Para Wilson as civilizações representaram, em última análise uma “traição à natureza”. Foi a revolução neolítica que deu partida a esse processo. De um lado a revolução neolítica, a revolução dos alimentos, com diria Darci Ribeiro, acompanhada do séquito de tecnologias que trouxe como consequência, foi sem dúvida uma grande bênção. A espécie humana passou da total dependência das fontes de alimentação, das matérias primas para a habitação e vestuário presentes na natureza, para a agricultura e a domesticação de animais. Com isso foi-se libertando da “escravatura” do que a natureza oferecia espontaneamente, para assumir o controle de suas fontes de subsistência. A vida sedentária, condição sem a qual a agricultura é impensável, valendo-se de tecnologias cada vez mais eficientes com a descoberto do cobre, estanho, o bronze, da fundição de ferro e outras, deram início a substituição da paisagem natural pela humana. Pela própria natureza a substituição, e consequentemente a interferência no ambiente natural dos povos pastores, foi menos profunda e mais lenta do que dos agricultores. Em todo o caso, a interferência no ambiente natural, dos agricultores mais do que dos pastores nos ecossistemas naturais foi-se acelerando. As florestas foram desaparecendo, as várzeas dos rios drenadas e substituídos por complexos sistemas de irrigação e, modernamente, savanas, campos naturais, cerrados, etc. deram lugar a gigantescas culturas de soja, milho, cana, algodão e outros. Todas essas conquistas não deixam de ser uma “Bênção”. Mas Wilson chama a atenção de que, a revolução dos alimentos estimulou a falsa premissa de que uma minúscula seleção de plantas e animais domesticados é capaz de sustentar a expansão humana indefinidamente. A pauperização da fauna e da flora da Terra foi um preço aceitável até séculos recentes, quando a natureza parecia praticamente infinita e uma inimiga dos exploradores e pioneiros. As áreas naturais e os povos aborígines que nelas viviam deveriam ser afastados e por fim substituídos, em nome do progresso, ... (Wilson, 2008, p. 19)
Pela sua natureza a agricultura e criação de animais, entretanto, tem os seus limites em relação à modificação e ou destruição do meio ambiente. Começa por aí que ambas as atividades dedicam-se de alguma forma ao cultivo de plantas e multiplicação de animais, que na sua origem faziam parte dos ecossistemas naturais. Mesmo as paisagens em que durante milênios foi praticada a agricultura, por bem ou por mal, contam com uma cobertura vegetal permanente embora artificial. Entre os criadores de animais as paisagens naturais, estepes, savanas, campos naturais, pradarias, etc. os estragos causados pela presença do homem foram ainda menos profundos. Contudo é preciso não esquecer de que a atividade agrícola substituiu a vegetação original e com ela interferiu severamente nos ecossistemas originais, cultivando meia dúzia de cereais e tubérculos. Da mesma forma a criação de poucas espécies de animais, reunidos em rebanhos vagando pelas pastagens naturais, teve como consequência o afastamento ou o extermínio de não poucas espécies nativas. Essa situação perdurou, em grandes linhas, até a advento da revolução tecnológica a partir do século XVIII. Lentamente, acompanhando o ritmo da invenção de novas tecnologias e o aperfeiçoamento das já em uso, a paisagem natural vai perdendo rapidamente seus traços originais. A presença do homem faz valer a sua capacidade ilimitada de impor sua superioridade ao entorno geográfico. As aldeias de agricultores de poucas dezenas de habitantes transformam-se em centros urbanos em constante crescimento, até abrigarem milhares, dezenas de milhares e milhões de inquilinos. De realidades até certo ponto harmonizadas com o meio geográfico sempre mais aldeias de agricultores avançaram impiedosamente e tomaram o lugar da vegetação obrigando os animais a se refugiarem em outros ambientes. Com o correr das décadas pequenos centros urbanos surgiram, alguns deles localizados em posição estratégica, evoluíram para cidades com milhares e dezenas de milhares de habitantes. E depois de poucos séculos nos flagramos diante de centenas de cidades com mais de um milhão de pessoas e dúzias de metrópoles concentrando mais de uma dezena de milhões. Ao comentar essa realidade Edward Wilson deixou a seguinte reflexão:
Enquanto isso, a moderna revolução técnico-científica, incluindo, especial, o grande salto da tecnologia da informação baseada na computação, traiu a natureza pela segunda vez, ao promover a ideia de que os casulos da vida material das cidades e dos bairros residenciais são suficientes para a satisfação humana. Trata-se de um erro bastante grave. A natureza humana é mais profunda e mais ampla do que os inventos artificiais de qualquer cultura existente. As raízes espirituais do Homo sapiens se estendem até as profundezas do mundo natural, por meio de canais de desenvolvimento mental que ainda hoje permanecem, em geral, desconhecidos. Nosso pleno potencial não será atingido sem que compreendamos a origem e, portanto, o significado das qualidades estéticas e religiosas que nos tornam inefavelmente humanos.
