundo. Como qualquer outra espécie animal o homem depende dos alimentos, depende dos abrigos e refúgios naturais para se proteger das intempéries e defender-se das feras e dos inimigos da própria espécie.

Terceiro. O homem partilha com os outros animais o mesmo ciclo de vida. É concebido, nasce, vive e morre em obediência às mesmas leis que regem a vida individual e coletiva das demais espécies. Mais. A humanidade, assim como nos é apresentada pelas Ciências, pela Antropologia, pela História, pela Filosofia e pela Teologia, forma uma única espécie. Pelo menos é assim que a definem os critérios taxonômicos da classificação das espécies animais e confirmam-no os estudos do genoma humano e os estudos da paleologia antropológica. As pesquisas arqueológicas, etnográficas e etnológicas, assim como a história da cultura, apontam para a mesma conclusão. E para não haver dúvida sobre a unidade da espécie humana, a Antropologia Filosófica e a própria Antropologia física e a Teológica concordam com as definições que as Ciências Naturais e as Ciências Humanas defendem na teoria e supõem como ponto de partida quando lidam na prática com questões humanas.

Quarto. A espécie humana, entretanto, embora com raízes ontológicas no mundo mineral ou na litosfera, no mundo vivo ou biosfera, supera-os pela inteligência reflexa, para dar vida e existência a uma esfera completamente nova, a “Noosfera”, para recorrer a um dos conceitos-chave de Teilhard de Chardin. Enquanto os minerais apenas existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam, sentem e se orientam pelos instintos, o homem existe, vegeta, sente e conta com os instintos como estímulos, mas sobretudo raciocina e reflete.  Não é o lugar nem o momento de entrarmos mais a fundo na discussão se a passagem do Rubicão que marca a fronteira entre o instintivo e o racional, foi um salto de qualidade ou apenas mais uma ascensão gradual prevista na lógica da evolução natural. O fato é que representou o ponto de partida para uma revolução inédita de uma espécie viva na solução dos desafios existenciais. Em outras palavras é lícito formular o “salto” a que nos acabamos de referir nos seguintes termos: o animal orientado pelo instinto “sabe” o que lhe convém e “sabe” o que lhe é prejudicial. O instinto cego garante-lhe o sucesso sempre que o âmbito do seu potencial não for ultrapassado. Nesse sentido pode-se afirmar que o instinto garante com certeza matemática o sucesso, e por isso o animal não tem versatilidade nem liberdade para escolher saídas alternativas, quando algum caminho se fecha.

[ Reflexões ]

Até aqui tentamos esboçar em linhas muito gerais como aconteceu a síntese que resultou da busca do homem dos recursos para atender às demandas materiais e espirituais durante o Neolítico. O resultado foi a consolidação da identidade das culturas dos caçadores e coletores. As identidades étnico-culturais consolidadas no decorrer do Paleolítico, resultaram da relação existencial entre o homem e o meio contingenciado pela própria natureza dos fatos. O homem não vive, não sobrevive, muito menos prospera fora dos contextos geográficos que vai encontrando na sua expansão pelos múltiplos territórios que a superfície da terra lhe oferece. Num primeiro momento busca o que lhe é oferecido espontaneamente para sobreviver. A identidade étnica dos primeiros grupos e caçadores, pescadores e ou coletores, exibia as marcas evidentes da batalha travada com o entorno geográfico. Essa situação começou a melhorar na medida em que o homem se equipou com ferramentas e as foi aperfeiçoando e especializando. Aos poucos o “humano” foi-se impondo até aproximar-se do equilíbrio no qual o meio ambiente entrou com as matérias primas, os referenciais simbólicos e a maneira como o homem materializa seu imaginário e torna palpável seu universo mitológico e suas crenças. Orientado pelo instinto de sobrevivência o homem foi buscar na natureza os alimentos de que necessitava. E, desde muito cedo o próprio ato de alimentar-se, essencial par viver, ultrapassaria o simples ato instintivamente compulsório, para fazer-se acompanhar de procedimentos de natureza cultural: hábitos, costumes, proibições, tabus e outros. O ato de alimentar-se assumiu as características de um ritual. E não só o ato de alimentar como também os próprios alimentos passaram a integrar as culturas, revestidos de sacralidade, de poderes mágicos, afrodisíacos, religiosos ou maléficos.

A parceria do homem com a natureza ensinou ao homem caminhos, formas e alternativas de como melhor consolidar uma pareceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da própria história. E, nesse esforço, três desafios estimularam a criatividade. Em primeiro lugar, encontrar alimento e abrigo, assegurando a sobrevivência física. E segundo lugar, descobrir e aperfeiçoar tecnologias eficientes tornando mais fácil a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. O terceiro o mais importante de todos, consistiu no esforço de penetrar nos mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo para, desta forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência.

O convívio imediato, diuturno, íntimo, existencial com a natureza despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua vida desenrolava-se na mesma cadência, nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, alimentando suas crenças, sua religiosidade, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim, a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer,  animava-se e se personificava de acordo com seu significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades naturais e os fenômenos que as acompanhavam assumiam importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. E, em meio a esse processo de interação, de amálgama e de síntese, as culturas e identidades étnicas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.