A Natureza como Síntese - 27

Balduino Rambo (1905-1961)

O perfil de Balduino Rambo

O centenário do Pe. Balduino Rambo (1905-1961), motivou a publicação de um número considerável de matérias, focando a vida e a obra desse ilustre jesuíta, professor, cientista, apostolo social e literato. Até hoje, quando se fala no seu nome, os que o conheceram ainda em vida ou entraram em contato com sua obra, citam-no entre os homens de ciência  mais destacados que honram o Rio Grande do Sul e o Brasil. Sua obra mais conhecida e mais consultada é “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. A primeira edição data de 1942, a segunda de 1956 e a terceira de 1999. O estímulo para conceber e escrever essa obra devem ser procurados nos sobrevoos que  realizou para o Serviço Geográfico do Exército, em começos de 1938. Durante 60 horas e 11.000 quilômetros voados, deslumbrou-se com as paisagens naturais mais variadas e mais surpreendentes e deslumbrantes que compõem o cenário natural do Estado ou, como ele diria: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Na parte do diário em que apontou os registros dessas vivências, percebe-se o quanto e quão profundamente as paisagens naturais, que deslizavam sob as asas do pequeno monomotor “Master Brasilia”, do Terceiro Regimento de Aviadores de Canoas, marcaram sua relação existencial para com a querência natal. Ao colega de estudos e amigo na Alemanha, Waldemar Moll, resumiu assim essa experiência, reservada para poucos naquela época: “Ah, o prazer de voar! Acredito que voar vire paixão da qual não há como não cair vitima”. Quinze anos mais tarde teria ocasião para realizar mais uma viagem aérea encomendada também pelo Serviço Geográfico do Exército. Nessa ocasião sobrevoou também num monomotor militar, o Brasil Central de sul ao norte, a Amazônia, descendo por Acre, Rondônia, cruzando o Mato Grosso, na época um estado, para terminar em São Paulo. Essa viagem não resultou num livro do gênero e da repercussão da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”. As observações feitas naquele sobrevoo renderam contudo um conto, seu gênero literário predileto, recheado de observações sobre paisagens, cidades, personagens, atividades econômicas, empreendimentos missionários e até lendas e histórias típicas dos lugares por onde passou e fez suas paradas obrigatórias. O conto foi escrito no dialeto do “Hunsrück” e endereçado para seus leitores do interior colonial. Leva o titulo sugestivo: “Nichs scheeneres uff de Welt wie en Schulerrer sin”. – “Nada mais belo no mundo do que ser professor”. 

Foi a partir desses sobrevoos e a compreensão global  da visão que os grandes conjuntos lhe proporcionava, que o Pe. Rambo consolidou  uma aproximação multifacética e multicromática da “História Natural” da paisagem. Em meio a esse cenário de reflexões foi tomando forma o projeto da sua obra clássica: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Vista como um todo apresenta-se como uma monografia, como o próprio autor a classificou, bem ao estilo do velho, mas sempre  novo e inesgotável conceito de “História Natural”.  “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” conduz o leitor pelas diversas paisagens como se fossem de um livro aberto. Na sua linguagem peculiar a mineralogia, a petrografia, a geologia, a paleontologia, a edafologia, a hidrologia, a botânica, a zoologia, a climatologia, desenham as paisagens naturais das diferentes regiões do Estado e contam a sua história. Os conjuntos locais e ou regionais formam unidades que impressionam, assustam ou encantam. Cada qual na sua identidade, vem a compor uma peça a mais, na harmonia sinfônica da ”Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Na medida em que detalhou, com rigor científico a paisagem natural, apresentou-a ao público como uma declaração de amor apaixonado pela querência em que nasceu. E a paisagem que mais fundo calou em sua alma de cientista, poeta e místico, foi o planalto coberto de pinheiros. No seu diário deixou o registro de que lá “à sombra das araucárias era sua pátria na terra”.

O Pe. Rambo vem a ser uma personalidade rara entre os sábios que transitaram com desenvoltura e competência pelos diversos campos do saber. Escreveu os primeiros versos como jovem recém saído da adolescência e, aos quinze anos, em 1919, começou a redigir uma diário. Fez nele o último registro  um dia antes do seu falecimento em 12 de setembro de 1961. Ele próprio dizia que o  diário era a “obra literária e científica” da sua vida. Soma 49 volumes manuscritos em grande parte em estenografia e o restante na sua quase totalidade, em língua alemã e letra gótica (Süterlin).  Por ocasião da sua viagem de três meses aos Estados Unidos, a convite do governo daquele país, encontram-se páginas em inglês. Aparentemente aproveitou o diário para treinar aquela língua.  Esse diário tem um valor inestimável, pois, cobre um período de praticamente 40 anos em que o mundo como um todo e o Brasil em particular, passou por transformações radicais. Basta lembrar a implantação do Estado Novo e a ditadura de Vargas, a Campanha de Nacionalização, a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a redemocratização em 1945 e o posterior surto de modernização do Pais. De essencialmente rural começa o processo sem volta da urbanização, a revolução nas comunicações e seus reflexos inevitáveis sobre as comunidades coloniais tradicionais. Comprometido com o mundo rural, principalmente de descendência alemã, o Pe.  Rambo reservou páginas e mais páginas do seu diário, para as  preocupações pelo destino religioso e étnico do seu povo. Em paralelo desenvolveu toda uma linha de reflexão na qual nos legou a sua visão e compreensão peculiar do Universo, da Natureza, do Homem e, nesse panorama o lugar que cabe a Deus. Mas deixemos para mais adiante a imersão nos meandros do seu pensamento.

De outra parte o diário, somado à sua vasta correspondência científica contem os dados que permitem avaliar o tamanho da sua estatura como cientista de trânsito nacional e internacional, mais especificamente, no campo da botânica sistemática dos fanerógamos do sul do Brasil. Terminada a Grande Guerra engajou-se na campanha de Socorro a Europa Faminta (SEF). Foi secretário dessa organização interconfessional que arrecadou roupas, agasalhos e alimentos mandados por intermédio da Cruz Vermelha, para a “Europa Faminta”. Vidas sem conta foram salvas com esse socorro de emergência. Ao lado da atividade literária e científica o Pe. Rambo ocupou como fundador a cátedra de Etnografia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi responsável pela disciplina de História Natural do Colégio Anchieta. Encontrou ainda tempo para dedicar-se a projetos  sociais desenvolvidos pela Sociedade União Popular da qual foi secretario executivo e redator do seu periódico, o Skt. Paulusblatt, durante a década de 1940 e 1950. Em seu diário encontram-se informações sobre todas essas atividades.

