A Natureza como Síntese - 58

A dimensão da questão ambiental.   Para Wilson há três empecilhos, ou se quisermos três desafios a considerar quando se trata de encarar a questão ambiental com seriedade, honestidade e objetividade. O primeiro, refere-se à compreensão que as pessoas quando falam da natureza ou do meio ambiente. Toda pessoa razoavelmente informada tem consciência de que se trata de um assunto de grande importância.  Por isso mesmo não tem consciência das razões porque o cuidado com o meio físico-geográfico é de tamanho significado e porque são corresponsável pela sua preservação. Poucos  se dão conta de que lidamos com um assunto que afeta  a própria sobrevivência da espécie humana. Menor é ainda o número que enxerga no zelo para com a natureza um desafio ético-moral pelo fato de os recursos naturais serem um bem comum. Como tal a sua posse e uso tem como limite o direito do uso e fruto dos bens de todos os tipos que ela oferece.  O segundo problema que se  põe tem a ver com o primeiro e encontra-se na raiz do conhecimento precário, superficial e distorcido que muitas  pessoas tem da natureza. Acontece que no ensino em todos os níveis, especialmente no fundamental e médio, o tema, se é contemplado, recebe um tratamento  pouco profundo porque outras disciplinas são ou parecem mais importantes. Sobre essa base precária de informações o assunto ecologia, preservação e outros termos que são correntes, oferece facilmente munição para todo o tipo de manipulação ideológica, política e simplesmente interesseira. A enorme complexidade que os estudos e pesquisas no campo da biologia vem revelando, representa  o terceiro motivo porque as pessoas comuns normalmente não tem um conhecimento suficientemente abrangente e profundo que lhes permita uma avaliação crítica das questões ambientais. Os avanços no campo da biologia são tamanhos que até especialistas na área tem dificuldade em manter-se atualizados com todas as principais novidades que brotam dos laboratórios de pesquisa. 

A solução para superar as três dificuldades: ignorância em relação ao ambiente natural,  formação precária das pessoas no assunto e a enorme complexidade do problema podem ser superadas, conforme Wilson, está “em reformulá-las e condensá-las num só problema”. (A Criação, p. 22), e conclui a reflexão com uma proposta ao seu interlocutor.

Pastor, espero que a sua opinião sobre o assunto seja de que toda a pessoa instruída deveria saber alguma coisa sobre a questão. Tanto o professor como o aluno vão se beneficiar ao reconhecer que a Natureza viva abriu um vasto caminho até o coração da própria ciência, que a amplidão da nossa vida e do nosso espírito depende da sobrevivência da Natureza. É necessário compreender e discutir, sobre um terreno comum, este princípio: como fazemos parte da Criação, o destino da Criação é o destino da humanidade. (Wilson, 2008,  p. 22).

Depois de sinalizar o caminho a trilhar para uma correta compreensão da natureza, tomar as atitudes certas  e escolher os meios adequados, nos demais capítulos do livro “A Criação”, Wilson mostra como as pesquisas na área da Biologia, levam à conclusão de que a Natureza resultou de uma grandiosa síntese, num “Fato Objetivo”, como ele próprio a definiu. Bertalanffy fala em “Sistema” e Collins em “BioLogos”, Teilhard de Charden em “Unidade na complexidade”. No fundo o sentido é o mesmo. Para se convencer de que a natureza é um “Fato”, Wilson apoiou-se em conclusões que foi tirando do resultado de suas pesquisas em laboratório, mas principalmente observando ecossistemas naturais e humanizados.  

Wilson começa sus reflexões sobre a natureza alertando para  o fato de que os dados objetivos de que a Biologia em todas as suas ramificações dispõe de momento, são totalmente insuficientes para se fazer uma ideia aproximada do que seja a natureza. Sua complexidade ultrapassa qualquer tentativa de abarcá-la. “Se parece ser impossível conhecer Deus, o mesmo se dá com a maior parte da biosfera”. (A criação, p. 23). Os  animais domésticos propriamente ditos e aqueles, embora selvagens, mas familiares ao homem, são incapazes de oferecer dados mínimos, nem quantitativos, muito menos qualitativos, para desenhar um retrato da natureza que corresponda à realidade objetiva, nem mesmo nos seus traços mais essenciais. De outra parte as simulações mais refinadas dos processos vitais produzidas em laboratório somados a modelos matemáticos, estão a quilômetros de distância daquilo que efetivamente acontece na multiplicidade e nos incontáveis níveis de complexidade que a biosfera oferece. Todas a tentativas de criar em laboratório formas de vida, mesmo as mais rudimentares como as arqueobactérias, foram até agora frustradas. “Novos mundos e descobertas intermináveis se mantêm à espera na Natureza, e entre elas a solução do mistério dos mistérios, o significado da vida humana”. (A Criação, p. 23). Donde viemos, o que somos e para onde vamos?. Esse quadro coloca-nos diante de um desafio de bom tamanho, no momento em que nos arriscamos a condensar num conceito conciso, porém, compreensivo, do que seja a Natureza. Wilson formulou assim esse conceito:  “A Natureza é aquela parte do ambiente original e de suas formas de vida  que permanece depois do impacto humano. Ou – Natureza é tudo aquilo no planeta Terra que não necessita de nós e pode existir por si só” (A Criação, p.23).

