O desafio para salvar a natureza. Para Wilson o grande desafio ético do século XXI consiste em salvar a natureza, ou o que sobrou dela, para que as pessoas encontrem um lugar decente para viver. Quanto mais se estuda a vida na terra tanto mais claro fica que esse esforço consiste na contribuição da parte da Ciência para uma atitude ética ao lidar com a vida na terra. O correto viver na natureza e conviver com ela faz perceber o quanto é complexa e bela. É uma fonte inesgotável e mágica, é o nosso lar que nos sustenta física e espiritualmente. Mesmo que muitos lidem com as questões ambientais sob a ótica do darwinismo e o secularismo que normalmente o acompanha, “deveria ser um objetivo comum a nós dois, apesar das nossas diferenças metafísicas”. (Wilson, 2008, p. 15).
E para reforçar o convite à reflexão sobre a natureza endereçada ao pastor, Wilson registra o exemplo de Darwin. Ele se preparara para exercer o ministério religioso absolvendo um curso de teologia. Interpretava a natureza que o cercava pela ótica da doutrina expressas na Sagrada Escritura, até que empreendeu a sua viagem a bordo HMS Beagle. Ao observar a floresta tropical do Brasil encostando no Atlântico, percebeu nela a manifestação da mão de Deus e anotou no seu caderno de registros: “Não é possível dar uma ideia adequada dos sentimentos superiores de deslumbramento, admiração e devoção que inundam e elevam a mente”. ( em A Criação, p. 15). Mesmo depois de se afastar dos ensinamentos religiosos, Darwin não perdeu a sua profunda admiração pela natureza e os prodigiosos acontecimentos e espetáculos que oferece. E a certa altura na formulação da teoria da evolução deixou a observação, repetida por Wilson:
Há grandeza neste modo de ver a vida, com seus diversos poderes, tendo sido originalmente instilada de um sopro em algumas poucas formas ou em uma só; e que, enquanto este planeta ia girando segundo a lei fixa da gravidade, a partir de um início tão simples, infinitas formas, tão belas e maravilhosas, evoluíam e continuam evoluindo. (citado por Wilson, 2008, p. 16)
Como se pode perceber a admiração, o respeito e a veneração pela natureza do jovem Darwin crente e apegado às suas convicções religiosas e depois de enveredar pela linha da liberdade do pensamento, continuam inalteradas, para como cientista renomado, formular a teoria da evolução. Foi a ponte que lhe permitiu o trânsito entre as duas cosmovisões que separaram a do pesquisador principiante e do formulador da hipótese mais revolucionária sobre o acontecer da natureza. O diálogo entre esses dois mundos que, à primeira vista, parecem irreconciliáveis, não se misturando como o óleo e a água, no fundo, no fundo, não somente é possível como é fundamental para interpretar o ambiente natural e propor atitudes e ações para salvá-lo. Respeito, admiração, veneração, a consciência de que é preciso salvar “a Criação”, resumem-se numa postura ética perante a natureza. A lógica dessa atitude fundamenta-se na convicção de que ela é um bem comum e da sua preservação depende não só o bem-estar dos indivíduos como das coletividades e o próprio futuro da espécie humana. Argumentos filosóficos, morais e teológicos de um lado e argumentos científicos do outro, compõem o chão fértil que oferece as condições para que um esforço eficiente para salvar o planeta possa medrar. Nem o esforço científico por si, nem o empenho filosófico e teológico, muito menos o discurso ideológico, romântico e outros menos confessáveis, são capazes de apontar sozinhos um caminho viável para enfrentar esse gigantesco desafio. O plano ético-moral é a ponte entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito que oferece a chance real para salvar “a Criação”.