O gosto pela poética foi, por assim dizer, a sua paixão juvenil no campo das belas letras. O entusiasmo por esse gênero foi arrefecendo no correr do tempo e foi ocupar um lugar secundário quando chegou à plena maturidade aos quarenta anos. Na ocasião anotou no diário. “O gosto antigo pela poesia e a sensibilidade pela contemplação, é verdade não morreram em mim, mas recuaram para um espaço bem mais reduzido”. (Rambo, Balduino. 1994. p. 14). Acompanhou-o, isso sim, o gosto pelos contos, dos quais publicou em alemão erudito em periódicos internacionais, uma série com pano de fundo histórico. O que, porém, representa uma valor inestimável são vinte um contos em dialeto do “Hunsrück” somados a mais de uma centena de cartas fictícias no mesmo linguajar, endereçados aos descendentes dos imigrantes alemães no interior colonial do sul do Brasil. Trata-se de um conjunto de matérias que se constituem numa autêntica mina para estudiosos da língua, linguística, teoria literária, assim como de história, antropologia, sociologia, religião e outras especialidades. Encontram-se além disso, no diário e ouras formas de publicação, dezenas de  matérias, versando, sobre os grandes temas que ocupavam a mídia de antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Suas preocupações mais recorrentes foram as mudanças  de natureza cultural, social, econômica, política e religiosa, que mexeram fundo na vida e na maneira de ser das comunidades do interior colonial, no qual ele nascera e passara a infância. As raízes que o Pe. Rambo fincara nesse meio tinham sido tão profundas e tão sólidas que, em vez de se enfraquecerem, tornaram-se o pano de fundo da sua inspiração e produção literária. Lendo e examinando seus escritos, principalmente os de ficção e os inspirados na realidade humana do mundo rural, é licito afirmar  que teriam tudo para dar-lhe um lugar de destaque na literatura mundial, caso se tivesse dedicado de corpo e alma ao gênero contos, por exemplo. Salvo melhor juízo, pouco ou nada ficam devendo à obra “Cem Anos de Solidão”, que valeu o prêmio Nobel em Literatura a Gabriel Garcia Marques. 

A Natureza como Síntese - 26

Conclusões sobre a cosmovisão de Teilhard de Chardin

As reflexões que nos levaram até aqui deixam claro de que sempre houve preocupação ao nível da Ciência e, evidentemente, da Filosofia e da Teologia, em relação aos questionamentos de fundo, implícitos no Universo, na Natureza e no Homem. Platão, Sto. Agostinho, Nicolau de Cusa, Spinosa, Hans Driesch, Oscar Hertwig, Karl von Baer, Erich Wassmann, Teilhard de Chardin, Theodosius Dobzansky. Ludwig von Bertalanffy, e, mais recentemente Francis Collins, Edward Wilson, entre outros, formularam as suas respostas. Cada qual, partindo de um ponto de vista particular e singular, fez suas observações e chegou a uma conclusão coerente com os dados que dispunha, interpretados de acordo com sua cosmovisão peculiar. Por caminhos diferentes e partindo de ângulos de observação originais, chegaram à mesma  conclusão. Na imensa Pluralidade que nos cerca, e não poucas vezes, nos confunde, percebe-se uma Unidade que, de um lado explica a própria diversidade e, do outro, confere-lhe uma razão de ser a ultrapassa. Em outras palavras. Estamos diante de doutrinas diferentes que iluminam a partir de perspectivas diferentes a Verdade que é uma só. “Doctrina multiplex, Veritas una” – “As doutrinas são muitas, a Verdade uma só”

A justiça manda que  nessa galeria de sábios não se omita o nome do Pe. Balduino Rambo (1905-1961),  contemporâneo de Teilhard de Chardin (1881-1951) e Ludwig von Bertalanffy (1901-1973). Em comum com primeiro merece lembrar que foi jesuíta, condição aliás partilhada também com Erich Wassmann (1859 – 1931). Acontece que não há registros, pelo menos até agora, de algum contato por correspondência entre os três nem referência um do outro nas suas obras científicas. De que o pensamento de Erich Wassmann era-lhe familiar pode ser deduzido do fato de em seus espólio encontrar-se a obra clássica  dele: Die Moderne Biolgie und Entwicklungstheorie. A ausência de um intercâmbio de ideias mais permanente  explica, pelo menos em parte, os caminhos aparentemente opostos que os dois jesuítas, Rambo e Teilhard escolheram para chegar ao mesmo objetivo. Aquele que se dá o trabalho de examinar um pouco mais de perto o “Fenômeno Humano”, percebe que o caminho que Teilhard foi, senão audacioso, pelo menos de uma considerável dificuldade. A execução do plano da obra que concebeu, exigiu uma complexa arquitetura conceitual, para dar suporte e consistência à lógica ao  texto. Logrou dessa forma garantir coerência à grandiosa, para muitos, genial concepção da origem, da evolução  e do destino do Universo, da Natureza e do Homem. Como cientista lançou mão dos múltiplos conhecimentos nas diversas áreas das Ciências Naturais e Humanas, para assegurar  objetividade à sua obra e, por isso mesmo, aceitação ou, pelo menos, respeito nas Academias de Ciências. O resultado compensou o esforço, como demonstra o depoimento de Jean Piveteau da Academia Francesa de Ciências, no prefácio que escreveu para “O Lugar do Homem na Nautreza”. É compreensível, pois, estamos  na primeira metade do século X, que sua obra como um todo e, consequentemente sua proposta de mega-síntese, alvoroçasse os guardas da ortodoxia religiosa. O mesmo já acontecera no começo do século com Erich Wassmann, impedido de publicar a terceira  edição da sua obra “Moderne Biolgie”. Estavam em pleno vigor os pesados documentos de Pio X, que proibiam aos católicos  aceitar o evolucionismo. O que dizer então dos religiosos ? Tanto Wassmann quanto Teilhard eram jesuítas e como tais deviam obediência irrestrita às determinações emanadas do magistério superior da Igreja. Wassmann falecido em 1931, sofreu mais diretamente o impacto dos documentos pontifícios do começo do século. Nem por isso deixou de aprofundar seus estudos, publicar os resultados e concluir a sua proposta de harmonização entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas, tão original quanto fácil de entender. Memoráveis foram os seus confrontos nos debates públicos em Berlim, com os maiores expoentes do Monismo de Ernest Haeckel. Sua cosmovisão e as matérias que a franquearam ao grande público, foram publicadas  na revista Stimmen der Zeit, entre 1910 e 1930. 

Teilhard de Chardin e Balduino Rambo consolidaram ambos a suas compreensões do Universo, da Natureza e do Homem, entre 1940 e 1960. Vale observar que a Igreja por meio do Magistério Superior Eclesiástico, dava sinais inequívocos de aproximação com o universo científico. Pio  XII, eleito em fevereiro de 1939 e falecido em outubro de 1958, fundou a Academia Pontifícia de Ciências, um fórum de alto nível para o qual eram convidados os expoentes das diversas especialidades, com a finalidade de implementar o diálogo entre a Ciência, a Filosofia e a Teologia. Essa mudança  teve o mérito de atenuar as tensões entre a Ciência e o rigor doutrinário imposto por Pio X. Foi-se generalizando um arrefecimento gradativo das tensões  e uma lenta aceitação do transformismo, como um caminho legítimo para conceber o mundo, também para os católicos. Essa tendência tomou corpo e tornou-se uma das balizas sinalizadoras das investigações, e, de modo especial, das reflexões  de cientistas católicos. De outra parte, as autoridades eclesiásticas abandonaram sensatamente forçar os religiosos cientistas a pesquisar,  imobilizados  pela camisa de força da interpretação literal da Bíblia ou a rejeição do transformismo a qualquer preço. Assim, Teilhard e Balduino Rambo gozavam da liberdade para desenvolver suas investigações, suas observações e, de modo especial, suas reflexões, num cenário desenhado pelo evolucionismo, sem serem chamados à ordem ou estigmatizados como heterodoxos. É verdade que Teilhard foi, por algum tempo,  penalizado por um tal ou qual ostracismo e chamado a explicar-se  perante as autoridades eclesiásticas e da própria Ordem. Pelo que consta, o Pe. Rambo nunca foi chamado formalmente à ordem por defender em sala de aula e em palestras a sua convicção de evolucionista. De um lado não expôs-se tanto quanto o irmão de Ordem, porque sua especialidade era a taxonomia botânica, pouco propícia para uma discussão na linha da evolução e, do outro lado, porque não chegou a escrever uma síntese como o fez Teilhard no “Fenômeno Humano”. A questão foi posta num nível oficial definitivo pela Igreja com a encíclica “Divino Aflante Spiritu” de 1943  e a  “Humani Generis” de 1950.  Em resumo esses documentos remetem a face científica relativa ao Evolucionismo para a Ciência e para a Filosofia e a Teologia, os aspectos privativos a essa esfera. 