Esta, ou qualquer outra definição que procura sintetizar o que é a Natureza, encontra suas dificuldades por uma série de razões. Acontece que a interferência do homem na Natureza e a humanização das paisagens mais remotas, avançou a tal ponto que pouco resta das suas características originais. Sendo assim uma definição como a que acabamos de citar, para muitos não tem grande serventia prática. Isto é, caracteriza uma terra que existiu até que, durante o neolítico, o agricultor e o criador de animais, deram início à humanização progressiva dos ambientes naturais. Os vales de aluvião dos rios e as florestas  nas latitudes temperadas e subtropicais, tiveram sua cobertura vegetal original substituída pelas plantações. as aldeias e cidades de agricultores, interligados por vias de comunicação cortando a paisagem em todas direções. Passados 15000 anos encontramo-nos diante de uma realidade que preocupa e obriga a refletir. Hoje será difícil, senão impossível encontrar uma área geográfica de porte razoável nunca pisada pelo homem.  Quem sabe uma ilha, ou regiões remotas do Alasca, do Canadá, ou da Sibéria ou qualquer outro ponto extremo de um continente ou no interior deles, ou nas montanhas mais difíceis de escalar. De meio milênio para cá a navegação marítima desencadeou uma verdadeira febre para conhecer novas terras, novos continentes, novos mundos com seus habitantes e culturas “exóticas”, suas belezas naturais e, principalmente, seus recursos e riquezas naturais. A revoada de viajantes conquistadores, comerciantes, aventureiros, cientistas, missionários, emigrantes, colonizadores que desembarcou   nas praias mais remotas do mundo, teve o seu clímax no século XIX e começo do século XX. De então para cá  a humanização da paisagem com sua face positiva e negativa avançou até os rincões mais remotos e mais impossíveis do planeta terra. As gigantescas florestas tropicais, os imensos desertos, as savanas, os campos naturais, as estepes, as pradarias, os pampas, as cordilheiras de montanhas, as florestas subpolares, as tundras, as ilhas mais remotas dos oceanos e até os polos da terra, já foram pisados pelo homem. As  pegadas que deixou estão impressas em toda a parte. Sua passagem e sua instalação definitiva  em metrópoles e regiões sempre mais densamente povoadas mascaram os vestígios da natureza original que, cá e lá, conseguem subsistir a muito custo. Nuvens de emissões de gás carbônico toldam o firmamento e o odor do asfalto roubou o lugar da hálito gostoso exalado pela floresta virgem e os campos cobertos de flores silvestres. Somam-se a isso as centenas de milhões de toneladas de lixo industrial e dejetos domésticos que não poupam nem os rios, nem os mananciais de água subterrânea, nem os mares e oceanos, nem as regiões mais remotas perto dos polos. A humanização da grande maioria dos ecossistemas naturais trouxe consigo a ameaça da extinção e da extinção de fato da assim chamada megafauna, isto é, animais com peso superior a 10 quilos. As manadas sem fim de mastodontes, elefantes peludos, varas incontáveis de porcos javalis, milhões de búfalos pastando livres nas pradarias americanas, não passam de registros guardados pela memória histórica fixada porartistas plásticos do paleolítico ou posteriores. Há 12000 anos a fauna das planícies americanas era mais rica do que a da África. Apesar de todo esse panorama desolador que ficou na esteira da intervenção implacável do homem, a natureza resiste. Wilson observa a respeito. 

Em seu estado mais puro, ela existe em locais que ainda são chamados legitimamente de áreas naturais intactas. Em linhas gerais, uma área natural em plena escala, com tamanho adequado para sustentar a megafauna, é definida como um agregado relativamente grande e não perturbado de habitats contíguos. Tal como é especificado pela Conservação Internacional (CI), em um estudo recente, trata-se de uma área de 10000 quilômetros quadrados (um milhão de hectares) ou mais, da qual pelo menos 70% contam com vegetação natural. Domínios dessa magnitude abrangem as grandes florestas tropicais da bacia amazônica, da bacia do Congo e a maior parte da ilha da Nova Guiné, além da taiga – o cinturão de florestas, sobretudo de coníferas, que se estende pelo Norte da América e continua pela Sibéria até a Fenoscândia (Finlândia, Suécia e Noruega). Áreas naturais de um tipo muito diferente sãos os grandes desertos da Terra, as regiões  polares, o alto-mar e o leito dos oceanos em grandes profundidades (em contraste são poucos os deltas de rios e águas costeiras que permanecem em seus estado original). (Wilson, 2008,  p. 25)

A Natureza como Síntese - 57

Para Wilson as civilizações representaram, em última análise uma “traição à natureza”. Foi a revolução neolítica que deu partida a esse processo. De um lado a revolução neolítica, a revolução dos alimentos, com diria Darci Ribeiro, acompanhada do séquito de tecnologias que trouxe como  consequência, foi sem dúvida uma grande bênção. A espécie humana passou da total dependência das fontes de alimentação, das matérias primas para a habitação e vestuário presentes na natureza, para a agricultura e a domesticação de animais. Com isso foi-se libertando da “escravatura” do que a natureza oferecia espontaneamente, para assumir o controle de suas fontes de subsistência. A vida sedentária, condição sem a qual a agricultura é impensável, valendo-se de tecnologias cada vez mais eficientes com a descoberto do cobre, estanho, o bronze, da fundição de ferro e outras, deram início a substituição da paisagem natural pela humana. Pela própria natureza a substituição, e consequentemente a interferência no ambiente natural dos povos pastores, foi menos profunda e mais  lenta do que dos agricultores. Em todo o caso, a interferência no ambiente natural, dos agricultores mais do que dos pastores nos ecossistemas naturais foi-se acelerando. As florestas foram desaparecendo, as várzeas dos rios drenadas e substituídos por complexos sistemas de irrigação e, modernamente, savanas, campos naturais, cerrados, etc.  deram lugar a gigantescas culturas de soja, milho, cana, algodão e outros. Todas essas conquistas não deixam de ser uma “Bênção”. Mas Wilson chama a atenção de que, a revolução dos alimentos estimulou a falsa premissa de que uma minúscula seleção de plantas e animais domesticados é capaz de sustentar  a expansão humana indefinidamente. A pauperização da fauna e da flora da Terra foi um preço aceitável até séculos recentes, quando a natureza parecia  praticamente infinita e uma inimiga dos exploradores e pioneiros. As áreas naturais  e os povos aborígines que nelas viviam deveriam ser afastados e por fim substituídos, em nome do progresso, ...  (Wilson, 2008,  p. 19)

Pela sua natureza a agricultura e criação de animais, entretanto, tem os seus limites em relação à modificação e ou destruição do meio ambiente. Começa por aí que ambas as atividades dedicam-se  de alguma forma ao cultivo de  plantas e multiplicação de animais, que na sua origem faziam parte dos ecossistemas naturais. Mesmo as paisagens em que durante milênios foi praticada a agricultura, por bem ou por mal, contam com uma cobertura vegetal permanente embora artificial. Entre os criadores de animais as paisagens naturais, estepes, savanas, campos naturais, pradarias, etc. os estragos causados pela presença do homem  foram ainda menos profundos. Contudo é preciso não esquecer de que a atividade agrícola substituiu a vegetação original e com ela interferiu severamente nos ecossistemas originais, cultivando meia dúzia de cereais e tubérculos. Da mesma forma a criação de poucas espécies de animais, reunidos em rebanhos vagando pelas pastagens naturais, teve como consequência o afastamento ou  o extermínio de não  poucas espécies nativas. Essa  situação perdurou, em grandes linhas, até a advento da revolução tecnológica a partir do século XVIII. Lentamente, acompanhando o ritmo da invenção de novas tecnologias e o aperfeiçoamento das já em uso, a paisagem natural vai perdendo rapidamente seus traços originais. A presença do homem faz valer a  sua capacidade ilimitada de impor sua superioridade ao  entorno geográfico. As aldeias de agricultores de poucas dezenas de habitantes transformam-se em centros urbanos em constante crescimento, até abrigarem milhares, dezenas de milhares e milhões de inquilinos. De realidades até certo ponto harmonizadas com o meio geográfico sempre mais aldeias de agricultores avançaram impiedosamente e tomaram o lugar da vegetação obrigando os animais a se refugiarem em outros ambientes. Com o correr das décadas pequenos centros urbanos surgiram, alguns deles localizados em posição estratégica, evoluíram para cidades com milhares e dezenas de milhares de  habitantes. E depois de poucos séculos nos flagramos diante de centenas de cidades com mais de um milhão de pessoas e dúzias de metrópoles concentrando mais de uma dezena de milhões. Ao comentar essa realidade Edward Wilson deixou a seguinte reflexão: 

