REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 62


O que a Encíclica acaba de apontar resume-se numa concepção visceralmente equivocada, para não dizer perversa, de que homem e a natureza são duas realidades ontologicamente distintas e em inevitável competição. Esse “paradigma homogêneo e unidimensional” entra em conflito com as evidências e conclusões vindas das Ciências Naturais, das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, Línguas e Artes. Pelo contrário, a humanidade como qualquer outra espécie viva é mais um rebento da mesma e gigantesca árvore do universo e da natureza, de enorme complexidade, de alta resolução e finamente calibrada. Afinal, “Adam – O Homem, é o nascido da terra”, e como tal suas raízes, suas características e sua própria razão de ser, como de qualquer outra espécie viva, devem ser buscadas na natureza que o “gerou”. Os fatos estão aí e dispensam argumentos científicos e raciocínios complicados. Começam pelo fato de que a matéria-prima que entra nas estruturas químico-físicas do organismo do homem é a mesma que pode ser encontrada na natureza mineral. Provam-nos os resíduos que sobram depois da cremação de um corpo, seja de um animal ou de um humano. Para lá de dois terços do peso foi água, e evaporou, do que sobrou, mais de noventa por cento são compostos de carbono, e nas cinzas restante podem ser identificados em torno de duas dúzias de minerais, todos constantes na tábua periódica dos elementos e entram na composição da natureza inorgânica e orgânica. Estão presentes também em todos os seres vivos, desde os unicelulares mais simples até os vertebrados mais complexos. Nada mais acertado do que afirmar que o homem, quanto ao seu organismo biológico é feito do mesmo “pó da terra” que o do mundo mineral, orgânico e vivo. “Memento homo quia pulvis es et in pulvere revertebis – Lembra-te homem que és pó e ao pode voltaras”, admoestava a liturgia, quando da aplicação das cinzas na quarta-feira depois do carnaval.

Passando agora para o plano do funcionamento dos organismos, outro dado faz pensar. Os processos fisiológicos que garantem a sobrevivência dos indivíduos e da espécie humana são, na sua natureza, os mesmos que são responsáveis, que asseguram o bom andamento das funções vitais de um micro-organismo. Desde aqueles seres vivos, aparentemente tão sem importância, passando por todos os estágios intermediários da ascensão da vida, para culminar no auge da complexidade dos animais e do próprio homem, os processos fisiológicos são comandados pelo genoma de cada um. A engenhosidade desse código, ao mesmo tempo complexo e simples, capaz de se autoduplicar indefinidamente, suscetível a modificações induzidas pelas variações das condições ambientais, explica, de um lado, a sobrevivência dos indivíduos e a continuidade da espécie e, do outro, sua transformação e, consequentemente, a evolução. Por essas suas características, o código genético confere à natureza, uma radical unidade pela base, ao mesmo temo em que permite sua manifestação numa incontável variedade formas, tamanhos e cores e ninguém, de são razão, hesita em incluir a espécie humana nessa dinâmica. Acontece, porém que, em se tratando do homem, lidamos com uma espécie que transcende radicalmente o nível biológico  que marca a fronteira entre os demais. Dotado de inteligência reflexa faz com que se estabeleça uma relação com o meio ambiente que supera essencialmente aquela ditada pelo instinto. Embora haja muito de instintivo no comportamento humano na relação com o meio ambiente, não se pode ignorar que isso prova que o homem continua com as raízes biológicas fincadas ontologicamente, ou, se preferirmos, existencialmente no entorno químico, físico, orgânico e vivo. Os  estímulos oriundos desse substrato, constituem-se na matéria prima que induz, da parte da inteligência reflexa, respostas que já não são instintivas. Entendida dessa forma a inserção do homem na natureza, deduz-se logicamente que ele não tem condições mínimas de subsistir sem a natureza, enquanto a natureza existe e subsiste tranquilamente sem o homem. (cf. Rambo, 2017, p. 17-18)

As considerações que acabamos de registrar apontam para uma série de questões que fazem parte recorrente das preocupações do Papa na sua Encíclica.