  Em 30 de setembro de 1943, Pio XII publicou a Carta Encíclica Divino afflante spiritu. Nela o papa recomenda a tradução da Sagrada Escritura das línguas originais em que foram escritas para substituir  a tradicional Vulgata de São Jerônimo. Esse recurso às línguas originais, tomando em consideração o gênero literário, o ambiente histórico cultural, abriria a possibilidade de interpretações alternativas do textos sagrados. Foi o primeiro e decisivo passo para o reencontro e o efetivo diálogo entre a Ciência e a Igreja Católica. 
  Humani generis, promulgada por Pio XII em 12 de agosto de 1950 libera oficialmente o estudo e aceitação da teoria da evolução contanto que se preserve a doutrina relativa à criação direta da alma por Deus. O documento ensina que “A Autoridade Docente da Igreja não proíbe, tomando em consideração o presente estado da Ciência e da Sagrada Teologia, as pesquisas e discussões, baseadas na experiência dos dois campos, que envolvem a doutrina da Evolução, na medida em que aceita a origem do corpo humano a partir de um ser vivo anterior, ressalvando a criação da alma como um ato divino imediato”.

A Natureza como Síntese - 25

Em busca do “Ômega”

Depois dessa digressão voltemos a Teilhard de Chardin. Não há necessidade de insistir mais de que ele vai conduzindo toda a sua linha de  raciocínio em busca de um ponto de convergência da natureza global. Lida com a pluralidade das realidades naturais, supondo diante mão que, pela sua natureza, fazem parte de uma grande unidade. A visão unitária do universo e da natureza encontra-se implícita no macro-modelo que desenhou para orientar a coerência das suas reflexões. Tudo teve um começo no “alfa”. Nele encontrava-se o “estofo” do Universo, dotado de um potencial ilimitado de diversificação, de reagrupação, de complexificação, de compressão, até voltar novamente, no final, a uma unidade definitiva no “ômega”. No último capítulo do “Fenômeno Humano” que leva o titulo “A Terra Final”, a intenção de Teilhard fica mais clara:

O homem só continuará a trabalhar e a pesquisar se conservar o gosto apaixonado de fazê-lo. Ora esse gosto está inteiramente pendente da convicção, estritamente indemonstrável para a Ciência, de que o Universo tem um sentido e de que pode, ou até de que deve desembocar, se formos fieis, em alguma irreversível perfeição. Fé no progresso.

Podemos conceber cientificamente um melhoramento quase indefinido do organismo humano e da sociedade humana. Mas logo que se trata de materializar praticamente os nossos sonhos, constatamos que o problema continua indeterminado, ou mesmo insolúvel, a menos que admitamos, por uma intuição parcialmente supra-racional, as propriedades convergentes do Mundo a que pertencemos. Fé na Unidade. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)

Na reflexão que acabamos de registrar, Teilhard como cientista deixa clara a dificuldade em oferecer, via Ciência, uma perspectiva para uma resposta final e conclusiva para o desfecho da evolução do Homem. Percebe como, para entender o Universo e a Natureza, os cientistas desmontaram a realidade até as últimas peças. E no afã de, por esse caminho, encontrarem respostas de fundo para as hipóteses que orientam, cresce no mesmo ritmo do avanço de suas descobertas, a desconfiança de que não é por essa via que irão obtê-las. O fato é que o método  analítico indutivo próprio das Ciências, esconde uma armadilha que pode transformar-se num beco sem saída. Teilhard descreveu a situação mais ou menos assim. O método analítico oferece os instrumentos maravilhosos que se encontram na base de todo o progresso. Vem acompanhado, porém, de um risco que não pode ser desprezado. De tanto dissecar, desmontar, analisar, o pesquisador defronta-se com um monte de peças e perdeu a noção da máquina a que pertenceram. Se essa foi a situação em meados do século XX, o que dizer do começo do século XXI?. Em todo o caso e o que interessa é que ele descreveu o desfecho final para o qual deverão contribuir, tanto as Ciências Naturais, quanto as Ciências do Espírito.

Quando, no Universo movediço para o qual acabamos de despertar, olhamos as séries temporais e espaciais divergir e soltar-se à nossa volta e para trás, como camadas de um cone, fazemos Ciência pura. Mas quando nos voltamos para o lado do Ápice, em direção à Totalidade e o Porvir, forçoso nos é fazer também Religião

Religião e Ciência: duas faces, ou fases conjugadas de um mesmo ato completo de conhecimento, - o único que pode arcar, para contemplá-los, medi-los e consumá-los, o Passado e o futuro da Evolução.
No reforço mútuo dessas duas potencias ainda antagônicas, na conjunção da Razão e da Mística, o Espírito humano, pela própria natureza de seu desenvolvimento, está destinado a encontrar o extremo de sua penetração, com o máximo de sua força viva. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 324)

Na sua obra complementar ao “Fenômeno Humano”, “ Homem na Natureza”, Teilhard formulou a conclusão de todo o seu esforço científico e as reflexões que o acompanham.

Se o pólo de convergência psíquica no sentido do qual gravita, organizando-se, a Matéria não fosse nada de diferente, nem nada mais que o agrupamento totalizado, impessoal e reversível, de todos os grãos do Pensamento cósmicos momentaneamente refletidos uns nos outros, o enrolamento do Mundo sobre si mesmo desfazer-se-ia, na própria medida em que a Evolução, a progredir, tomaria consciência mais clara do beco sem saída em que terminaria. Sob pena de ser incapaz  de formar o fecho de abóbada para a Noosfera, “Ômega”só pode ser concebido como o ponto de encontro entre o Universo chegado ao limite de centração e um outro Centro ainda mais profundo – Centro auto subsistente e Princípio absolutamente último de irreversibilidade de personalização: o único verdadeiro “Ômega”. E julgo é neste ponto que se insere,  na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução.  (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).

Pelo visto fica claro que, salvo melhor juízo, Teilhard de Chardin direcionou todo o seu esforço de cientista, de etnógrafo, de etnólogo, de historiador, de geógrafo, de filósofo e, porque não, de teólogo e místico, par demonstrar que o Universo é uno na sua imensa Pluralidade. Essa unidade somente é possível se houve um começo único, um “alfa”. Além disso exige também que o desfecho da evolução que levou à Pluralidade ao extremo numa primeira fase, numa segundo voltou a concentrar-se (lembramos a metáfora do globo terrestre), em busca de um ponto de chegada final único e definitivo: o “Ômega”. Apesar da pluralidade somada a uma aparente dispersão, uma linha mestra atrelada a uma teleologia, garantiu e garante ainda a Unidade radical. E se há uma teleologia, uma causa eficiente e inteligente – um “Alfa”, este tudo planejou, pós em andamento e direcionou a um objetivo final – o “Ômega”. A lógica dessa cosmovisão só podia terminar numa conclusão final, aquela que o próprio Teilhard formulou no “Lugar do Homem na Natureza”. O “Alfa” confunde-se com Deus Criador e o “Omega”, o mesmo Deus, princípio, alma, razão de  ser e  destino final do Universo, da Natureza e do Homem. “Julguo ser neste ponto que se insere, na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).