Enquanto isso, a moderna revolução técnico-científica, incluindo, especial, o grande salto da tecnologia da informação baseada na computação, traiu a natureza pela segunda vez, ao promover a ideia de que os casulos da vida material das cidades e dos bairros residenciais são suficientes para  a satisfação humana. Trata-se de um erro bastante grave. A natureza humana  é mais profunda e mais ampla do que os inventos artificiais de qualquer cultura existente. As raízes espirituais do Homo sapiens se estendem até as profundezas  do mundo natural, por meio de canais de desenvolvimento  mental que ainda hoje permanecem, em geral, desconhecidos. Nosso pleno potencial não será atingido sem que compreendamos  a origem e, portanto, o significado das qualidades estéticas e religiosas  que nos tornam inefavelmente humanos.
 
Não há dúvida  de que muitas pessoas  parecem contentar-se em viver inteiramente  dentro desses ecossistemas sintéticos. No entanto, também os animais domésticos se contentam, até nos habitats grotescamente anormais em que nós os criamos, Isso, no meu modo de pensar,  é uma perversão. Não é da natureza  dos seres  humanos se tornar cabeças de gado em pastagens aperfeiçoadas. Cada pessoa merece ter a opção de entrar e sair com facilidade desse mundo complexo e primal que nos deu à luz. Precisamos de liberdade para vagar  por terras que não sejam propriedade de ninguém, mas protegidas por todos, terras cujo horizonte imutável é o mesmo que limitava o mundo dos nossos ancestrais milenares. Apenas onde resta um pouco do Éden, pujante de seres vivos independentes de nós, é possível experimentar o deslumbramento que deu forma à psique humana no seu nascimento.    (Wilson, 2008,  p. 20-21)

E qual é o caminho a ser trilhado para encontrar um equilíbrio aceitável entre as benesses e as armadilhas que as tecnologias em constante evolução nos oferecem e obrigam a aceitar? A resposta encontra-se na ampliação e aprofundamento do conhecimento científico. A solução será encontrada na medida em que a ciência em que as pesquisas científicas, de modo especial a biologia, a psicologia e outras especialidades, penetrarem sempre mais fundo nas relações existenciais entre a natureza e a alma humana. O homem como os demais seres vivos é feito da mesma matéria original que compõe o reino mineral; as base fisiológica e as leis que comandam o funcionamento do seu organismo são essencialmente as mesmas que regem a vida dos micro organismos mais simples; o homem como os demais seres vivos busca as matérias primas para a sua sobrevivência na natureza que o cerca; o homem encontra no entorno físico em que vive as fontes de inspiração para alimentar sua imaginação, materializar seus sentimentos, dar forma e vida a suas crenças. Não me alongo sobre essa realidade, pois foi o tema do primeiro capítulo das presentes reflexões. Por essas  e outras razões confirma-se a afirmação que serviu de mote para os presente trabalho, de que “a natureza existe e continua existindo sem o homem, mas o homem não existe nem subsiste sem a natureza”. Compreende-se assim que o mundo natural exerça tamanha atração sobre a alma do homem. Nem o fato de alguém ter nascido na total artificialidade de uma grande metrópole é capaz silenciar o apelo que vem do fundo do ser, pedindo por ar puro, pelas flores do campo, pelos pássaros cantando na liberdade silenciosa da floresta, pelas gotas de orvalho brilhando sobre as ervas do campo, pelo marulhar dos arroios de montanha e por tudo mais que sobrou da natureza devastada pelo próprio homem. Wilson observa a esse respeito.

Temos muito caminho pela frente até fazermos as pazes com este planeta, e um com o outro. Tomamos o caminho  errado quando iniciamos a revolução neolítica. Desde então temos procurado nos elevar saindo da Natureza, em vez de rumo a ela. Não é tarde demais para voltar atrás, sem perder a qualidade de vida já alcançada, a fim de receber as benesses profundamente gratificantes do legado da humanidade. (Wilson, 2008,  p. 21)

A Natureza como Síntese - 56

O desafio para salvar a natureza.  Para Wilson o grande desafio ético do século XXI consiste em salvar a natureza, ou o que sobrou dela, para que as pessoas encontrem um lugar decente para viver. Quanto mais se estuda a vida na terra tanto mais claro fica que esse esforço consiste na contribuição da parte da Ciência para uma atitude ética ao lidar com a vida na terra. O correto viver na  natureza e conviver com ela faz perceber o quanto é complexa e bela. É uma fonte inesgotável e mágica, é o nosso lar que nos sustenta física e espiritualmente. Mesmo que muitos lidem com as questões ambientais sob a ótica do darwinismo e o secularismo que normalmente o acompanha, “deveria ser  um objetivo comum a nós dois, apesar das nossas diferenças metafísicas”. (Wilson, 2008,  p. 15).

E para reforçar o convite à reflexão sobre a natureza endereçada ao pastor, Wilson  registra o exemplo  de Darwin. Ele se preparara para exercer o ministério religioso absolvendo um curso de teologia. Interpretava a natureza que o cercava pela ótica da doutrina expressas na Sagrada Escritura, até que empreendeu a sua viagem a bordo HMS Beagle. Ao observar a floresta tropical do Brasil encostando no Atlântico, percebeu nela a manifestação da mão de Deus e anotou no seu caderno de registros: “Não é possível dar uma ideia adequada dos sentimentos superiores de deslumbramento, admiração e devoção que inundam e elevam a mente”. ( em A Criação, p. 15). Mesmo depois de se afastar dos ensinamentos religiosos, Darwin não perdeu a sua profunda admiração pela natureza e os prodigiosos acontecimentos e espetáculos que oferece. E a certa altura na formulação da teoria da evolução deixou a observação, repetida por Wilson:

