Doctrina multiplex – Veritas una
As Doutrinas são muitas – a Verdade uma só.
Na medida em que a vida avança e os anos se somam em décadas, umas depois das outras, a natureza e os objetos das reflexões diminuem gradativamente em número, mas em compensação aqueles que perduram, ganham em importância existencial. Aos vinte anos olhávamos em nossa volta e percebíamos o mundo como um cenário feito de múltiplas possibilidades. Caminhos em muitas direções nos convidavam a percorrê-los. Percebíamos o mundo como um cenário de múltiplas possibilidades para planejarmos os rumos da nossa existência, realizarmos nos nossos sonhos e concretizarmos os nossos ideais. A imaturidade e a falta de experiência cobraram em não poucas ocasiões um preço muito alto. Não poucos sonhos mostraram-se quimeras fugazes, outros tantos, utopias impossíveis. Opções para darmos rumos à vida que pareciam definitivas, mostraram-se equivocadas no decorrer dos anos. Para não sucumbir em tais situações foi preciso recorrer a correções de rota que, aparentemente, poderiam parecer rupturas pela raiz com o passado. Objetivamente falando, porém, não passaram de escolhas ousadas para não sacrificar a linha mestra da coerência que tínhamos traçado para a vida. E assim nos empenhamos na compreensão da vida e das vivências pessoais, dos relacionamentos com as pessoas, da atividade acadêmica, da procura de soluções para as perguntas de fundo da existência, da busca de respostas satisfatórias pelo sentido e o lugar que no universo cabe à natureza, ao homem e a Deus. Alinham-se nessa lógica também situações limites em que a nossa resistência física, psíquica e espiritual, foi posta à prova próxima ao sobre-humano. Se corretamente entendidas e avaliadas, porém, essas eventualidades que nos surpreenderam na nossa caminhada ao longo dos anos, tinham o poder de depurar, selecionar, descartar, dar valor ao verdadeiro, e dessa forma converter a “Geschenkte Zeit” – como diriam os nossos antepassados, ou “o tempo que nos resta como uma dádiva valiosa” – no coroamento prazeroso dos muitos sonhos que alimentamos e numa lição proveitosa para os que continuam privando conosco.
E para não ficar apenas em afirmações genéricas, vagas talvez, tentarei aprofundar um pouco a linha de reflexão esboçada. Parece-me que a grande mestra que é a vida nos propõe três lições a serem aprendidas. - A primeira. Nenhuma proposta teórica e metodológica por si só contém potencial suficiente para dar uma resposta final para as questões realmente de fundo como são: a origem e o sentido do universo, da natureza, do homem, e em meio a isso tudo, qual o lugar ou não lugar para Deus. – A segunda. Além das abordagens convencionais pelo lado das Ciências Exatas ou da Filosofia, duas outras aproximações não podem ser ignoradas: o conhecimento que nos fornece a percepção, difusa, de alguma forma instintiva e intuitiva, tão importante na orientação e conduta do quotidiano das pessoas. E a esses níveis de respostas é preciso acrescenta, sob o protesto e a ira do racionalismo científico, o conhecimento teológico. – A terceira – Ninguém é dono da Verdade. Melhor talvez, ninguém descobriu a Verdade, nem o cientista com suas teorias, hipóteses, métodos e tecnologias mais sofisticadas, nem o filósofo com seus mergulhos nos meandros da natureza das coisas e dos fatos, nem o homem comum com sua ciência intuitiva quase instintiva, nem o teólogo por mais certeza e convicção que lhe garante a fé. Mais do que nunca permanece verdadeiro o princípio que elegemos como título dessa reflexão: “Doctrina Multiplex-Veritas Una” – “As doutrinas são muitas – a Verdade é uma só”, ou como diria Nicolau de Cusa: “Ex partibus ominibus elucet totum” – “Pelas partes vislumbra-se o Todo”. Ou ainda a Verdade é o Todo e somente o Todo é a Verdade.
Quando se trata de explicar a natureza dos fatos e acontecimentos que dizem respeito ao homem e tudo que o rodeia e envolve, estamos habituados a considerar apenas duas aproximações válidas: a abordagem a partir das Ciências Naturais e a partir das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, das Letras e Artes. Acontece, porém, que se formos rastrear as veredas percorridas pelo conhecimento, desde que estamos de posse de dados confiáveis, uma coisa parece certa. A partir do momento em que, em alguma data remota e em algum lugar não conhecido da terra, faiscou pela primeira vez a centelha da inteligência reflexa e “o homem se fez homem”, a pergunta pelo quando, o como e o porque da sua própria existência e do universo que o rodeava, fez parte das suas preocupações. Os fatos e fenômenos que acompanhavam a concepção, a gestação, o nascimento, o crescimento, o declínio e a morte individual, colocaram o homem de então frente a incógnitas que pediam explicações. O mesmo se pode afirmar das realidades que o rodeavam: os ciclos do ano, as fases da lua, a trajetória quotidiana do sol, a floresta misteriosa, a majestade das montanhas, o firmamento coberto de estrelas, os assustadores fenômenos da natureza como erupções de vulcões, a fúria das tempestades e tornados. Tudo isso reclamava explicações, sugeria razões de ser, sentidos e significados. E quais foram os instrumentos de que os pastores nômades, os agricultores, os caçadores, os pescadores e os coletores do neolítico e do paleolítico dispunham. Não muito mais do que uma percepção intuitiva, com muita coisa próxima do instinto, estimulando a capacidade reflexiva, alimentando a curiosidade e a procura de explicações. Foi em meio a esse panorama caracterizado por uma sobrevivência amparada num misto de estímulos instintivos, mas municiada também pelos potenciais do seu raciocínio reflexo, que o homem foi consolidando as bases do conhecimento. E conhecer não significa apenas ter certezas matemáticas, demonstrações em laboratórios, observações microscópicas, experimentos em estações experimentais ou observações em telescópios orbitando no espaço. O conhecimento também não se limita aos resultados e às conclusões da lógica racional. O verdadeiro conhecimento é algo muito mais complexo. Ele busca, como sempre buscou, a sua legitimidade na satisfação da curiosidade, no atendimento às necessidades, na resposta aos questionamentos e na contribuição que é capaz de dar ao homem em busca da sua realização existencial.
A premissa de que o conhecimento é fruto da busca do homem por caminhos que o levam a decifrar-se a si mesmo e ao mundo em que vive, faz concluir de que qualquer resposta nesse sentido, é fruto de alguma forma de conhecimento. Tentemos identificar e caracterizar o que parecem ter sido e são ainda hoje os diversos níveis do conhecimento.