Desde que a humanidade existe sempre aconteceu de alguma forma uma intervenção na natureza. Durante o período anterior à Revolução dos Alimentos  as agressões ao meio ambiente pelos coletores e caçadores, era insignificante facilmente absorvida e neutralizada pela própria natureza. A agricultura e o pastoreio mudaram profundamente e irreversivelmente essa situação. Os ecossistemas naturais foram dando espaço crescente aos ecossistemas humanizados principalmente pelo avanço da agricultura. O manejo da terra somado à seletividade das plantas cultivadas e o pastoreio concentrado em poucas espécies, fez as demais a procurarem refúgios em outra parte. Espécies de vegetais e animais dotados de um baixo potencial de adaptação, foram-se  extinguindo. Mesmo assim os progressos nas tecnologias de confecção de instrumentos, ferramentas e o conhecimento de como funciona a natureza e de como melhor apropriar-se dos seus recursos, não afetou, na sua base, a relação de parceria entre o homem e seu meio geográfico.

“Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão” (Laudato Si, 106)

Mas, as conquistas tecnológicas e o seu potencial de apropriar-se dos recursos naturais, muniu o homem de um poder sobre “a sua casa” que faz  crescer nele, a cada dia que passa, a sensação, para não dizer convicção, de que de parceiro da natureza passou a ser seu dono. Essa  guinada de 180º  trouxe consigo um outro efeito de difícil avaliação sobre a realização do humano no homem. As realidades naturais não “úteis”, relegadas ao um segundo plano,  simplesmente  ignoradas e até vistas como empecilhos do progresso, deixaram de ser a fonte mais importante e mais rica para alimentar os sentimentos, as emoções, a imaginação, os sonhos, as intuições, indispensáveis para a realização da harmonia do racional com sede no cérebro  e o autenticamente humano com sede no coração. Essa situação afetou, subverteu e arquivou nos museus da história uma relação muitas vezes milenar do homem existencialmente comprometido com a “sua casa”, “sua mãe e pátria”, “sua querência”, a Natureza. O resultado dessa miragem, desse engodo da tecnológica pode ser observada em todos os setores da vida individual e coletiva. É de se perguntar quais as fontes de inspiração do artista, do poeta, do músico, do cantor? Onde o romancista vai buscar as metáforas para dar vida e o real sentido aos seus personagens e o cenário em que são os protagonistas? A resposta a essas e muitas outras perguntas que angustiam as pessoas mais simples, cientistas de referência no progresso científico, tecnólogos conscientes do potencial construtivo e destrutivo de seus produtos de ponta, filósofos preocupados com a humanidade do presente o que a espera no futuro, os teólogos de fato empenhados em acertar o passo com a marcha da Ciência e Tecnologia, encontram-se  condensado numa frase curta do Papa, tanto a razão quanto o tamanho do desafio que enfrentam. “Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes” (Laudato si, 106)    Essa clivagem desastrosa tem o poder de transformar  o homem num predador sem freios dos recursos naturais, extraindo o máximo possível das reservas de matérias primas, sem tomar em consideração as consequências desastrosas que já se fazem anunciar e a médio e longo prazo podem comprometer a própria viabilidade da espécie humana. Os sinais de alerta piscam e soam em inúmeras formas pelo planeta afora. As mudanças climáticas são, por enquanto, a sirene mais estridente neste cenário. Movimentam os donos e detentores do poder geopolítico, geoeconômico e geoestratégico além de organizações não governamentais que, de tempos em tempos, organizam um espetáculo para mascarar, frente ao grande público, intenções não confessadas ou não confessáveis, para não dizer hipócritas, em relatórios e acordos inócuos assinados com estardalhaço por mais de uma centena de países. Mas, já nos referimos mais acima a esse viés da questão ecológica e, para não sermos redundantes,  passemos a refletir sobre um outro desdobramento do problema.

Parece oportuno e esclarecedor chamar a atenção ao imediatismo, oportunismo,  relativismo e outros ismos característicos da pós-modernidade. A Encíclica resume magistralmente o cenário que resulta dessa realidade.


Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tantos entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até o limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (Laudato si, 106)

REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 61


A vertigem de preencher a ausência do humanismo no seu sentido pleno, induz no homem uma perigosa consciência de sua superioridade, de sua capacidade ilimitada de penetrar sempre mais fundo nos segredos do universo, da natureza e do homem. A minoria humana que domina técnica e economicamente as ferramentas do avanço científico e do progresso, termina por concentrar em suas mãos um poder ilimitado. “Não podemos, porém, ignorar que  a energia nuclear, a biotecnologia, a informática e o conhecimento do nosso DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder tremendo” (Laudato si  104) O exercício do poder, também com esses instrumentos, abre dois caminhos para exerce-lo. De um lado direcionar as conquistas científicas e tecnológicas para melhorar as condições básicas para assegurar uma vida digna ao maior número possível de pessoas. E, de outro lado, usá-las como instrumentos de poder, de dominação, do enriquecimento astronômico de uma parcela insignificante da humanidade, condenando a grande maioria ao abandono a si mesmos, e ao temor de caírem vítimas do assim chamado progresso tecnológico. Romano Guardini em sua obra “Das Ende der Neuzeit” (O fim da modernidade), publicado em 1965 em Wùrzburg), p. 87 chama atenção para essa armadilha implícita na própria natureza do avanço da tecnologia: “Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores”. (cf. Lauato si, 105).

Essa tendência sofre de um mal de raiz, a falta de ética, que é o elemento que garante “a coerência elementar entre meios e fins” (Caldera, 2004, p.15). Com isso “o século XXI inicia com uma profunda orfandade moral. A ausência do humanismo trata-se de preencher com a tecnologia, a eficiência e a vertigem da vida contemporânea”. (Caldera 2004 p. 15). E o pensador que acabamos de citar conclui:  “O grande desafio do nosso tempo é a reconstrução da unidade despedaçada, a reunificação dos pedaços dispersos da existência: a vida e o trabalho, a imaginação e a realidade, a ilusão e a desesperança, a paixão e a razão, a liberdade e a igualdade”. (Caldera, 2004, p. 16). Já o matemático árabe Al-kwarizimi do século IX colocou a ética como condição para que qualquer condição humana, ou qualquer valor de fato tenha consistência, quando, refletindo sobre a vida humana, deixou anotado: “Se tiveres ética és 1; se também fores inteligente és 10; se fores rico és 100; se fores belo és 1000. Mas, se perderes o 1, és 0”. Transferida para a Pós-Modernidade, com todo o seu impressionante arsenal tecnológico, é lícito acrescentar ao raciocínio do sábio de Bagdad o Poder e com ele mais um 0. Sem o “1” representando a ética o resultado não passa de um “0”. Acontece que nas reflexões que antecederam já insistimos à saciedade sobre este “1” ou a Ética ou, se preferirmos, a Moral, como pressuposto para uma saída do “imbróglio” em que a Ciência e Tecnologia se meteu ao endeusar o “progresso” em que o século XXI mergulhou a humanidade.

O poder inquestionável concentrado nas mãos de uma minoria, pode originar a falsa convicção de que “toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem estar, de força vital, de plenitude de valores”. (Guardini, 1965). O Papa acrescenta “como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia”. (Laudato si, 105). Essas observações apontam para um outro desafio de proporções difíceis de avaliar. Referimo-nos ao descompasso entre o gigantesco desenvolvimento e potencialidade de Ciência e Tecnologia e a formação das pessoas e, principalmente às que cabe orientar o uso dos resultados que se multiplicam e aperfeiçoam a cada dia que passa. Esse descompasso tem a sua causa no como os tecnólogos e os beneficiados dos resultados, concebem a relação do homem com a natureza. Na fase da coleta, da caça, da pesca e de outras modalidades de sobrevivência, a humanidade, por assim dizer, vivia à mercê das circunstâncias geográficas em que vivia e sobrevivia. Seu futuro, sua prosperidade, sua sobrevivência, dependiam de um mínimo de recursos disponíveis na natureza. Se por eventualidades naturais esse mínimo chegava a faltar, as consequências resumiam-se em duas alternativas: ou migrar em busca desses bens naturais em outra parte ou, em casos extremos, a morte de grupos inteiros por inanição. A mãe natureza ou a madrasta natureza decidia o rumo da história da humanidade até em torno dos 20000 anos passados. Em toda essa jornada de séculos e milênios falar em parceria do homem com o meio ambiente não faz sentido. A sobrevivência acontecia na mais completa dependência, para não falar em escravatura em relação com o meio geográfico.