Há grandeza neste modo de ver a vida, com seus diversos poderes, tendo sido originalmente  instilada de um sopro em algumas poucas formas ou em uma só; e que, enquanto este planeta ia girando segundo a lei fixa da gravidade, a partir de um início tão simples, infinitas formas, tão belas e maravilhosas, evoluíam e continuam evoluindo. (citado por Wilson, 2008,  p. 16)

Como se pode perceber a admiração, o respeito e a veneração pela natureza do jovem Darwin crente  e apegado às suas convicções religiosas e depois de enveredar pela linha da liberdade do pensamento, continuam inalteradas, para como cientista renomado, formular a teoria da evolução. Foi a ponte que lhe permitiu o trânsito entre as duas cosmovisões que separaram  a do pesquisador principiante e do formulador da hipótese mais revolucionária sobre o acontecer da natureza. O diálogo entre esses dois mundos que, à primeira vista, parecem irreconciliáveis, não se misturando como o óleo e a água, no fundo, no fundo, não somente é possível como é fundamental para interpretar o ambiente natural e propor atitudes e ações  para salvá-lo. Respeito, admiração, veneração, a consciência de que é preciso salvar “a Criação”, resumem-se numa postura ética perante a natureza. A lógica dessa atitude fundamenta-se na convicção de que ela é um bem comum e da sua preservação depende não só o bem-estar dos indivíduos como das coletividades e o próprio futuro da  espécie humana. Argumentos filosóficos, morais e teológicos de um lado e argumentos científicos do outro, compõem o chão fértil que oferece as condições para  que um esforço eficiente para salvar o planeta possa medrar. Nem o  esforço científico por si, nem o empenho filosófico e teológico, muito menos o discurso ideológico, romântico e outros menos confessáveis, são capazes de apontar sozinhos um caminho viável para enfrentar esse gigantesco desafio. O plano ético-moral é a ponte entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito que oferece a  chance real para salvar “a Criação”. 

Mas reservemos essa problemática para o capítulo das  reflexões conclusivas sobre os cientistas contemplados até aqui, e acompanhemos as pinceladas com que Edward Wilson desenha o seu retrato da natureza, o seu “Weldbild” como diria Erich Wassmann. Como ponto de partida lembra ao pastor que interpreta a Bíblia ao pé da letra, o fato de que, a certa altura da sua história, a humanidade se desviou do rumo, ou quem sabe, até perdeu o rumo. O Gênesis na sua intepretação literal ou  metafórica ensina que que o homem cometeu um grande erro e foi expulso do paraíso. De então até hoje os homens e a humanidade como um todo, carrega a maldição do “pecado original”, do qual é preciso livrar-se, melhor, redimir-se. A sina de vagar pelo mundo “acima dos animais e abaixo dos anjos”  (a Criação, p. 17) persegue-a como uma sombra que lhe tira a tranquilidade, enquanto se prepara para entrar no reino da luz prometido pela Redenção. Da leitura do Gênesis conclui-se  que o Éden corresponde ao mundo e a natureza original, antes de o homem entrar em cena. Neste ponto o texto sagrado e a concepção do  mundo do livre pensador Wilson, em última análise, coincidem. Para ele, o cientista, esse Éden, esse mundo primordial de fato existiu e foi o berço da humanidade. O resto dessa história toma rumos diferentes para o interpretador literal da Bíblia e os cientistas, como Wilson faz ver ao pastor a quem dirige suas reflexões. Para ele a humanidade não começou a existir por um ato de criação, mas tem a sua origem como mais um rebento, o mais apurado e o mais intrigante, da evolução natural. Tão pouco os primeiros homens foram expulsos do Paraíso. Lá por volta de 10000 a 15000 anos passados, o homem começou a abandonar a natureza original e intacta, criando condições e meios para se impor a ela. Até então as tecnologias desenvolvidas durante o paleolítico pouco ou nenhum estrago fizeram e poucas ou nenhuma marca importante denunciava a presença do homem. Centenas de milhares de anos haviam-se  passado desde que há notícias de seres humanos neste planeta. Começou então o que se pode chamar “a humanização da terra”. Se este termo sugere de um lado o fato de o homem tornar o seu entorno cada vez habitável, mais seguro e mais previsível, do outro o preço que os ecossistemas iriam pagar com o avanço e a sofisticação das civilizações, foi incalculável. Wilson definiu essa situação. 

Eis aqui uma quimera, uma espécie nova e muito estranha que entrou a passos incertos no nosso universo, com uma mistura de emoções da Idade da Pedra, uma auto imagem medieval e uma tecnologia que se ombreia com a dos deuses. Tal combinação torna essa espécie indiferente às forças que são mais importantes para sua sobrevivência no longo prazo.(Wilson, 2008, p. 18)

Tanto a versão bíblica de uma paraíso primordial, quanto a concepção da natureza não perturbada pelo homem, podem ser perfeitamente compatíveis, pois concordam no essencial: uma natureza primigênia, em perfeito equilíbrio e inserido nela o homem como os demais seres vivos, no Paraíso como ensina o Gênesis, ou em perfeita harmonia com o seu ambiente, na visão do cientista. Depois Wilson fustiga as atitudes de descaso dos diferentes segmentos da sociedade que  têm responsabilidade pelo que acontece com a natureza. Muitas  pessoas inteligentes não se dão conta de que os benefícios de uma natureza preservada  retribui por ano o equivalente  ao valor do produto bruto do mundo somado. E desabafa: 
E o mais perturbador que os nossos líderes inclusive os das grandes religiões, pouco tem feito para proteger o mudo vivo, em meio ao acentuado declínio. Eles ignoraram o comando de Deus de Abraão, dado no quarto dia do nascimento do mundo: “Fervilhem as águas  um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, sob o firmamento do céu”. (...) e pergunta:

O que devemos fazer? No mínimo, elaborar uma história verdadeira da situação, com a qual pessoas de diferentes religiões possam em princípio concordar. Se isso puder ser feito, servirá pelo menos de prólogo para um futuro mais garantido. (Wilson, 2008,  p. 18-19)

A Natureza como Síntese - 55

Edward Wilson (1929 ....)

Um convite para o diálogo entre Ciência e Religião.  De acordo com a informação na orelha no seu libro “A Criação – como salvar a vida na terra”, Edward Wilson nasceu em 1929  em Birmingham, no Alabama. Professor da universidade de Harvard há  quase cinco décadas e autor de mais de 20 livros é considerado um dos mais proeminentes biólogos do mundo. Entre as muitas honrarias destacam-se dois prêmios Pulitzer. a Medalha Nacional de Ciências dos Estados Unidos e o prêmio Crafoord, concedido pela Real Academia de Ciências da Suécia para áreas não abrangidas pelo Prêmio Nobel. 