Mas reservemos essa problemática para o capítulo das reflexões conclusivas sobre os cientistas contemplados até aqui, e acompanhemos as pinceladas com que Edward Wilson desenha o seu retrato da natureza, o seu “Weldbild” como diria Erich Wassmann. Como ponto de partida lembra ao pastor que interpreta a Bíblia ao pé da letra, o fato de que, a certa altura da sua história, a humanidade se desviou do rumo, ou quem sabe, até perdeu o rumo. O Gênesis na sua intepretação literal ou metafórica ensina que que o homem cometeu um grande erro e foi expulso do paraíso. De então até hoje os homens e a humanidade como um todo, carrega a maldição do “pecado original”, do qual é preciso livrar-se, melhor, redimir-se. A sina de vagar pelo mundo “acima dos animais e abaixo dos anjos” (a Criação, p. 17) persegue-a como uma sombra que lhe tira a tranquilidade, enquanto se prepara para entrar no reino da luz prometido pela Redenção. Da leitura do Gênesis conclui-se que o Éden corresponde ao mundo e a natureza original, antes de o homem entrar em cena. Neste ponto o texto sagrado e a concepção do mundo do livre pensador Wilson, em última análise, coincidem. Para ele, o cientista, esse Éden, esse mundo primordial de fato existiu e foi o berço da humanidade. O resto dessa história toma rumos diferentes para o interpretador literal da Bíblia e os cientistas, como Wilson faz ver ao pastor a quem dirige suas reflexões. Para ele a humanidade não começou a existir por um ato de criação, mas tem a sua origem como mais um rebento, o mais apurado e o mais intrigante, da evolução natural. Tão pouco os primeiros homens foram expulsos do Paraíso. Lá por volta de 10000 a 15000 anos passados, o homem começou a abandonar a natureza original e intacta, criando condições e meios para se impor a ela. Até então as tecnologias desenvolvidas durante o paleolítico pouco ou nenhum estrago fizeram e poucas ou nenhuma marca importante denunciava a presença do homem. Centenas de milhares de anos haviam-se passado desde que há notícias de seres humanos neste planeta. Começou então o que se pode chamar “a humanização da terra”. Se este termo sugere de um lado o fato de o homem tornar o seu entorno cada vez habitável, mais seguro e mais previsível, do outro o preço que os ecossistemas iriam pagar com o avanço e a sofisticação das civilizações, foi incalculável. Wilson definiu essa situação.
Eis aqui uma quimera, uma espécie nova e muito estranha que entrou a passos incertos no nosso universo, com uma mistura de emoções da Idade da Pedra, uma auto imagem medieval e uma tecnologia que se ombreia com a dos deuses. Tal combinação torna essa espécie indiferente às forças que são mais importantes para sua sobrevivência no longo prazo.(Wilson, 2008, p. 18)
Tanto a versão bíblica de uma paraíso primordial, quanto a concepção da natureza não perturbada pelo homem, podem ser perfeitamente compatíveis, pois concordam no essencial: uma natureza primigênia, em perfeito equilíbrio e inserido nela o homem como os demais seres vivos, no Paraíso como ensina o Gênesis, ou em perfeita harmonia com o seu ambiente, na visão do cientista. Depois Wilson fustiga as atitudes de descaso dos diferentes segmentos da sociedade que têm responsabilidade pelo que acontece com a natureza. Muitas pessoas inteligentes não se dão conta de que os benefícios de uma natureza preservada retribui por ano o equivalente ao valor do produto bruto do mundo somado. E desabafa:
E o mais perturbador que os nossos líderes inclusive os das grandes religiões, pouco tem feito para proteger o mudo vivo, em meio ao acentuado declínio. Eles ignoraram o comando de Deus de Abraão, dado no quarto dia do nascimento do mundo: “Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, sob o firmamento do céu”. (...) e pergunta:
O que devemos fazer? No mínimo, elaborar uma história verdadeira da situação, com a qual pessoas de diferentes religiões possam em princípio concordar. Se isso puder ser feito, servirá pelo menos de prólogo para um futuro mais garantido. (Wilson, 2008, p. 18-19)