Chegamos
ao ponto de perguntar, como implantar na
prática um modelo de produção de alimentos
e outros insumos, em áreas pequenas de terra com o objetivo maior de
prover a população local ou regional, com uma alimentação acessível e de boa
qualidade. Para começo de conversa não insistimos que não passa de um
romantismo utópico pregar o retorno puro e simples à prática do modelo de
agricultura familiar de 100 e até menos anos passados. As tecnologias de lidar
com a terra evoluíram tornando a produção agrícola menos desgastante, mais
rentável e, por isso mesmo, em condições de atender às demandas de um número
crescente de pessoas. Enquanto os métodos de produção foram aperfeiçoados o
modelo da agricultura diversificada em
pequenas áreas de terra não foi prejudicada na sua importância como um dos pilares da
prosperidade, especialmente no que se refere à qualidade de vida que pode
proporcionar. De outra parte contribui com um poderoso potencial de geração de
postos de trabalho. A Encíclica destaca esse modelo com os benefícios que pode
oferecer:
Para se continuar a dar
emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação
produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma grande variedade de
sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam a alimentar a maior parte da população
mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e de água e produzindo menos
resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça (Laudato si, 129)
Alguns
pressupostos devem ser tomados em consideração no momento de por em prática um
projeto de desenvolvimento que tem como objetivo otimizar a produção de
alimentos e outros insumos, no modelo da pequena propriedade rural. Um deles
consistem em conquistar o interesse e apoio das autoridades públicas
responsáveis para assumir o ônus da infraestrutura que assegura a circulação de
pessoas e mercadorias da região para que um projeto dessa natureza pretende ser
implantado. São fundamentais estradas regionais, municipais e vicinais em boas
condições. Dependendo das características regionais facilitar o transporte
fluvial, o tratamento e distribuição de água potável, o tratamento dos esgotos,
linhas de financiamento para os pequenos agricultores e
horticultores; por à disposição dos produtores assistência técnica e
possibilidade de os jovens frequentarem escolas agrícolas, enfim, facilitar a
vida dos produtores de alimentos em vez de complicar-lhes a atividade por razões políticas e/ou sufocá-los por
interferências burocráticas que mais atrapalham e desanimam do que
favorecem a disposição de dar o melhor
de si dos pequenos produtores. Os entraves políticos e burocráticos em vez de
resolver o problema social dos jovens do meio agrícola os espantam e vão
engrossar o universo subempregado ou desempregado dos bairros periféricos,
infestados pela violência e as drogas. Posta nesses termos a questão,
pergunta-se por onde começar. Para começo de conversa um projeto dessa natureza
precisa cobrir uma área geoeconômica e social, por ex., a bacia de um rio e
dimensioná-lo e projetá-lo de acordo com as características geográficas,
climatológicas, edafológicas, demográficas, sociológicas e potencial econômico.
Como se pode perceber, requer-se, antes de mais nada um diagnóstico técnico dos
aspectos que acabamos de mencionar; uma criteriosa análise dos dados levantados
e a partir deles elaborar um projeto de desenvolvimento integrado da respectiva
região.
E,
para não ficar apenas em sugestões e considerações teóricas e abstratas,
permito-me chamar a atenção a um projeto de “Valorização do Vale do Rio dos
Sinos”, encabeçado pela direção e professores da então Faculdade de Ciências
Econômicas de São Leopoldo entre 1963 e 1970. A elaboração da proposta de um
projeto foi coordenada pelo então diretor da Faculdade Pe. Marcus Bach, o coordenador
prof. Alcides Giehl, o chefe do departamento de Economia, prof. Arthur
Rambo, pelo prof. Lenine Nequeti e o aluno Reinaldo Adams. A proposta foi
apresentada ao Governador do Estado Ildo Menegueti que o aprovou e recomendou
que fosse encaminhado ao titular da então Secretaria de Obras Públicas para as
devidas tramitações burocráticas. Ao mesmo tempo o então prefeito de São
Leopoldo, Clodomiro Martins, prometeu e de fato cumpriu a promessa de por à
disposição toda a colaboração que fosse da sua competência, tanto material
quanto técnico. Mas, há mais de 50 anos atrás, não se dispunham técnicos habilitados
para fazer um diagnóstico exaustivo e confiável das características geológicas,
biogeográficas, edafológicas, florestais e, de modo mais crucial, de técnicos
em Hidrologia. Para as demais demandas a Faculdade de economia estava em
condições de recrutar especialistas à altura dos desafios, dentre de seu corpo
docente e/ou de fora dele. Na introdução do projeto essa questão foi
devidamente destacada.