Para começar a análise da proposta de Wilson sobre a sua compreensão da natureza é interessante observar o gênero literário que escolheu. “A Criação” foi escrito na forma de uma carta a um pastor evangélico que interpreta a Sagrada Escritura no sentido literal o texto do Gênesis. Ele próprio confessa que fora batizado e como criança, foi cristão praticante, para depois distanciar-se da religião e  aderir ao humanismo secular para o qual “não há garantia de vida após a morte, e céu e inferno são o que nós criamos para nós mesmos. Não há nenhum outro lar para nós”. (A Criação, p. 12). Continua sua fala com o pastor, destinatário do seu livro, afirmando a sua convicção de que a natureza, inclusive o homem, são o resultado da evolução, em contraposição à crença num Criador como entendido na interpretação literal dos textos sagrados. Neste nível, portanto, ele e o pastor encontram-se em campos opostos. E, contudo, essa aparente incompatibilidade entre o seu universo e o do pastor,  oferece uma dimensão na qual os dois se encontram num território comum que oferece todas as condições para um diálogo construtivo. Em comum carregam no seu interior o código de ética que orienta suas atitudes e decisões, fundamentada na razão, na lei, na honra e no senso de decência. Wilson caracteriza depois as diferenças que o separam do seu interlocutor.

Para o senhor, a glória de uma divindade invisível; para mim a glória do universo por fim revelado. Para o senhor, a crença em um Deus que se fez carne para salvar a humanidade; para mim a crença no fogo que Prometeu arrebatou para libertar os homens; O senhor encontrou a verdade final; eu estou ainda buscando a minha. Eu posso estar errado, ou o senhor pode estar errado. Talvez nós dois estejamos parcialmente certos. 

Será que essa diferença em nossa visão do mundo nos separa em todas as coisas? Não creio. Tanto o senhor como eu, e cada ser humano, lutamos pelos mesmos imperativos: segurança, liberdade de escolha, dignidade pessoal e uma causa em que acreditar, uma causa maior do que nós mesmos. (Wilson, 2008,  p. 12)

Wilson convida depois o pastor para encontrar uma forma em comum de lidar com o mundo “do lado de cá da metafísica”, isto é, com o mundo real comum aos dois e resolver para ele o grande problema que objeto de suas profundas preocupações. Sugere que se deixem de lado as diferenças para tentar salvar a Criação. Argumenta  que a Natureza é um valor universal que transcende as diferenças e as divergências na sua compreensão. Acima de ideologias e dogmas ela interessa a toda a humanidade sem excluir ninguém. E o cientista que passou a vida tentando entender a vida nos ecossistemas, sem entretanto, entende-los na sua dimensão total, faz um apelo ao pastor. “Pastor, precisamos de sua ajuda. A Criação – a Natureza viva – está enfrentando uma grave crise”. (A Criação, p. 13). Para justificar o seu pedido de socorro alerta em poucas palavras para as perspectivas reais de uma deterioração progressiva e rápida da vida na terra, conforme mostram as pesquisas que se ocupam com as populações de animais, desde as bactérias, até as plantas superiores, os mamíferos e os respectivos ecossistemas. A continuar nesse ritmo o custo para a humanidade será catastrófico em todos os sentidos. Cada espécie por mais insignificante que possa parecer e minúscula que seja, é uma obra prima da Natureza é importante para manter o equilíbrio e a integridade dos ecossistemas na Terra – portanto da Criação. E conclui:

O senhor pode estar se perguntando: “Porque eu?” É porque a Religião e a Ciência são as duas forças mais poderosas do mundo, inclusive e especialmente nos Estados Unidos. E, se pudessem se unir no terreno comum da conservação biológica, o problema logo seria resolvido. Se existe alguma preceito moral compartilhado  pelos crentes de todas religiões, é que devemos, a nós mesmos e às futuras gerações, um ambiente belo, rico e saudável. (Wilson, 2008,  p. 13-14).

Porém essa colaboração entre a Ciência e a Religião não tem condições de acontecer, ou mesmo não interessar, quando as crenças se fundamentam na convicção de que a única coisa que importa para o ser humano é preparar-se  para a vida depois da morte, que a vida é um fenômeno transitório de preparação para a eternidade. Pior quando milhões de pessoas  creem que o fim do mundo, o segundo advento de  Cristo acontecerá  ainda na presente geração. Para eles não importa a sorte das milhões de formas de vida. “Não são evangelhos da esperança são evangelhos de crueldade e desespero. Não nasceram do coração do cristianismo. Pastor, diga-me se estou errado?” (Wilson, 2008,  p. 15).  

A Natureza como Síntese - 54

Observações e Conclusões sobre Francis Collins e sua obra.  Depois de percorrido e analisado o magnífico livro “A Linguagem de Deus” e identificado fundamentos científicos que subsidiaram a lógica na concepção da síntese da natureza proposta pelo Dr. Collins, uma série de questões merecem ser destacadas. Uma delas ele próprio descreveu e respondeu no primeiro capítulo da sua obra, ao recordar a apresentação oficial do mapa do genoma humano pelo Presidente Clinton no salão leste da Casa Branca. Tony Blaier, primeiro ministro do Reino Unido acompanhou via satélite a solenidade. As principais redes de comunicação do mundo estavam atentas. Ao lado do Presidente, Collins acompanhou o anúncio oficial do mapa genético humano. Ouviu o presidente Clinton começar o discurso com as palavras: “trata-se, sem dúvida, do mapa mais importante e mais extraordinário já produzido pela humanidade. (...) Hoje estamos aprendendo a linguagem com a qual Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados pela complexidade pela beleza pela maravilha da dádiva mais divina e mais sagrada de Deus”. (Collins, 2007,  p. 10). Muitos dentre o público que ouviam o pronunciamento de Clinton, devem-se ter perguntado: o que está acontecendo? estou ouvindo bem? O presidente da nação oficialmente mais laica do mundo atual, no momento que apresentava oficialmente a esse mesmo mundo um dos feitos mais espetaculares, mais significativos e mais  úteis para as gerações futuras principalmente, não se constrangeu  em “saltar da perspectiva científica para a espiritual”. Collins esclarece:

Será que eu, um cientista rigorosamente treinado, fiquei desconcertado com uma referência tão espalhafatosa, feita pelo presidente dos Estados Unidos num momento coo aquele? Fiquei tentado a mostrar-me irritado ou a olhar envergonhado para o chão? Não, nem um pouco. Na verdade, eu trabalhara coo redator do discurso do presidente naqueles dias de frenesi que precederam o evento, e fui enfático em meu apoio à inclusão do parágrafo. Quando chegou o momento em que precisei acrescentar  algumas palavras de minha autoria, fiz coro cm esse sentimento: “É um dia feliz para o mundo. Para mim não há pretensão nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo ao perceber que apanhamos o nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus.