Com entrada da agricultura e da criação de animais, melhor o pastoreio, que marca a “Revolução dos Alimentos”, no entender de Darcy Ribeiro ou no entender de Edward Wilson, na “Primeira Traição à Natureza” e inaugura-se uma nova relação do homem com a “sua casa”. As características dessa nova relação e sua evolução histórica já forma objeto de reflexões mais acima. Aqui vale destacar o mais fundamental dessa “revolução”. As tecnologias agrícolas e de pastoreio além do inegável progresso em todos os sentidos dos seus detentores, consolidou uma nova relação com a ”Mãe Natureza”, uma relação de parceria e não subordinação. O papa na sua Encíclica a resumiu em poucas linhas.

“Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundo as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendo a mão”. (Laudato si, 106)

E o que é mais importante de tudo é que no decorrer da Revolução Agrícola consolidou-se um paradigma civilizatório fundamentado em valores éticos, normas de convivência, regras de conduta pessoal e coletiva, valores familiares, disciplinamento do exercício da liberdade e do acesso aos recursos naturais, a autoridade e o poder como instrumentos indispensáveis para a harmonia e o bom funcionamento da sociedade. É evidente que na prática ocorreram aberrações, usurpações e abusos do poder Econômico e político e a realização de uma sociedade ou estado perfeito só prosperou na cabeça dos utópicos. Também neste contexto vale o ditado: “Onde há homens age-se de forma humana” – “Wo Menschen sind geht es menschlich zu”. Não por acaso que o Romantismo  viveu o seu maior brilho no final do século XVIII e começo do século IXX, portanto, na exuberância juvenil da Revolução Tecnológica que prometia uma nova era da história. O Romantismo  projetou seus ideais de uma sociedade humana edificada sobre os valores e regras de convívio humano de um passado posto em xeque pela entrada triunfal da modernidade turbinada pelas tecnologias que se multiplicavam e aperfeiçoavam a cada dia que passava. O Romantismo pode ser resumido, salvo melhor juízo, como um sonho da recuperação de um paraíso perdido mas não esquecido. Mas, não é aqui novamente o lugar para aprofundar essa temática que marcou tão profundamente o embate histórico entre o “novo” e o “passado”.

Dois séculos se passaram de então para cá. E neste período tão breve, considerando o total da história da humanidade, a relação do homem com a “sua casa” sofreu uma inversão completa. Da dependência da natureza em tudo para sobreviver, passou pela Revolução dos Alimentos alimentada pela agricultura e o pastoreio a partir de 15000 anos passados, caracterizada pela “parceria” entre o homem e o ambiente natural. A entrada em cena da máquina com suas infinitas modalidades desenvolvida de então até agora, o homem foi-se munindo em progressão geométrica das ferramentas para impor-se como senhor e usufrutuário incontestável dos recursos naturais. E o poder embutido nessa realidade esconde um risco potencial do mau uso dele em favor dos poucos que o detém em detrimento, para não dizer desgraça, dos muitos que  dependem deles. Mais acima já fizemos referência às consequências mais perturbadoras desse processo ou realidade, isto é, subversão ou o simples ignorar dos valores fundamentais que configuram o “humano no homem”. A relatividade ética e moral pela qual os fins justificam os meios, quaisquer que sejam e o uso sem freios da liberdade. “Cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder quando não existem normas de liberdade mas apenas pretensas necessidades de utilidade e segurança”. (Guradini, 1965, p. 87-88). Na Encíclica o Papa resumiu em poucas palavras a profundidade e a complexidade desse panorama, resumida por Edward Wilson como sendo a “segunda traição à natureza”.

Mas o problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional.  Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com sua experimentação que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. Como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. (Laudato si, 106-107).