Não há dúvida de que muitas pessoas parecem contentar-se em viver inteiramente dentro desses ecossistemas sintéticos. No entanto, também os animais domésticos se contentam, até nos habitats grotescamente anormais em que nós os criamos, Isso, no meu modo de pensar, é uma perversão. Não é da natureza dos seres humanos se tornar cabeças de gado em pastagens aperfeiçoadas. Cada pessoa merece ter a opção de entrar e sair com facilidade desse mundo complexo e primal que nos deu à luz. Precisamos de liberdade para vagar por terras que não sejam propriedade de ninguém, mas protegidas por todos, terras cujo horizonte imutável é o mesmo que limitava o mundo dos nossos ancestrais milenares. Apenas onde resta um pouco do Éden, pujante de seres vivos independentes de nós, é possível experimentar o deslumbramento que deu forma à psique humana no seu nascimento. (Wilson, 2008, p. 20-21)
E qual é o caminho a ser trilhado para encontrar um equilíbrio aceitável entre as benesses e as armadilhas que as tecnologias em constante evolução nos oferecem e obrigam a aceitar? A resposta encontra-se na ampliação e aprofundamento do conhecimento científico. A solução será encontrada na medida em que a ciência em que as pesquisas científicas, de modo especial a biologia, a psicologia e outras especialidades, penetrarem sempre mais fundo nas relações existenciais entre a natureza e a alma humana. O homem como os demais seres vivos é feito da mesma matéria original que compõe o reino mineral; as base fisiológica e as leis que comandam o funcionamento do seu organismo são essencialmente as mesmas que regem a vida dos micro organismos mais simples; o homem como os demais seres vivos busca as matérias primas para a sua sobrevivência na natureza que o cerca; o homem encontra no entorno físico em que vive as fontes de inspiração para alimentar sua imaginação, materializar seus sentimentos, dar forma e vida a suas crenças. Não me alongo sobre essa realidade, pois foi o tema do primeiro capítulo das presentes reflexões. Por essas e outras razões confirma-se a afirmação que serviu de mote para os presente trabalho, de que “a natureza existe e continua existindo sem o homem, mas o homem não existe nem subsiste sem a natureza”. Compreende-se assim que o mundo natural exerça tamanha atração sobre a alma do homem. Nem o fato de alguém ter nascido na total artificialidade de uma grande metrópole é capaz silenciar o apelo que vem do fundo do ser, pedindo por ar puro, pelas flores do campo, pelos pássaros cantando na liberdade silenciosa da floresta, pelas gotas de orvalho brilhando sobre as ervas do campo, pelo marulhar dos arroios de montanha e por tudo mais que sobrou da natureza devastada pelo próprio homem. Wilson observa a esse respeito.
Temos muito caminho pela frente até fazermos as pazes com este planeta, e um com o outro. Tomamos o caminho errado quando iniciamos a revolução neolítica. Desde então temos procurado nos elevar saindo da Natureza, em vez de rumo a ela. Não é tarde demais para voltar atrás, sem perder a qualidade de vida já alcançada, a fim de receber as benesses profundamente gratificantes do legado da humanidade. (Wilson, 2008, p. 21)