O que passava lá? Porque um presidente  e um cientista, no comando do anúncio de um maco da Biologia e da Medicina se sentiram impelidos de  a evocar a conexão com Deus? Não existe um antagonismo entre as visões do mundo científica e espiritual. Ambas não deveriam, ao menos, evitar aparecer lado a lado no Salão Leste? Quais os motivos para evocar Deus nesses dois discursos? Poesia? Hipocrisia? Uma tentativa cínica de bajular as pessoas religiosas ou a desarmar as que talvez criticassem o estudo do genoma humano como se este reduzisse a humanidade a um maquinário? Não. Não para mim. Muito pelo contrário. Par a mim a experiência de mapear a sequência do genoma humano e descobrir o mais notável  de todos os textos foi, ao mesmo tempo, uma realização científica excepcionalmente bela e um momento de veneração. (Collins, 2007,  p. 11).

Não há dúvida de que a cerimônia da apresentação do mapa do código genético, nas circunstâncias e nos molde em que foi feito, deve ter causado estranheza a não poucos que se achavam presentes. Começa por aí que o Salão Leste da Casa Branca é palco reservado para solenidades de significado incomum. Foi neste cenário que o Presidente da nação protótipo do laicismo e um cientista diretor do projeto mais ambicioso do começo do terceiro milênio, iriam anunciar ao mundo, o mapa genético humano desenhado até os últimos detalhes, fizeram questão de incluir em seus discursos a referência  a Deus em tom de profissão de fé. As linhas e, principalmente, as entrelinhas das declarações dos dois protagonistas da solenidade convidam para  algumas reflexões. Como apontamos mais acima, lá discursava o presidente da nação mais poderosa do planeta e, ao mesmo tempo, regida por uma constituição que baniu a religião da vida pública. Tanto assim que não  permite cruzes ou outros símbolos de qualquer religião em locais públicos. Sem o menor constrangimento, o presidente Clinton declarou a uma certa altura  do seu discurso: “Hoje, estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados pela complexidade, pela beleza e pela maravilha da dádiva mais divina e mais sagrada de Deus”. (A linguagem de Deus). E Francis Collins, por sua vez, fez eco às palavras de  Clinton: “É um dia feliz para o mundo. Para mim não há pretensão nenhuma, e chego mesmo a ficar pasmo ao perceber que apanhamos o primeiro traçado  de nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus”. (A Linguagem de Deus, p. 11). E beirando a perplexidade  perguntou-se: “O que se passava lá? Porque um presidente e um cientista, no comando do anúncio de um marco da Biologia e da Medicina, se sentiram impelidos a evocar uma conexão com Deus?” (A Linguagem de Deus, p. 12). Sem dúvida foi uma situação inusitada, e porque não, inesperada em tais circunstâncias. De um lado, o representante máximo do laicismo praticado na política e vida pública, falando em Deus e, do outro, um representante da “grande ciência”, oficialmente reticente a qualquer referência que não cabe no seu catecismo metodológico e sinaliza para outras aproximações possíveis quando se trata de responder aos desafios dos questionamentos com que a  natureza provoca aqueles que se propõem a encontrar respostas convincentes. 

Mas deixemos de lado o viés oficial da cerimônia e reflitamos um pouco o que significou a presença do Dr. Collins no evento e, de modo especial, a sua postura. Nele estava  aí representada a nata, a elite das elites da intelectualidade científica do momento. Pode-se afirmar a maior autoridade em genética humana e sua aplicação na medicina. Com a apresentação ao mundo dos resultados do projeto “Genoma Humano”, por ele coordenado, brindou a humanidade com um desses feitos que contém um potencial de perspectivas difícil de dimensionar, uma verdadeira revolução que ultrapassa as quatro paredes dos laboratórios de pesquisa, para repercutir até no diário das pessoas comuns. Trata-se de munição mais que suficiente para o cientista inflar o peito e olhar o resto do mundo do alto do seu pedestal. E qual foi a reação do Dr. Collins?. Ele mesmo deu a resposta em seu discurso: “Para mim, a experiência de mapear o genoma humano e descobrir o mais notável dos textos foi, ao mesmo tempo, uma realização científica excepcionalmente bela e um momento de veneração”. (A Linguagem de Deus, p. 11). Demonstrou com essas palavras de emoção,  humildade, respeito e “veneração”, diante do significado que ele e sua equipe desvendaram durante uma década de pesquisa, vasculhando os arcanos da vida e interpretando o código, o alfabeto, a “Linguagem” com que Deus se comunica com os homens. Aliás, é curioso que exatamente os protagonistas das grandes revoluções  que marcaram época na história da ciência, foram homens que acharam perfeitamente natural que a Ciência não ameaça a Religião. Mais. Não esconderam as suas crenças temendo talvez passarem por estranhos no ninho dos cientistas que tem fé mas fazem dela um assunto estritamente de foro íntimo. A este seleto grupo pertencem Erich Wassmann, Teilhard de Chardin e Balduino Rambo, já devidamente estudados mais acima nessas reflexões. Note-se, entretanto, que os três foram religiosos jesuítas e como tais comprometidos diante mão com a fé em Deus. Nem tão pouco entram  nessa lista sábios que se ocuparam com a natureza sob o ponto de vista  da fé, propondo uma cosmovisão unitária para o universo, a natureza e nela a humanidade como  S. Agostinho, Nicolau de Cusa, Nicolau Copérnico, Galileu Galilei,  Johannes 

A Natureza como Síntese - 53

Collins detalha em seguida o longo e penoso caminho que percorreu para formar uma imagem consistente do Deus em que crê séria e honestamente. Dedicou um bom tempo à auto análise e à oração. Os resultados foram quase nulos e até frustrantes por não lograrem transpor o fosso que se alargava cada vez mais entre a imperfeição da natureza e a perfeição de Deus. Foi então buscar e encontrar a repostas nos evangelhos, com a compreensão do que Cristo significa e representa para entender que  tipo de relação e que lugar Deus ocupa na natureza. Mas, mais uma vez esta não é uma questão a ser aprofundada no contexto em que nos movemos. Sobre essa busca do autor, leiam-se as páginas 217 a 230,  do “Linguagem de Deus”. Fechando as suas reflexões sobre a parte que cabe às Ciências Naturais e às Ciências do Espírito em possibilitar uma síntese compreensiva entre os dados oferecidos pelas duas vias de aproximação, observou.