A Natureza como Síntese - 24

A capacidade de refletir, isto é, a capacidade de tomar consciência, de entender o “porque” do seu saber ou do seu entendimento, fez com que o homem percebesse que seus semelhantes gozavam da mesma característica. É legítimo imaginar de que daí nascesse a curiosidade de aproximar-se deles e comunicar-se com eles. A aproximação por meio do diálogo, o mútuo entendimento seguido do mútuo conhecimento, tornou-se  possível com o recurso à linguagem nas mais diversas formas de expressar conceitos, de utilizar-se de símbolos, metáforas, expressões corporais, mímicas, gestos, desenhos, representações por sinais em forma de figuras, escritas, alfabetos, etc. A importância desse fato é tamanha que a evolução cultural da humanidade é simplesmente impensável, sem o fantástico instrumento das línguas faladas e demais formas de comunicação. Sem elas é inimaginável a formação de comunidades humanas,  o desenvolvimento das artes, a formulação de sistemas de pensamento, de concepções religiosas, de cultos e de rituais de qualquer espécie. E o mais importante de tudo é o fato de que os registros feitos pelo homem através no decorrer dos tempos, as experiências feitas, a memória acumulada, tudo perder-se-ia sem o recurso à alguma forma de linguagem ou de comunicação. Por isso.
A linguagem  não é apenas uma ferramenta. Ela é a ferramenta mais importante do homem. É ela que nos faz humanos. Pela fala, depois, pela escrita, conseguimos formular pensamentos e acumular conhecimentos no decorrer das gerações. Um cachorro não pode saber como era bisavô. O homem é o único ser que pode ter essa informação. Uma das maiores  vantagens evolutivas da linguagem é a capacidade de reconhecer que um semelhante tem um cérebro como o nosso e pode pensar, como nós. A isso damos o nome de teoria da mente. Foi essa capacidade que nos possibilitou a comunicação. No momento em que um homem raciocinou que o outro perto dele tinha uma mente igual, chegou à brilhante conclusão de que “ele pode me entender”. Essa ideia básica, fundamental, está presente até hoje em todas as formas humanas de expressão. Foi somente a partir daí que conseguimos viver plenamente em comunidade, que criamos a filosofia e a matemática e nos constituímos em humanidade. (Everett, Daniel. Entrevista à Revisa Veja. 7 de março de 2012. p. 20)

A linguagem possibilita, simultaneamente a capacidade de inventar e desenvolver tecnologias, uma outra conquista peculiar e exclusiva ao homem como portador de uma inteligência reflexa. Assim como fabricar instrumentos, mesmo os mais rudimentares, prova que seu autor está equipado com inteligência reflexa e, portanto, um autêntico humano, assim a linguagem nas suas mais diversas modalidades, só é concebível pela reflexão. Reduzir a  linguagem a uma pré-disposição genética, uma herança biológica prevista no DNA, mais precisamente no gene FOXP-2, como  apregoa a teoria de Noam Chomsky, parece difícil, melhor impossível, de sustentar tomando como ponto de partida a natureza da reflexão como a entendeu Teilhard de Chardin. Depois de por mais de meio século servir de cartilha, para não dizer de Bíblia, para gerações de lingüistas e pedagogos, Chomsky começa a ser contestado exatamente a partir da sua especialidade. Em seu recente livro “Language: The Cultural Tool” – “Linguagem, a Ferramenta da Cultura”, o lingüista Daniel Everett, professor da universidade de Bentley em Bóson, bate de frente com a teoria de Chomsky. Numa entrevista à revista Veja classifica de ridícula a idéia de Chomsky, pois, conforme ele, não há provas, nem nunca houve, de que existem estruturas em nossos cérebro ou em nosso DNA, que autorizam  afirmar que a linguagem é hereditária. O gene FOXP-2, a quem por um bom tempo, atribuiu-se a hereditariedade da linguagem, além de ter outras funções, está presente em ratos, algumas espécies de aves, e ouros animais. Soma-se a isso que Chomsky não é geneticista e nunca fez pesquisas em biologia humana. Resumindo Everett declara.

As línguas são a combinação de três fatores: a capacidade cognitiva do homem, a cultura dos povos e o que as sociedades querem comunicar. Nosso corpo estabelece os limites de como nos expressamos, a cultura define como falamos e lemos e a vontade de nos comunicarmos determina o que queremos dizer. É uma relação dinâmica. Cada uma dessas peças influencia a outra. (Everett, Daniel. Veja 7 de marcos de 2012. p. 20)

“A capacidade cognitiva” de que fala Everett, não passa de uma outra maneira de definir a “capacidade de reflexão” de Teilhard. A linguagem, incluindo a falada, a escrita, expressão pelas artes, os gestos, a mímica e qualquer outro tipo de comunicação intencional, é o resultado da reflexão. A pessoa ao concentrar-se sobre si mesma, ao “refletir” sobre si mesmo, percebe que seu semelhante está fazendo o mesmo. A partir desse mútuo observar-se nasce o desejo de comunicar-se, de compartilhar experiências e vivências, de trocar impressões, de encontrar soluções, de interpretar as incógnitas relacionadas com a vida, à natureza e o universo. A linguagem é a ponte  que permite essa  comunicação. Não faz diferença se para tanto os interlocutores se valem da língua falada, da comunicação escrita, por gestos, da postura corporal. O determinante está no fato de que  a comunicação entre humanos tem com motor e combustível a necessidade inata no homem de relacionar-se de forma consciente com os outros, isto é, o homem é por natureza social. Entre os animais a comunicação acontece no plano instintivo e, por isso mesmo, dá-se a partir de sinais mecânicos que têm sempre o mesmo sentido e sempre pedem a mesma resposta. No homem a linguagem é essencialmente reflexiva, conceitual e, sendo assim, é simbólica. E sendo simbólica expressa a maneira peculiar como as pessoas percebem o que elas próprias são e o universo e os acontecimentos em que passam a existência. Como se pode concluir, a linguagem, melhor, as linguagens, são o fruto da consciência que homem tem de si mesmo e da necessidade de partilhar com os semelhantes a sua cosmovisão, a sua “Weltauffassung” como diria Erich Wassmann. E é sobre essa base que as culturas  vão tomando forma. Assim como cada pessoa individual percebe a si mesmo e o mundo de perspectiva original, as culturas convencionam caminhos comuns que as orientam para um objetivo comum. Cada indivíduo, referenciando-se às balizas respeitadas por todos, preserva a individualidade expressa na postura, nas emoções que sente, nos simbolismos que lhe são sugeridos, nas reações perante os imprevistos e na forma de lidar com questões existenciais de fundo, como são a doença, a dor, a injustiça, a solidariedade, o amor, a fidelidade, a morte e o que se oculta atrás dos seus mistérios e incógnitas e, finalmente, o lugar ou não lugar e Deus neste cenário.

Cabe à linguagem o papel de meio de campo entre a preservação da individualidade e as relações culturais que consolida com seus semelhantes. As pessoas dialogando desenvolvem uma linha de entendimento mútuo, baseada em conceitos abstratos, representações, simbolismos, etc. Conforme definiu o Pe. Balduino Rambo, a língua, a linguagem em todas as suas modalidades, ( ... ) é, sem dívida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Ela desabrochou  do sangue e da natureza de um povo. Por isso reluzem sobre suas folhas as reminiscências  do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana ainda hoje algo do aroma do mistério da alma humana.

