O que a Encíclica acaba de apontar resume-se numa
concepção visceralmente equivocada, para não dizer perversa, de que homem e a
natureza são duas realidades ontologicamente distintas e em inevitável
competição. Esse “paradigma homogêneo e unidimensional” entra em conflito com
as evidências e conclusões vindas das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito,
das Ciências Humanas, Línguas e Artes. Pelo contrário, a humanidade como
qualquer outra espécie viva é mais um rebento da mesma e gigantesca árvore do
universo e da natureza, de enorme complexidade, de alta resolução e finamente
calibrada. Afinal, “Adam – O Homem, é o nascido da terra”, e como tal suas
raízes, suas características e sua própria razão de ser, como de qualquer outra
espécie viva, devem ser buscadas na natureza que o “gerou”. Os fatos estão aí e
dispensam argumentos científicos e raciocínios complicados. Começam pelo fato
de que a matéria-prima que entra nas estruturas químico-físicas do organismo do
homem é a mesma que pode ser encontrada na natureza mineral. Provam-nos os
resíduos que sobram depois da cremação de um corpo, seja de um animal ou de um
humano. Para lá de dois terços do peso foi água, e evaporou, do que sobrou,
mais de noventa por cento são compostos de carbono, e nas cinzas restante podem
ser identificados em torno de duas dúzias de minerais, todos constantes na
tábua periódica dos elementos e entram na composição da natureza inorgânica e
orgânica. Estão presentes também em todos os seres vivos, desde os unicelulares
mais simples até os vertebrados mais complexos. Nada mais acertado do que
afirmar que o homem, quanto ao seu organismo biológico é feito do mesmo “pó da
terra” que o do mundo mineral, orgânico e vivo. “Memento homo quia pulvis es et
in pulvere revertebis – Lembra-te homem que és pó e ao pode voltaras”,
admoestava a liturgia, quando da aplicação das cinzas na quarta-feira depois do
carnaval.
Passando agora para o plano do funcionamento dos
organismos, outro dado faz pensar. Os processos fisiológicos que garantem a
sobrevivência dos indivíduos e da espécie humana são, na sua natureza, os
mesmos que são responsáveis, que asseguram o bom andamento das funções vitais
de um micro-organismo. Desde aqueles seres vivos, aparentemente tão sem
importância, passando por todos os estágios intermediários da ascensão da vida,
para culminar no auge da complexidade dos animais e do próprio homem, os processos
fisiológicos são comandados pelo genoma de cada um. A engenhosidade desse
código, ao mesmo tempo complexo e simples, capaz de se autoduplicar
indefinidamente, suscetível a modificações induzidas pelas variações das
condições ambientais, explica, de um lado, a sobrevivência dos indivíduos e a
continuidade da espécie e, do outro, sua transformação e, consequentemente, a
evolução. Por essas suas características, o código genético confere à natureza,
uma radical unidade pela base, ao mesmo temo em que permite sua manifestação numa
incontável variedade formas, tamanhos e cores e ninguém, de são razão, hesita
em incluir a espécie humana nessa dinâmica. Acontece, porém que, em se tratando
do homem, lidamos com uma espécie que transcende radicalmente o nível
biológico que marca a fronteira entre os
demais. Dotado de inteligência reflexa faz com que se estabeleça uma relação
com o meio ambiente que supera essencialmente aquela ditada pelo instinto. Embora
haja muito de instintivo no comportamento humano na relação com o meio ambiente,
não se pode ignorar que isso prova que o homem continua com as raízes
biológicas fincadas ontologicamente, ou, se preferirmos, existencialmente no
entorno químico, físico, orgânico e vivo. Os
estímulos oriundos desse substrato, constituem-se na matéria prima que
induz, da parte da inteligência reflexa, respostas que já não são instintivas. Entendida
dessa forma a inserção do homem na natureza, deduz-se logicamente que ele não
tem condições mínimas de subsistir sem a natureza, enquanto a natureza existe e
subsiste tranquilamente sem o homem. (cf. Rambo, 2017, p. 17-18)
As considerações que acabamos de registrar apontam
para uma série de questões que fazem parte recorrente das preocupações do Papa
na sua Encíclica.