Em face das manifestações
daquela alta autoridade e das circunstâncias expostas, sente-se a Faculdade
animada a continuar os estudos atinentes, para que está capacitada, pelo nível
de conhecimentos de seus integrantes. Todavia, pela dificuldade existente na
América do Sul, de contar com técnicos experientes em hidrografia, toma a
iniciativa de recorrer, quanto ao aspecto da regularização do rio, à “Ajuda
Técnica” do Governo da República Federal da Alemanha. (Projeto para
Planejamento, p. 2)
Na
época a RFA financiava projetos de desenvolvimento regional em países em
desenvolvimento na África, América Latina e outros continentes. Para
executá-los contratava os serviços da
empresa de desenvolvimento regional “Agrar und Hydrotechnik”, sediada em
Düsseldorf. Para ter acesso a essa ajuda técnica foi preciso firmar um convênio
a nível federal entre os governos do Brasil e da RFA, através do Itamarati. A
tramitação foi surpreendentemente rápida e o acordo de colaboração foi firmado
em questão de meio ano. O governo da Alemanha contratou a “Agrar und Hydrotechnik”
e em julho de 1964 um representante do
governo alemão e outro da empresa contratada, passaram o mês de julho
percorrendo o Vale do Sinos, para avaliar in loco o tamanho e a extensão do
projeto. Como estávamos em férias escolares fui encarregado para acompanhar os
dois delegados para fazer contato com todas as prefeituras do Vale do Sinos,
desde Santo Antônio da Patrulha até Canoas e verificar in loco conjunto de
características da bacia do rio dos Sinos.
Tive assim o privilégio de tomar conhecimento de perto da realidade e
das características de todo o Vale do Sinos. Baseado nas conclusões do
relatório entregue ao governo alemão e a Agrar und Hydrotechnik, a empresa
reuniu uma equipe técnica para executar o projeto. Coube à Faculdade de
Ciências Econômicas providenciar moradias para os técnicos e esposas e a
Secretaria de Obras Públicas as despesas com o aluguel, combustível das duas
viaturas trazidas pela equipe técnica e uma viatura com motorista cedida pela Secretaria. O levantamento dos
dados e a elaboração da proposta feita por 10 técnicos de diversas
especialidades: engenheiro especialista em diques e barragens, geólogo,
agrônomo, economista, desenhista, etc. levou pouco mais de um ano (julho de
1967 a setembro de 1968). O relatório foi traduzido para o português e
exemplares distribuídos entre as instituições ligadas ao projeto: Secretaria de
Obras Públicas do Estado, Prefeituras do Vale do Sinos, Faculdade de Ciências
Econômicas e órgãos federais e estaduais
envolvidas direta e indiretamente no projeto. Um exemplar do relatório
encontra-se na biblioteca central da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e
outro na biblioteca municipal de São Leopoldo.
Em
resumo os objetivos do projeto de “valorização do vale do rio dos sinos”, foram
três como consta na proposta apresentada às autoridades locais, estaduais,
federais e ao governo da RFA.
1.
A
valorização do homem através de instituições de assistência educacional,
profissional e de saúde pública.
2.
O
melhoramento do meio, com a retificação do rio, e em consequência, o saneamento
de zonas insalubre, a recuperação e terras não aproveitadas, a melhoria do
transporte fluvial e rodoviário, em suma: a valorização das terras do vale a melhoria das condições de higiene popular.
3.
O
aumento e a melhoria da produção agropastoril, para que a região seja um
fornecedor potencial de gêneros alimentícios do grande centro consumidor na sua
vizinhança.
A
execução do plano deverá assegurar entre outros aspectos da região em causa:
1.
A
melhora da saúde pública;
2.
Orientação
e assistência profissional aos agricultores;
3.
A
vivificação das atividades rurais, que assegurará aumento de renda aos
agricultores além de tornar a atividade agrícola mais atraente, e em
consequência a retenção de muitos jovens nesse setor de produção, assegurando-lhe
vagas de trabalho atrativas;
4.
A
recuperação de dezenas de milhares de hectares não cultivados;
5.
Tornar
produtivos outros tantos hectares passíveis de irrigação;
6.
Aperfeiçoar a rede
de transporte e ampliá-la com a abertura de novas estradas vicinais,
municipais, estaduais e federais;
7.
Melhorar
a vida das populações periféricas dos centros urbanos e disciplinar a formação
de novos bairros em consequência da migração do campo para as áreas urbanas;
8.