A expressão mais evidente do sangue e do  espírito, da alma comum, do modo de pensar comum, é a língua. A identidade étnica dispõe, obviamente, de outras modalidades e de outras formas de fazer visível a sua cultura: a música, a pintura, a escultura, as festas, os trajes, os usos e costumes. A língua, entretanto, constitui-se no sinal identificador mais essencial da identidade étnica. Torna possíveis as demais manifestações e até certo ponto as inclui.

A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus na margem da estrada de todos os povos, para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica a sua alma  e se intromete criminosamente no santuário da alma humana. (Rambo, Balduino. In Identidade como Síntese. Manuscrito. p. 143)

O significado da língua, no seu sentido mais amplo de “comunicação”, formulado há pouco por David Everett, poderia parecer inspirada na reflexão do Pe. Rambo, escrita há quase 80 anos. “A língua, segundo o primeiro, resulta da capacidade cognitiva do homem. Permite que as pessoas se comuniquem de acordo com padrões consagrados e consolidados pela história da cultura particular de cada povo. Além disso permite que as pessoas compartilhem com as demais aquilo que desejam comunicar. A semelhança entre os dois pensadores fica ainda mais evidente, ao lermos a continuação da reflexão de quase oito décadas passadas.

A língua materna simboliza a mesma maneira de pensar e a mesma maneira de sentir. Sob este aspecto ela representa um dos tesouros mais sagrados dos povos. A língua comum constitui-se no veículo mais completo da compreensão mutua, não somente por causa dos mesmos sons e das mesmas palavras, mas antes de mais nada, pelas mesmas percepções que transmitem. A língua materna comum permite a formação da comunidade de destino comum. Com ela somos capazes de superar com maior facilidade a enorme solidão da nossa existência e trilhar com mais segurança a difícil, a longa, a íngreme e a escura trilha da nossa vida. Ninguém se basta a si mesmo. Pelo contrário. Quanto mais importante é o homem, tanto mais sente a solidão e a impotência e, com tanto maior ânsia, procura os homens que deus lhe concedeu como companheiros de viagem, para que a vida a dois, a três e a muitos se torne menos solitária. (Rambo. 1935. Manuscrito. p. 144).

A Natureza como Síntese - 23

Nos parágrafos que acabamos  de citar, Teilhard deixa transparecer que, como cientista, está lidando com um desafio de boas proporções. Vale-se dos recursos conceituais e literários até surpreendentes para o jargão de um cientista. De qualquer maneira parece legítima a percepção nas linhas e entrelinhas, uma lógica que no fundo orienta a evolução, assim como ele a entendeu. O “estofo” de que é feito o universo e a natureza, concentra em si o potencial para tornar-se realidade na medida  em que as condições necessárias estiverem presentes. Tornam-se  efetivas como realidades dadas  na medida em que a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão, levam a sempre novos e mais altos níveis de organização. Cada nível de organização da matéria, exige, por sua vez, uma passo adiante na preparação do caminho em busca da “passagem critica da Molécula para a Célula. A resposta para a pergunta se essa “passagem critica” pode ser atribuída a processos de natureza físico-química atuantes na história da evolução natural ou não, Teilhard responde com a reflexão. 

Nada em si mesmo impediria que, em massas infinitesimais, a substância viva esteja ainda a nascer sob os nossos olhos. – Mas nada, de fato, parece indicar, - tudo, pelo contrário, parece dissuadir-nos de pensar assim. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 96)

Reforça a afirmação com as experiências de Pasteur que comprovaram que, nas condições de hoje, a vida não aparece em laboratório, num meio estéril, previamente limpo de qualquer gérmen. Esse fato, em princípio, entretanto, nada diz a favor ou contra a gênese da célula no passado remoto da evolução. O uso universal do métodos de esterilização comprovam que, nos limites das investigações de hoje, “o protoplasma não mais se forma a partir de substâncias inorgânicas da Terra”. E conclui: E isso nos obriga, para começar, a revisar certas ideias por demais absolutas que podiam alimentar sobre o valor e o uso, em Ciências, das explicações pelas “causa atuais”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 96).

Como se pode perceber, tanto a origem da matéria prima, o “estofo” do Universo, quanto o aparecimento da célula viva, desafiaram, como desafiam ainda hoje o potencial explicativo das Ciências Naturais. O terceiro passo na evolução que coloca os cientistas diante de um desfio, igualmente, ou muito mais intrigante, encontra-se na “superação da consciência pela consciência reflexa”, do “saber instintivo para o saber reflexivo”, da “inteligência instintiva – do instinto – para a inteligência reflexa”. Em outras palavras: “a Hominização”. Teilhard resumiu o tamanho do desafio.

Numa perspectiva puramente positivista, o Homem é o mais misterioso e o mais desconcertante dos objetos com que a Ciência se depara, E de fato, temos de confessar, a Ciência não lhe encontrou ainda um lugar nas suas representações do Universo. A Física chegou a circunscrever provisoriamente o mundo do átomo. A Biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada na Física e na Biologia, a Antropologia, por sua vez, explica, mais ou menos, a estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez reunidos todos esses dados, o retrato, manifestamente, não corresponde à realidade. O Homem, tal como a Ciência o consegue reconstituir hoje em dia, é um animal como os outros, - tão pouco separável, por sua anatomia, dos Antropoides, que as modernas classificações da Zoologia, retornando à posição de Lineu, o incluem com eles na mesma  superfamília os homínidas. Ora a julgar pelos resultados do seu aparecimento, não constitui ele precisamente algo totalmente diferente?

Salto morfológico ínfimo; e, ao mesmo tempo, incrível abalo das esferas da Vida: todo o paradoxo humano ... E toda a evidência, por conseguinte, de que, nas suas atuais reconstruções do Mundo, a Ciência negligencia um  fator essencial, ou melhor dizendo, uma dimensão inteira do Universo.
Entre os últimos estratos do Plioceno, donde o Homem está ausente, e o nível seguinte, onde o geólogo deveria ser sacudido  de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados, o que é que se passou. E qual é a verdadeira dimensão do salto? (Teilhard de Chardin. 1986. p. 185)

A dimensão nova a que se refere Teilhard vem a ser a Noosfera que vai complementar e coroar a Litosfera e a Biosfera. Não há necessidade de relembrar que na explicação da transição entre as três esferas, a Ciência não consegue avançar muito além da formulação de hipóteses que “não se sustentam por mais do que uma manhã”. O cientista, seja ele biólogo, paleontólogo, associados ao antropólogo, são desafiados mais uma vez pela incomoda pergunta: o arsenal disponível dos dados empíricos e as perspectivas  do potencial de investigação, percebe-se uma probabilidade objetiva de uma resposta conclusiva convincente? Antes de arriscar um veredicto definitivo é prudente tentar compreender mais a fundo o sentido real a afirmação de Teilhard: “o geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao identificar os primeiros quartzos lascados”. 