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 60

Capítulo III

A raiz humana da crises ecológica

Neste terceiro capítulo da Encíclica detalha as causas determinantes que  levaram a agressão à  natureza ao ponto crítico que ora se encontra. Todas elas de forma direta ou indireta dizem respeito às ferramentas tecnológicas que moldaram e continuam moldando a fisionomia do modelo civilizatório em que, a esta altura, a humanidade como um todo se debate. Ninguém está imune aos seus efeitos positivos e/ou negativos. A essa  altura dos acontecimentos já não há mais “povos e rebanhos” como diria Nietszsche, mas uma gigantesca manada de mais de 7 bilhões de seres humanos tangidos em direção a um futuro de incerteza preocupante. Há milênios os antigos egípcios nos legaram a imortal imagem  esculpida em pedra da Esfinge de Gisé, encarando o deserto com seu rosto e olhar enigmático. Ressalvadas as devidas peculiaridades e características de duas épocas tão distantes uma da outra, o atual momento histórico sugere a metáfora  da esfinge como que representando a humanidade do começo do terceiro milênio, olhando perplexa para o futuro como um panorama imprevisível, se é que o futuro ainda conta alguma coisa na dinâmica do cenário  moldado pelo  “paradigma tecnocrático  dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e sua ação no mundo”. (Laudato si, 101). Em todo o caso parece pertinente a observação do filósofo Alexandro S. Caldera: “Toda a troca de século é como uma troca de pele. É chegar a uma situação-limite, a uma das fronteiras do tempo, para olhar o incerto horizonte do futuro”. E Maria Zambrano conclui: “O futuro é um Deus desconhecido”. (Caldera, 2004, p.46)

Tecnologia, criatividade e poder.
O Papa começa por reafirmar o pensamento que direta e indiretamente fundamenta as reflexões e considerações da Encíclica, legitimado por uma série de cientistas dos mais influentes do século XX e XXI nas respectivas especialidades, já referidos em outros momentos mais acima nas nossas reflexões. Partindo de perspectivas diferentes convergem para uma conclusão comum: A natureza vem a ser uma realidade de alta complexidade, altamente calibrada e de fina resolução. Os elementos e funções que a compõem são complementares formando um intrincado sistema, melhor, uma síntese na qual a subtração ou degradação de qualquer um dos componentes, por mais insignificante que possa parecer, danifica de alguma forma a estrutura e o bom funcionamento do todo.

Nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem os próprios átomos ou as partículas subatômicas se podem considerar separadamente. Assim como os vários componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos – estão relacionados entre si, assim também as espécies vivas formam uma trama que nunca acabaremos de individuar e compreender. (Laudato si, 138)

Partindo da concepção da natureza nesses termos, isto é, como uma gigantesca síntese, não há necessidade de raciocínios complicados para concluir que a mínima intervenção no sistema terminará em alguma repercussão no todo. Não são somente as catástrofes globais que no passado contado em milhões de anos desfiguraram até o irreconhecível a harmonia dessa síntese, como também perturbações de menor amplitude. Erupções vulcânicas, terremotos, tsunamis, a constante movimentação das placas tectônicas, abrem feridas e deixam cicatrizes na face do nosso planeta, na “nossa casa”. Arranhões passageiros e por vezes invisíveis limam e retocam, por assim dizer, constantemente seus desenhos e traços até nos detalhes imperceptíveis ao observador comum.

A esses fatores naturais vem somar-se a invasão planejada pelo homem, quando começou a povoar sempre mais espaços em busca do sustento para sua sobrevivência biológica e a satisfação das necessidades espirituais. Já refletimos, mais acima, sobre a dinâmica e as características dessa caminhada da humanidade desde que dispomos de dados objetivos fornecidos pela Paleoantropologia, a Etnografia, a Etnologia e a  História; como viviam e sobreviviam  os coletores, caçadores e pescadores primigênios; como se deu e quais seus efeitos com o começo e desenvolvimento da agricultura e do pastoreio ou “revolução dos alimentos, segundo Darcy Ribeiro, ou “a primeira traição à natureza, segundo Edward Wilson; como esse modelo civilizatório começou a ser substituído, a partir do século XVIII, pela “revolução tecnológica”, novamente um conceito de Darcy Ribeiro, ou pela “segunda traição à natureza”, no entendimento de Edward Wilson. Na introdução do III capítulo da Encíclica o Papa enuncia o panorama e o tamanho dos desafios que esperam, melhor exigem, senão uma solução definitiva pelo menos políticas, iniciativas e ações concretas que no mínimo melhorem o quadro de agressão à natureza.