Se você chegou até este ponto comigo, espero que concorde: as duas visões de mundo científica e espiritual têm, ambas, muito a oferecer. As duas proporcionam formas distintas mas complementares, de responder à maior de todas as questões, e podem coexistir muito bem na mente de uma pessoa intelectualmente curiosa que vive no século XXI. (Collins, 2007,  p. 231).

Collins complementa e explicita com argumentos que embasam a sua lógica a afirmação que acabamos de registrar. A Ciência vem a ser a única via legítima para investigar o mundo natural, a única via confiável sobre o que há de verdade na natureza. Apesar dos fracassos a que levam muitos experimentos e dos becos sem saída que fazem parte das caminhadas científicas, a ciência pela própria natureza dos seus métodos, é capaz de se autocorrigir e reorientar as suas perspectivas. Apesar dessa importante tarefa que cabe à Ciência no desvendar das incógnitas do mundo em que vivemos, seus métodos se mostram incapazes de responder a todos os questionamentos importantes. Até o próprio Einstein defendeu este ponto de vista quando escreve, escolhendo os  termos: “A Ciência sem religião é manca, a religião sem ciência é cega”. (em A Linguagem de Deus, p. 231). Ilustrativa é também  a observação de Kant: “Duas coisa me deixam estupefato, o firmamento estrelado lá fora e a lei moral aqui dentro” E entre as questões importantes que estão fora do alcance da ciência e de seus métodos e equipamentos, destacam-se o sentido da existência humana, a realidade de Deus, a possibilidade de uma vida após a morte, a Lei Moral além de outras. A afirmação que um ateu pode fazer  que as questões espirituais que não tem resposta pela via científica, são por isso mesmo irrelevantes, não fecha com a maioria das experiências humanas. John Polkinghorne, citado por Collins, ilustra com uma peça de música o que se acaba de descrever. Partindo do ponto de vista da ciência uma sinfonia por ex., não passa de vibrações no ar fazendo vibrar o tímpano estimulando circuitos de neurônios no cérebro, mas como acontece que de uma  sequência banal de movimento que obedece a uma cadência ter o poder de falar o nosso coração com uma beleza eterna? Toda a série de experiências subjetivas, de perceber uma mancha de rosa até ser cativado por uma execução da Missa em Si Menor e no encontro místico  com a realidade indescritível do Único, todas essas experiências verdadeiramente humanas acham-se no centro de osso encontro com a realidade, e não devem ser  e não devem ser descartadas como a frivolidade de um fenômeno secundário na superfície de um universo cuja real  natureza é impessoal e sem vida.( Polkinghorn, citado por Collins, 2007,  p. 232)

O Dr. Collins  conclui as suas reflexões sobre a natureza “como síntese” analisando três aspetos de fundamental importância para chegar a uma compreensão aceitável sobre a  tese de que o genoma, e por extensão qualquer outra manifestação da natureza, são formas, são “Linguagens” por meio das quais Deus se comunica com o homem. Por meio de três advertências chama a atenção aos que pretendem  formar uma compreensão completa do universo, da natureza e do homem, para que não se percam em polêmicas estéreis sobre quem  está de posse da verdade: as Ciências Naturais ou as Ciências do Espírito. Além de inútil e estéril  leva ambos os arraiais a um beco sem saída. 

Em primeiro lugar, para achar uma saída, tanto o cientista quanto  o filósofo e o teólogo precisam convencer-se de que não bastam conclusões apressadas e discursos inflamados, não poucas vezes em tom fundamentalista. É preciso encarar a busca da verdade com  seriedade,  isenção de espírito,  respeito pelas conclusões dos outros campos do saber. Para Collins, a Ciência com seus métodos e instrumentos de pesquisa, é o único caminho legítimo para investigar a natureza. Conclusões sobre a estrutura do átomo, a evolução e o funcionamento do cosmos, assim como evolução dos seres vivos e seu funcionamento e a importância do genoma humano, só são confiáveis quando identificados e testados com o rigor possível dos métodos e instrumentos com que a ciência trabalha. A própria natureza da investigação científica  pode sugerir conclusões apressadas que se revelam equivocadas com o avanço das descobertas. Essas falácias, entretanto, encontram no próprio método científico o remédio capaz de salvar o cerne do seu valor. Pela sua própria natureza conta com a capacidade de autocorreção no momento em que se percebe que o caminho da investigação seguido foi equivocado ou as conclusões mostram-se inconsistentes. “Nenhuma grande falácia pode persistir por muito tempo diante do aumento progressivo de conhecimentos”. (A linguagem de Deus, p. 231). Mas a Ciência com todo o seu potencial consegue iluminar apenas uma face da totalidade da verdade. Somente os holofotes vindos de uma outra perspectiva tem condições de iluminar a outra  expressa nas perguntas em torno de questões existenciais das quais já nos ocupamos mais de uma vez na presente análise, como: A existência ou não existência de Deus, e se existe qual o lugar que ocupa na natureza e na vida das pessoas; como o homem entrou na história da natureza, o porque da sua existência, o seu destino final e outras mais.

A ciência não é a única forma de aprender. A visão do mundo espiritual fornece outra maneira de encontrar  verdade. Os cientistas que negam isso deveriam ser orientados de levar em conta os limites de seus instrumentos, como representado de forma muito simpática numa parábola contada  pelo astrônomo Arthur Eddinger. Ele descreveu um homem que começou a estudar  a vida no fundo do mar usando uma rede com tamanho de pouco mais de sete centímetros e meio. Após ter apanhado muitas criaturas selvagens e incríveis das profundezas, ele concluiu que não existiam peixes no fundo do mar com menos de sete centímetros de comprimento! Se estamos usando a rede científica para apanhar nossa visão particular da verdade, não devemos nos surpreender se ela não apanha as evidências do espírito.

Que obstáculos se encontram  no caminho de um envolvimento mais amplo da natureza complementar das visões do mundo científica e a espiritual? Essa não é uma pergunta teórica para considerações filosóficas estéreis. É um desafio para cada um de nós. (Collins, 2007,  p.232-233)

Em segundo lugar, Collins faz uma advertência aos que acreditam em Deus. Bem à sua maneira peculiar de lidar com o tema, chama a atenção às ciladas que devem evitar. Começa advertindo os leitores do seu livro e que procuram nele a solução para superar a impressão de que a ciência é um perigo para a fé e o caminho aberto para uma visão ateísta do mundo, que isso não passa de uma falsa avaliação da ciência. Pelo contrário. A  ciência e a fé  colaborando dispõem de um poderoso potencial para entender a natureza como uma grande síntese harmônica.