Concedemos que para que para o biólogo, o paleontólogo, o antropólogo físico ou bio-antropólogo, a transição entre os símios mais primitivos, os símios antropoides e os homínidas, não cause uma surpresa tão fora do comum. Afinal lidam com o que a espécie humana tem em comum com os demais antropoides ou símios e seres vivos em geral. Seus métodos de investigação são reconhecidamente válidos e aceitos e as hipóteses que formulam, a partir dos dados de que dispõem, são legítimas. Muitos, entretanto, não percebem, e quando percebem, não se interessam ou “negligenciam um fator essencial”, “uma dimensão inteira do Universo”. E, tentando manter fidelidade ao raciocínio e à cosmovisão de Teilhard, a dimensão a que se refere vem a ser a “Noosfera”. A questão assume um sentido bem mais polêmica no momento em que for tratado ao nível do psiquismo. A pergunta de fundo a ser respondida vem a ser: o psiquismo do homem difere essencialmente daquele dos seres  vivos que vieram antes dele, ou a inteligência animal situa-se apenas num nível um pouco mais abaixo da humana. Ou ainda. A inteligência humana dispõe somente de algumas ferramentas a mais do que os antropoides, como por ex., o gorila e chimpanzé e tudo se explica via biologia, via DNA, etc. Nada de sugerir uma diferença específica, uma diferença essencial, de natureza, entre o psiquismo humano e o animal. Frente a esse impasse Teilhard propõe encarar de frente o desafio. 

Se queremos resolver essa questão (cuja solução é tão necessária para a Ética da Vida quanto para o conhecimento puro ... ) a “superioridade do Homem sobre os Animais, eu não vejo senão um meio: por decididamente de lado, nos feixes dos comportamentos humanos, todas as manifestações secundarias e equívocas da atividade interna e encarar de frente o fenômeno da “Reflexão”. 

Do ponto de vista experimental, que é o nosso, a reflexão, como a própria palavra indica, é o poder adquirido por uma consciência de se dobrar sobre si mesma, e de tomar posse de si mesma como de um objeto dotado de sua própria consistência e do seu próprio valor: não mais apenas conhecer, - mas conhecer-se; não mais apenas saber, mas saber que se sabe. Por essa individualização de si mesmo no fundo de si mesmo, o elemento vivo, até aqui espalhado e dividido sobre um círculo difuso de percepções e de atividades, acha-se constituído, pela primeira vez, em centro punctiforme, onde todas as representações e experiências se entrelaçam e se consolidam num conjunto consciente de sua organização. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186)

A revolução que o aparecimento da Reflexão significou para a história posterior da evolução, justifica algumas reflexões complementares. Quem sabe ler descobre nos quartzos lascados, nos famosos “machados de punho”, que deveriam ter impressionado os geólogos mais do que qualquer outra descoberta inusitada, os elementos que distinguem  a inteligência reflexa da inteligência instintiva. De saída os caçadores e coletores do paleolítico flagraram-se diante e uma situação, que desafiava  a própria chance de competir com êxito com as demais espécies, pela sobrevivência no contexto da evolução natural. Anatomicamente falando o homem somava-se àquelas espécies diante mão condenadas ao fracasso na luta pela sobrevivência, se entregue à lógica  implacável da seleção natural. Basta observar as mãos. Não passam de ferramentas de eficiência limitada e precária. De um lado servem para tudo e, do outro, não são eficientes para nada. Basta compará-las com as extremidades dos animais que no paleolítico disputavam com o homem o espaço e os alimentos. As mãos cavam, mas cavam mal. Agarram, mas agarram mal. Defendem, mas defendem mal. Entre a eficiência das garras de um tatu ou de um tamanduá e as mãos do homem, há uma distancia quilométrica. O mesmo pode-se afirmar do casco de um cavalo, das patas e um leão ou das mãos de um macaco. Situação semelhante oferece a dentadura. Nela não há nada similar em termos de eficiência à de um ruminante ou de um predador natural. E o que julgar da proteção contra as intempéries com o corpo praticamente desprovido de pelos espessos, de uma cobertura de lã de camadas protetoras de gordura? Como, então, apesar e tudo, o homem é a única espécie viva, pelo menos entre os vertebrados, que continua com êxito a sua trajetória evolutiva?

A resposta é óbvia. O homem é a única espécie viva capaz de Reflexão. E na prática o que significa isso? Tomemos como exemplo aqueles artefatos de sílex lascados, os famosos “machados de punho”. O que nos ensinam? Que os responsáveis pelo lascamento dispunham da capacidade de avaliar uma situação e como  resposta pôr em andamento toda uma cadeia de procedimentos, para dar conta dos desafios que oferecia. Parece legítimo imaginar, entre outras, a seguinte seqüência de procedimentos: tomar consciência de um problema, por ex., escavar um tubérculo, tirar a pele de um animal, separar a carne dos ossos, defender-se contra uma fera ou contra outro homem. Constatada a ineficiência das mãos e dos dentes recorrer a pedaços de madeira, ossos de animais ou lascas de pedra; imaginar a possibilidade de tornar esses artefatos mais eficientes  por meio de manipulações adequadas; dar-lhes o formato e os acabamentos necessários para servir à finalidade pretendida. Em resumo, temos assim a cadeia de operações mentais ditando a natureza e a sequência de ações necessárias para chegar ao objetivo pretendido. Conclui-se, sem mais, que o motor é a Reflexão que confere ao homem a capacidade de ter consciência de uma situação, refletir sobre ela, organizar logicamente os atos em função de um objetivo a ser alcançado. Na sua maneira peculiar e única, Teilhard resumiu o “Passo para a Noosfera” e o seu significado para a natureza em geral e o homem em particular.

Isto posto, eu pergunto. Se, como decorre do que ficou dito, é o fato de se encontrar “refletido” que constitui o ser verdadeiramente “inteligente”, podemos nós seriamente duvidar de que a inteligência seja apanágio evolutivo do Homem e só do Homem? E podemos nós, por conseguinte, hesitar em reconhecer, por não sei que falsa modéstia, que sua posse representa para o Homem uma avanço radical em relação a toda a Vida antes dele? O animal sabe, bem entendido. Mas, certamente, ele não sabe que sabe: de outro modo, teria há muito tempo multiplicado invenções e desenvolvido um sistema de construções internas que poderiam escapar à nossa observação. Consequentemente, permanece fechado para ele todo o domínio do Real, no qual nós nos movemos, nós, - mas no qual ele, por sua vez, não consegue entrar. Um fosso, - ou um limiar – para ele intransponível, nos separa. Em relação a ele, por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas outros. Não só simples mudança de grau,  mas de natureza – que resulta de uma mudança de estado. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 186-187).

A Natureza como Síntese - 22

Depois dessa digressão voltemos a Teilhard de Chardin. Não há necessidade de insistir mais de que ele vai conduzindo toda a sua linha de raciocínio em busca de um ponto de convergência da natureza global. Ocupa-se com a pluralidade das realidades naturais com a certeza de que pela sua natureza fazem parte de uma grande unidade. A visão unitária do universo e da natureza encontra-se implícita no macro-modelo desenhado para balizar a coerência da suas reflexões. Tudo teve o seu começo no “alfa”. Nele concentrou-se a matéria original, o “estofo” dotado de um potencial ilimitado de diversificação, reagrupação, complexificação e  concentração sobre si mesmo, até voltar novamente, no final, a uma unidade definitiva, o “ômega”. No último capítulo do “Fenômeno Humano”, intitulado “A Terra Final”, a sua intenção nesse sentido fica cada vez mais clara.