Para nada serviria descrevermos sintomas, se não conhecêssemos a raiz humana da crise ecológica. Há um modo desordenado para conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até o ponto de arruiná-la. Não poderemos deter-nos a pensar nisto mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua ação no mundo. (Laudato si, 101)

A humanidade de hoje debate-se nas consequências dos últimos dois séculos em que a tecnologia com o seu potencial de “revolução” arquivou nos museus da história inúmeras conquistas das dezenas de milhares de anos que a antecederam. A máquina a vapor, a ferrovia, o telégrafo, a eletricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas, a medicina moderna, a informática, revolução digital, as bio e as nanotecnologias, o mapeamento do código genético humano e o de outros seres vivos, impactaram profundamente em conceitos como saúde física, mental e espiritual e, ao mesmo tempo ofereceram meios poderosos para melhorar a qualidade de vida em todos  os níveis. De outra parte ampliou ao indefinido o leque de oferta de bens destinados ao atendimento das necessidades básicas das pessoas. Resultou numa autêntica revolução no transporte de pessoas e mercadorias. O cenário de um mundo agrário e pastoril vai sendo invadido e substituído por concentrações humanas cada vez maiores, para terminar em dezenas de metrópoles e megalópoles em constante crescimento e multiplicação em todos os continentes. A transição das comunidades rurais para uma sociedade urbana vem acompanhada de uma radical ressignificação do conceito de família como instituição base de uma comunidade. Aliás num contexto urbano no sentido rigoroso do termo, não há mais lugar para formarem-se comunidades como a  tradicional na qual se consolida um compromisso solidário entre pessoas e famílias; em que o parentesco biológico e a vizinhança geográfica determinam deveres e direitos mútuos. Num contexto urbano o parentesco não passa de acidente biológico e a vizinhança de um acidente ou fatalidade geográfica. Neste contexto os critérios de relacionamento deslocam-se para outros níveis como associações, sociedades, clubes, funcionários de empresas de feitio semelhante, sindicatos, classe social, associações comerciais e industrias, e por aí vai. A revolução digital se encarrega para que a trama das relações humanas flua cada vez mais rápida e de melhor qualidade, nessa civilização em processo acelerado de globalização A tecnologia fornece  instrumentos cada vez mais eficazes aperfeiçoando e multiplicando em progressão geométrica suas modalidades e eficácia. De momento, pelo menos, não há previsão de limites para à essa dinâmica. O Papa observa que,

É justo que nos alegremos com estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos abrem estas novidades incessantes, porque a ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu. A transformação da natureza para fins úteis é uma característica do gênero humano, desde os seus primórdios; e assim a técnica exprime a tensão do ânimo humano para uma gradual superação de certos condicionamentos materiais. (Laudato si, 102)
A tecnologia, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, desde os objetos de uso doméstico até os grandes meios de transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o salto para o âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns arranha-céus. Há obras pictóricas e musicais obtidas com o recurso aos novos instrumentos técnicos. Assim, no desejo da beleza dá-se o salto para uma certa plenitude propriamente humana. (Laudato si, 103)

As inegáveis benefícios e também inegáveis riscos que a ciência e tecnologia trouxeram para a humanidade, não podemos deixar de nos determos no fato de que, nas últimas décadas, um autêntico terremoto subverteu os valores tradicionais e com eles a forma de conceber os passado, o presente e o futuro. Alexandro S. Caldera resumiu numa frase o dramático panorama histórico em que a humanidade se debate no começo do terceiro milênio “Agora, o século XXI inicia com uma profunda   orfandade moral. A ausência do humanismo trata-se de preencher com a tecnologia, a eficiência e a vertigem da vida contemporânea”. (Caldera, 2004, p. 15)