Se Deus é o criador de todo o universo, se Deus tem um plano específico para a entrada  da humanidade em cena e se Ele deseja uma afinidade com os humanos, nos quais implantou a Lei Moral para que se aproximassem Dele, Ele não pode ser ameaçado  pela nossa mente minúscula e seus esforços por compreender a magnitude de sua Criação. (Collins, 2007,  p. 233).

A essa reflexão acrescenta a conclusão de que a ciência pode ser  interpretada como como uma forma de adoração e, consequentemente, o fazer ciência uma oração.  Por mais estranho que isso possa soar sugere uma atitude e uma compreensão mística totalmente compatível tanto com o fazer ciência, quanto com o interpretar os seus resultados. Nessa compreensão da natureza, Collins mostra uma proximidade flagrante com a visão do mundo das duas autoridades já analisadas mais acima: o biólogo, especialistas em formigas e térmites, Erich Wassmann e o especialista em botânica  sistemática, Balduino Rambo. Para este último a natureza é o livro aberto da Revelação Natural, para quem estiver em condições de lê-lo corretamente. A natureza é a “linguagem de Deus” e contemplar e admirar em silêncio suas maravilhas,  uma oração que supera qualquer modalidade de prece formal. Collins, entretanto, adverte aos que creem em Deus, sobre o risco de fundamentarem suas convicções  em argumentos científicos ultrapassados, fazendo com que muitos cientistas, mesmo crentes em Deus, se sintam constrangidos em professar suas convicções  íntimas em público. A isso soma-se  o fato de não poucos líderes religiosos professarem, interpretarem e ensinarem os artigos da fé, ignorando ou até hostilizando as conquistas da ciência. Correm assim o risco de expor ao ridículo suas pregações e alargarem ainda mais o fosso existente entre diversos credos e a ciência. Para concluir essa reflexão, relembra a advertência de Copérnico depois de comprovar que a terra girava em torno do sol. “Conhecer as obra poderosas de Deus; compreender Sua sabedoria e majestade e poder; apreciar, em certo grau, o maravilhoso trabalho de Suas Leis, sem dúvida, tudo isso deve ser uma maneira agradável e aceitável de louvar o Altíssimo, a quem  a ignorância não pode ser mais grata que o conhecimento”. (citado em A Linguagem de Deus, p. 24)

Em terceiro lugar, Collins deixa uma advertência aos cientistas. “ Se você é um daqueles que acreditam nos métodos da ciência, mas permanecem cépticos em relação á fé,  este seria um bom momento para se perguntar que obstáculos estão em seu caminho em busca de uma harmonia entre essas duas visões de mundo”. (A linguagem de Deus, p. 234). Depois faz referência a um dos argumentos prediletos muito comum entre cientistas de que a crença em Deus implica num retrocesso para a “irracionalidade”, descompromisso com a “lógica” e  suicídio intelectual. A esses argumentos responde que, lendo com atenção e com espírito desarmado e sem preconceito,  “A Linguagem de Deus”, quem sabe chegue à conclusão que “de todas as visões do mudo possíveis, a ateísta é a menos reacional”. (A Linguagem de Deus, p. 234). Aos que argumentam com o comportamento hipócrita de muitos crentes, aconselha que não se fixem nos “recipientes enferrujados” que são os seres humanos que professam religiões organizadas, mas se concentrem no essencial que são “as verdades espirituais e atemporais que a fé apresenta”.

No que se refere a questões específicas relacionadas com o dia a dia das pessoas, como, por ex., o sofrimento, a injustiça, a violência e outras mais, são a consequência natural do livre arbítrio com que o criador dotou os homens. Acrescenta a pergunta de que tudo isso pode servir de um poderoso estímulo para o aperfeiçoamento do humano no homem, da “Menschlichkeit”, como a definiu o  Pe. Balduino Rambo. Uma outra dificuldade que acomete não poucos cientistas reside na situação criada quando os instrumentos da ciência se mostram impotentes para responder a questões de fundo, relacionadas com o universo, a natureza e o próprio homem. Não se pode negar que para um pesquisador que apostou todas as fichas nos métodos e instrumentos científicos, se veja obrigado a entregar os pontos e apelar para uma solução “extra científica”, numa outra área de conhecimento, seja frustrante e para não poucos uma humilhação difícil de assimilar, um “soco no orgulho intelectual”. Mais um problema que pode assustar os cientistas é aquele que o próprio Collins afirma ter influído não pouco na sua experiência pessoal e passageira que ele chama de “cegueira voluntária”. Com autoridade de quem experimentou na própria pele todas essas vivências de incerteza, de frustração de angústia existencial, de “socos no orgulho intelectual”, conclui: “E ainda posso testemunhar que chegar ao conhecimento do amor e da graça de Deus fortalece em vez de aprisionar: Deus está no ramo da libertação e não da carceragem”. (A Linguagem de Deus, p. 235). Aos que se desculpam que simplesmente não tem tempo para gastar com preocupações de natureza espiritual e adiam essa tarefa para um futuro distante quando as circunstâncias forem favoráveis para tanto, Collins adverte:

A vida é curta. O índice de mortalidade será diferente para cada pessoa num futuro previsível. Abrir-se para a vida do espírito pode ser uma experiência enriquecedora. Não fique protelando a reflexão sobre essas questões de significado eterno até que uma crise pessoal ou a idade avançada o obrigue a reconhecer o empobrecimento espiritual. (...) Para aqueles que buscam, existem respostas a essas questões. Há alegria e paz a serem descobertas na harmonia da criação divina. (...) Em minhas orações pelo nosso mundo em sofrimento, peço que possamos,   juntos, usando o amor, a compreensão e a compaixão, buscar e encontrar esse tipo de sabedoria.

É hora de pedir uma trégua na guerra cada vez mais acirrada entre ciência e espírito. Essa guerra nunca foi de fato necessária. Como em tantas contendas mundanas, essa foi iniciada e intensificada por extremistas de ambos os lados, soando alertas que previam ruínas próximas a menos que o outro lado fosse eliminado. A ciência não é ameaçada por Deus; ela é aprimorada. Certamente Deus não é ameaçado pela ciência; Ele a possibilitou por completo. Por isso, busquemos, juntos,  recuperar os fundamentos sólidos de uma síntese satisfatória entre a intelectualidade e espiritualidade de todas as grandes verdades. A terra natal da razão e da adoração  nunca correu risco de se esmigalhar. Nunca vai ocorrer. Ela acena para que todos os que buscam sinceramente a verdade venham e fixem residência. Atenda a esse chamado. Abandone a posição de luta. Nossas esperanças, alegrias e o futuro do mundo dependem disso. (Collins, 2007,  p. 236-237)