O homem só continuará a trabalhar e a pesquisar se conservar o gosto apaixonado de fazê-lo. Ora, esse gosto está inteiramente pendente da convicção, estritamente indemonstrável para a Ciência, de que o Universo tem sentido e de que pode, ou até de que deve desembocar, se formos fiéis, em alguma irreversível  perfeição. Fé no progresso.

Podemos conceber cientificamente um melhoramento quase indefinido do organismo humano e da sociedade humana. Mas logo que se trata de materializar praticamente os nossos sonhos, constatamos que o problema continua indeterminado, ou mesmo insolúvel, a menos que  admitamos, por uma intuição parcialmente supra-racional, as propriedades convergentes do Mundo a que pertencemos. Fé na Unidade. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)

Na citação acima, Teilhard como cientista deixa clara a dificuldade em oferecer, via Ciência, a perspectiva para uma resposta final e conclusiva para o desfecho da evolução em geral e a do homem em particular. Percebe como, para entender o Universo  e a Natureza, os cientistas desmontaram a realidade até as últimas peças. E no afã de, por esse caminho, encontrarem respostas de fundo para as hipótese que os orientam, cresce, no mesmo ritmo do avanço das suas descobertas, a desconfiança de que não e por essa via que irão obtê-las. Se essa foi a situação em meados do século XX, o que não dizer do começo do século XXI?. Em todo o caso, e o que interessa, é que ele descreveu o desfecho final, para o qual deverão contribuir tanto as Ciências Naturais quanto as Ciências do Espírito.

Quando olhamos no Universo movediço para o qual acabamos de despertar, as séries temporais  espaciais divergir e soltar-se à nossa volta e para trás, como as camadas de um cone, fazemos Ciência pura. Mas quando nos voltamos para o lado do Ápice, em direção à Totalidade e o Porvir, forçoso nos é fazer também Religião.

Religião e Ciência: as duas faces conjugadas de um mesmo ato completo de conhecimento, - o único que pode abarcar para completá-los, medi-los e consumá-los, o Passado e o Futuro da Evolução.

No reforço mútuo dessas duas potências ainda antagônicas, na conjunção da Razão e da Mística, o Espírito humano, pela natureza do seu desenvolvimento, está destinado a encontrar o extremo de sua penetração, com o máximo de sua  força viva. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)

A no seu texto complementar ao “Fenômeno Humano”, ao qual deu o titulo de “O Homem na Natureza”, formulou a  conclusão de todo o seu esforço científico e as reflexões que o acompanham, nos seguintes termos.

Se o polo de convergência psíquica no sentido do qual gravita, organizando-se,  a Matéria não fosse nada de diferente, nem nada mais que o agrupamento totalizado, impessoal e reversível, de todos os grãos de Pensamento cósmicos momentaneamente refletidos uns nos outros, o enrolamento do Mundo sobre si mesmo desfazer-se-ia, na própria medida em que a Evolução, ao progredir, tomaria consciência mais clara do beco sem saída em que terminaria. Sob pena de ser incapaz de formar o fecho de abóbada para a Noosfera, “Ômega” só pode ser concebido como o  ponto de encontro entre o Universo chegado ao limite de concentração  e um outro Centro ainda mais profundo – centro auto subsistente e Princípio absolutamente último de irreversibilidade de personalização: o único verdadeiro Ômega. E julgo ser neste ponto que se insere na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução. (Teilhard de Chardin. 1956. p. 148-149)

Pelo exposto fica claro que, salvo melhor juízo,  Teilhard direcionou todo o seu esforço de cientista, de etnógrafo, de etnólogo, de geógrafo, de historiado, de filósofo, e porque não de teólogo e místico, em favor da demonstração de que o Universo é Uno na sua incrível diversidade. Essa Unidade somente é possível se houve um começo único, um “Alfa”. A mesma lógica pede também que o desfecho que levou a Evolução à Pluralidade, à diversidade extrema numa primeira fase, e numa segunda, voltou a concentrar-se (lembramos a metáfora do globo terrestre), em busca de ponto de chegada final, único e definitivo – o “Ômega”. Apesar da Pluralidade acompanhada de uma aparente dispersão, uma linha mestra, um “Leitmotiv”, uma teleologia garantiu e garante ainda a Unidade radical. E se existe uma teleologia, uma causa eficiente – um “Alfa” – as potencialidades da Evolução estavam previstas no “Estofo” primordial do Universo, e a Evolução mesma  direcionada em busca de um objetivo, de um fecho final- o “Ômega”. A lógica dessa cosmovisão só pode terminar numa conclusão, aquela que o próprio Teilhard formulou no “O Lugar do Homem na Natureza”: o “Alfa” confunde-se com o Deus Criador e o “Ômega” o mesmo Deus, princípio, alma, razão de ser e destinação final do Universo, da Natureza e do Homem. “E julgo ser neste ponto que se insere na Ciência da Evolução, o problema de Deus -  Motor, Colector e Consolidador da Evolução” (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149)

Para Teilhard são fundamentais os conceitos emprestados ao alfabeto grego: “alfa” e “ômega”. O sentido metafórico de “começo” e “fim”, de “ponto de partida” e “ponto de chegada”, não deixa dúvidas. Entre esses dois polos localiza-se, numa perspectiva macro-histórica, a evolução do Universo, da Natureza e do Homem e, consequentemente, a evolução individual de cada uma das realidades que compõem o todo. Do “estofo” primordial, existente lá no começo, confundindo-se com o “alfa”, resulta a matéria original na forma de átomos. A partir desse estágio entram em ação os processos de agregação, de repetição geométrica, de complexificação, de compressão e a consciência, que aceleraram num ritmo geométrico  a dinâmica da evolução. Não é aqui o lugar para entrar  a fundo nos meandros, nas sinuosidades, nos aparentes becos sem saída e os recursos  teóricos e metodológicos de que o autor do “Fenômeno Humano” e do “Homem na Natureza” se valeu, para não desviar-se da perspectiva científica. Esses aspectos já foram analisados em outra passagem das presentes reflexões. No fundo duas preocupações  parecem orientar a maneira original com que o autor conduziu suas analises e as suas reflexões. Teilhard preocupa-se, de um lado, em deixar claro de que lida com a evolução na perspectiva das Ciências Naturais. Do outro, entretanto, a sua formação filosófica e teológica e, principalmente, sua fé inegociável, dificultam-lhe em muito a caminhada. São de modo especial cruciais a resposta para a origem da matéria prima, o “estofo”  do Universo, a origem da vida, os salto do instinto para a inteligência reflexa. Corre paralela a preocupação para não perder de vista as causas, ou a causa, responsável pelo surgimento da matéria e, como a evolução, amarrada a uma teleologia, culmina num ponto de partida pré-estabelecido. Entende-se a dificuldade de Teilhard em movimentar-se nesse campo minado e manter-se fiel ao propósito de não cair na tentação de, à maneira de um “deus ex machina”, valer-se de referenciais alheios às Ciências Naturais. Conceitos como “causalidade eficiente”, “destino”, “criação”, revelação natural”, “criador”, “forças sobrenaturais ou preter-naturais”, “design inteligente” de maneira alguma seriam recursos explicativos legítimos, num texto que se orienta por uma abordagem científica. Entretanto não deixam de decidir indiretamente, à maneira de um pano de fundo, sobre a natureza e o rumo das reflexões. 