Desde que a humanidade existe sempre aconteceu de
alguma forma uma intervenção na natureza. Durante o período anterior à Revolução
dos Alimentos as agressões ao meio
ambiente pelos coletores e caçadores, era insignificante facilmente absorvida e
neutralizada pela própria natureza. A agricultura e o pastoreio mudaram
profundamente e irreversivelmente essa situação. Os ecossistemas naturais foram
dando espaço crescente aos ecossistemas humanizados principalmente pelo avanço
da agricultura. O manejo da terra somado à seletividade das plantas cultivadas
e o pastoreio concentrado em poucas espécies, fez as demais a procurarem
refúgios em outra parte. Espécies de vegetais e animais dotados de um baixo
potencial de adaptação, foram-se
extinguindo. Mesmo assim os progressos nas tecnologias de confecção de
instrumentos, ferramentas e o conhecimento de como funciona a natureza e de
como melhor apropriar-se dos seus recursos, não afetou, na sua base, a relação
de parceria entre o homem e seu meio geográfico.
“Sempre se verificou a
intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a
característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas
próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si
permitia, como que estendendo a mão” (Laudato Si, 106)
Mas, as conquistas tecnológicas e o seu potencial
de apropriar-se dos recursos naturais, muniu o homem de um poder sobre “a sua
casa” que faz crescer nele, a cada dia
que passa, a sensação, para não dizer convicção, de que de parceiro da natureza
passou a ser seu dono. Essa guinada de
180º trouxe consigo um outro efeito de
difícil avaliação sobre a realização do humano no homem. As realidades naturais
não “úteis”, relegadas ao um segundo plano,
simplesmente ignoradas e até
vistas como empecilhos do progresso, deixaram de ser a fonte mais importante e
mais rica para alimentar os sentimentos, as emoções, a imaginação, os sonhos,
as intuições, indispensáveis para a realização da harmonia do racional com sede
no cérebro e o autenticamente humano com
sede no coração. Essa situação afetou, subverteu e arquivou nos museus da
história uma relação muitas vezes milenar do homem existencialmente
comprometido com a “sua casa”, “sua mãe e pátria”, “sua querência”, a Natureza.
O resultado dessa miragem, desse engodo da tecnológica pode ser observada em
todos os setores da vida individual e coletiva. É de se perguntar quais as
fontes de inspiração do artista, do poeta, do músico, do cantor? Onde o
romancista vai buscar as metáforas para dar vida e o real sentido aos seus
personagens e o cenário em que são os protagonistas? A resposta a essas e
muitas outras perguntas que angustiam as pessoas mais simples, cientistas de
referência no progresso científico, tecnólogos conscientes do potencial
construtivo e destrutivo de seus produtos de ponta, filósofos preocupados com a
humanidade do presente o que a espera no futuro, os teólogos de fato empenhados
em acertar o passo com a marcha da Ciência e Tecnologia, encontram-se condensado numa frase curta do Papa, tanto a
razão quanto o tamanho do desafio que enfrentam. “Por isso, o ser humano e as
coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes”
(Laudato si, 106) Essa clivagem
desastrosa tem o poder de transformar o
homem num predador sem freios dos recursos naturais, extraindo o máximo
possível das reservas de matérias primas, sem tomar em consideração as
consequências desastrosas que já se fazem anunciar e a médio e longo prazo
podem comprometer a própria viabilidade da espécie humana. Os sinais de alerta
piscam e soam em inúmeras formas pelo planeta afora. As mudanças climáticas
são, por enquanto, a sirene mais estridente neste cenário. Movimentam os donos
e detentores do poder geopolítico, geoeconômico e geoestratégico além de
organizações não governamentais que, de tempos em tempos, organizam um espetáculo
para mascarar, frente ao grande público, intenções não confessadas ou não confessáveis,
para não dizer hipócritas, em relatórios e acordos inócuos assinados com estardalhaço
por mais de uma centena de países. Mas, já nos referimos mais acima a esse viés
da questão ecológica e, para não sermos redundantes, passemos a refletir sobre um outro
desdobramento do problema.
Parece oportuno e esclarecedor chamar a atenção ao
imediatismo, oportunismo, relativismo e
outros ismos característicos da pós-modernidade. A Encíclica resume
magistralmente o cenário que resulta dessa realidade.
Daqui passa-se facilmente à
ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tantos entusiasmou os
economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da
disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até o
limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma
quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua
regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações
da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (Laudato si, 106)