Abastecer
Porto Alegre e demais cidades da área metropolitana com gêneros alimentícios,
sobretudo hortigranjeiros. (cf. Projeto de valorização do Rio dos Sinos, p. 26)
O
primeiro item refere-se ao duplo desafio
de abastecer a população com água potável e, ao mesmo tempo, resolver o
problema do tratamento e destino
adequado do esgoto, tanto doméstico quanto industrial. Tomando como base
as estatísticas disponíveis os técnicos e hidrologia da equipe projetaram para
médio prazo, excluindo Porto Alegre, uma população de cerca de 1.500.000
pessoas habitando as áreas urbanas do Vale do Sinos. Tomando ainda com base que
cada pessoa demandaria 300 litros de água por dia, propuseram uma solução
tecnicamente viável de abastecimento de todo o vale a partir de um única
estação de tratamento implantada no rio
Paranhana, na altura de Três Coroas. Acontece que no local já existe uma
barragem no dito rio, com pequena capacidade de armazenamento. A configuração
do vale permitiria um reforço e uma ampliação da represa com capacidade para
abastecer com água potável os municípios localizados a jusante, incluindo
Canoas, por meio de uma única estação de tratamento junto à barragem.
Valendo-se do declive ininterrupto em toda a extensão do vale uma tubulação
central levaria a água tratada de Três Coroas até Canoas, sem necessidade de cada
município providenciar, administrar e fazer a manutenção de uma estação de
tratamento própria. No momento em que a demanda ultrapasse a capacidade do
Paranhana uma central de tratamento no rio Rolante e outra no curso superior do
Sinos, solucionariam o problema de água portável dos centros urbanos em
contínuo crescimento de todo vale do rio. As barragens serviriam também, se
projetadas para tanto, para regular o fluxo do rio em períodos de excesso de
chuva e risco de enchente.
Infelizmente
essa possibilidade de abastecimento central de água colidiu com a visão
bairrista e a miopia somados a interesses políticos, não digo de todos, mas de
boa parte dos prefeitos e lideranças e o projeto mofa até hoje apenas no papel.
Quanto ao saneamento básico as sugestões deixadas pela equipe técnica também
não foram levadas a sério como deveriam. Realizou-se assim prognóstico de que,
da maneira como costumava ser tratado esse pré-requisito para lidar com a saúde
pública, transformaria em questão de algumas décadas o Rio dos Sinos numa
autêntica cloaca. Infelizmente as recomendações não foram levadas a sério na
medida e no grau em que a gravidade o exigia. Nem as autoridades públicas
tomaram medidas corretivas e preventivas, nem os donos de curtumes, indústrias
químicas e demais responsáveis por todo o tipo de poluição levaram a sério o
prognóstico dos técnicos. Da parte das autoridades públicas municipais,
estaduais e federais não se criaram códigos legais, regulamentações eficazes e
a devida fiscalização para impedir que a poluição das fontes, córregos, arroios
e os afluentes maiores do rio dos Sinos, despejassem direta ou indiretamente no
rio os efluentes poluidores que se avolumavam na medida em que a população
crescia e a industrialização avançava. E assim assistimos a um quadro pouco
animador diante do tratamento precário dos dejetos urbanos o descarte puro e simples nos arroios e
afluentes ou espalhados e acumulados em terrenos baldios. Tudo termina de
alguma forma sobrecarregando o rio e seu leito, com repercussões sobre a
qualidade da água do Guaíba e da Lagoa dos Patos. O resultado não poderia ser
outro. O rio, pelo menos a jusante de Rolante e Taquara, não passa de uma
cloaca que se vai agravando na medida em
que se aproxima de Porto Alegre. Na altura do Zoológico, há 50 anos passados
pescavam-se peixes nobres como o dourado. Hoje, esse rio não raro consta nos
noticiários, inclusive nacionais pela mortandade de toneladas de peixes vítimas
dos dos dejetos despejados no rio sem um mínimo cuidado e fiscalização. O
tratamento de sua água para o abastecimento da população, apesar de todo alarde
da boa qualidade, na verdade chegou a um ponto crítico e quem lucra são as
empresas que engarrafam água “mineral” que, por sua vez, de “mineral” ou da
“fonte” não inspira grande confiança. Neste particular o alerta deixado pelos
técnicos alemães com as propostas concretas de solução de 50 anos passados,
continuam esquecidas nas gavetas da burocracia oficial e tropeçando na voragem
de uma industrialização em grande parte egoísta e predatória.