O arcabouço conceitual escolhido por Teilhard para tornar compreensível a genialidade da sua cosmovisão global do Universo, da Natureza e do Homem, prima pela lógica e coerência. Tudo começou no polo “alfa” onde reina total simplicidade. Essa simplicidade, porém, é  apenas aparente. Ela oculta um potencial ilimitado de desdobramentos, que vão se materializando  no decorrer da evolução, tanto no plano marco quanto no micro e no nanocósmico. “O Fenômeno Humano”  nada mais é do que o desfecho dessa história com o surgimento do homem, inserido “sistemicamente”, como diria von Bertalanffy, nesse contexto global e universal. A evolução em todos os níveis  e abrangências  conta com os mecanismos da agregação, da repetição geométrica, complexificação e compressão, como responsáveis  pela infinita diversidade e níveis que se observam na natureza. Com o acirramento da complexificação, acentua-se a compressão e com ela os níveis de consciência tornam-se cada vez mais perceptíveis e mais atuantes. Na primeira fase da evolução predominou a diversificação – os meridianos do globo terrestre ilustram essa dinâmica – na segunda acentua-se a compressão, até que tudo seja subsumido num único polo de convergência – o “ômega”. 

Os processos responsáveis por essa dinâmica, além dos seus resultados são explicáveis pela evolução natural. Há, porém, três momentos nessa história de bilhões de anos em que os acontecimentos se complicam. São situações limite em que qualquer cientista isento e sem preconceitos pergunta: o meu arsenal metodológico e conceitual está, de fato, em condições de dar uma resposta que convença, ou devo remeter essa tarefa a uma outra instância que dispõe dos instrumentos adequados para lidar com o problema? Os três momentos críticos são, para repeti-los de novo: o primeiro, a origem da energia, a matéria prima, “o estofo” do universo; o segundo, o surgimento da vida com suas características de “sistema aberto”, alimentando-se, locomovendo-se e reproduzindo-se e orientando-se por instinto; o terceiro, a hominização que equipou o cérebro do homem com a inteligência racional. Não é aqui a ocasião para requentar essa discussão a nível genérico. Nosso interesse resume-se no caminho que Teilhard escolheu para lidar com o problema. Fiel ao propósito de enfrentar essas questões  intrincadas ao nível da evolução natural, espera-se que não remeta a explicação a algum “design inteligente”, ou, o que ninguém estranharia, jesuíta que era, declarar que as Ciências Naturais não têm como dar uma resposta conclusiva, restando a Criação como solução. Optou pela saída de qualquer cientista honesto. Lidando com esse tipo de desafios como sendo hipóteses, e nada mais. É o que ele deixa claro  ao introduzir o capítulo primeiro do “Fenômeno Humano”, com o titulo “O Estofo do Universo.

O estofo do universo: esse resíduo último das análises sempre mais minuciosas da Ciência ... Não desenvolvi com esta, para saber descrevê-lo dignamente, aquele contato direto, familiar, que faz toda a diferença entre o homem que leu e o homem que experimentou. E sei também do perigo que existe em tomar, como materiais de uma construção que se desejaria duradoura, hipóteses que, na própria mente daqueles que as propõem, não devem durar mais do que uma manhã. 

Em compensação sobre a variedade de teorias que se vão amontoando umas sobre as outras, surge um certo número de caracteres que reaparecem obrigatoriamente em qualquer uma das explicações propostas para o universo. E dessa “imposição” definitiva, na medida que ela exprime condições inerentes a toda a transformação natural, mesmo viva, que deve necessariamente partir e que pode decentemente falar o naturalista empenhado num estudo geral do Fenômeno Humano. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 41)

Pelo visto Teilhard atribui ao “estofo” do universo as potencialidades necessárias para que a evolução em geral pudesse acontecer, inclusive “gerar a vida”. Fica claro, entretanto que se apoiam em hipóteses “que não devem durar mais do que uma manhã”. Como cientista não se preocupa em especular, ou propor mais um palpite, mais uma hipótese que “não dura mais do que um manhã”, sobre a origem e natureza do “estofo” do universo. Prefere adotar a linha de raciocínio ditada pelo fato objetivo de que a natureza evolui e se transforma. Trabalha com o pressuposto de que no “estofo” do universo encontram-se em potencial, desde  a sua origem, os elementos e mecanismos que no decorrer de bilhões de anos, levaram pela evolução, ao que hoje presenciamos no macrocosmos, no microcosmos e no nanocosmos. No entender de Teilhard, essa gigantesca construção, tanto no tamanho, quanto na diversidade foi possível, porque  o “estofo” primordial previa a agregação, a repetição geométrica, a complexificação e a compressão como ferramentas que permitiram que a consciência se manifestasse em níveis cada vez mais aperfeiçoados. Mas no fundo, no fundo, o panorama da evolução vai sendo desenhado por um plano, que orienta o rumo e permite supor uma razão de ser e não apenas uma mera casualidade. O “alfa” como ponto de partida, a diversificação e a complexificação e, finalmente, a compressão, para terminar no “ômega”, levam à conclusão de que o autor supõe uma teleologia, responsável para que a dinâmica não se desgarre do caminho traçado. Somente aceitando uma teleologia entende-se a evolução global, acontecendo entre os dois polos, o “alfa” como ponto de partida  o “ômega” como ponto de chegada.

O potencial contido no “estofo” do universo materializou-se  na complexa realidade que vem a ser o mundo anorgânico e o orgânico não vivo. Sua pedra angular é o átomo. Multiplicando-se quantitativa e qualitativamente por agregação, por repetição geométrica, por complexificação e por compressão, levou ao nível em que, ( ... ) é perfeitamente concebível que um salto essencial seja possível entre dois estados ou formas, mesmo inferiores, de consciência. Para retomar e resolver, nos seus próprios termos, a dúvida anteriormente formulada, há efetivamente, eu direi, muitas maneiras diferentes de um ser possuir um Dentro. Uma superfície fechada, de início irregular, pode-se tornar centrada. Um círculo pode aumentar sua ordem de simetria tornando-se uma esfera. Quer pela ordenação as partes, quer pela aquisição de uma dimensão a mais, nada impede que o grau de interioridade próprio de um elemento cósmico possa variar a ponto de se elevar bruscamente a um novo escalão. 

Ora semelhante mutação psíquica deve ser precisamente  acompanhada da descoberta da combinação celular, eis que resulta imediatamente da lei que, conforme atrás reconhecemos, regula em suas relações mútuas o Dentro e o Fora das coisas. Acréscimo da Matéria: portanto correlativamente  diríamos, aumento de consciência no meio sintetizado. Transformação “critica” no arranjo íntimo dos elementos, devemos acrescentar agora:  logo, “ipso facto”, mudança de “natureza” no estado de consciência do Universo.

E agora consideremos novamente à luz destes princípios, o assombroso espetáculo apresentado pela eclosão definitiva da Vida na superfície da Terra Juvenil. Esse ímpeto para frente na espontaneidade. Esse luxuriante desencadeamento de criações fantásticas. Essa expansão desenfreada. Esse salto no improvável ... Não será aí o acontecimento que a teoria nos permite esperar? A explosão da energia interna consecutiva e proporcionada a superorganização fundamentada da Matéria?

Realização externa de um tipo essencialmente novo ao agrupamento corpuscular, permitindo a organização mais flexível e melhor centrada de um número ilimitado de substâncias tomadas e em todos os graus de grandeza particulares; e, simultaneamente, aparecimento interno de um novo tipo de atividade e de determinações conscientes: por essa dupla e radical metamorfose podemos razoavelmente definir, naquilo que ela tem de especificamente original, a passagem critica da Molécula para a Célula, - “o Passo da Vida”. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 91)