A Natureza como Síntese #22

Balduino Rambo  - 2
O cientista e sua proposta de síntese
Um exame um pouco mais minucioso da reflexão do Pe. Rambo acima, põe em evidência os dois lados do seu autor. O primeiro revela o cientista especialista em botânica sistemática que, por décadas percorreu os cenários naturais do sul do Brasil, colecionando plantas. Acondicionou-as e carregou-as para o seu recinto de estudo, para ordená-las e classificá-las de acordo com os rígidos preceitos da taxonomia. O resultado final veio a constituir-se numa coleção de fanerógamos de cerca de 90.000 exemplares. Foi esse afã de sistemata e as dezenas de artigos rigorosamente científicos, que abriram as portas para o livre trânsito na comunidade científica internacional. A vasta correspondência que manteve com instituições nacionais, americanas e europeias, desfaz qualquer dúvida a respeito. Curiosamente, entretanto, o que para qualquer cientista seria o objetivo maior a ser alcançado e a realização suprema, para o Pe. Rambo não passou de um caminho penoso, um pressuposto desgastante, em busca dos dados objetivos, para com eles na mão, descobrir na Pluralidade na Unidade na Natureza,  identificar e entender a sua teleologia e, de alguma maneira, vislumbrar o sentido que polariza tudo. No diário encontramos o surpreendente desabafo escrito por ocasião do retiro anual em janeiro de 1944, na Vila Manresa em Porto Alegre
Na medida em que me entretenho com a descrição das Ciências Naturais, experimento em mim mesmo um espécie de esvaziamento da vida afetiva. Apodera-se de mim a sensação de que o ser cadavérico das plantas mortas reflete-se  em minha alma, como se minha vida interior assimilasse, mais e mais, o aspecto inanimado do meu cemitério de plantas. A ocupação constante  com as descrições latinas apenas esquemáticas, geralmente áridas e inanimadas, projetam sua cor mortiça sobre a alma, tornando-a embotada, gélida e apática. (Rambo, Balduino. 1994. p. 13)
Um pouco mais adiante, continuando a reflexão, recorda as duas semanas que passou na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da “Coleção de Angelis”. A reclusão por dias a fio numa câmara escura improvisada debaixo de uma escada, aguçou nele  a sensação de isolamento e de solidão, que de física transformou-se também em prisão dos sentimentos e emoções. Diante da impotência de deixar correr  livre a imaginação e a reflexão, desabafou.
O isolamento quase completo do local, que me é sempre estranho no fundo do ser, colocou-me numa busca sequiosa de atividade racional e diálogo. O trabalho diário na biblioteca  contribuíra, em parte para me sentir insatisfeito e solitário como nunca.  (...) Eu me sentia em parte um irresponsável, por viver o dia-a-dia como um robô, deixando minha alma sofrer prejuízo. Levara então uma vida bem mais abundante, quando escrevia meus contos juvenis e compunha minhas poesias singelas. Julgava que minha existência era por demais preciosa, para ser consumida no meio de livros gastos pelo uso, em companhia de plantas mortas. (...) Estaria eu, com efeito, condenado tão incuravelmente ossificado, que não encontrasse mais nenhuma saída para me libertar dessa ocupação unilateral e sem vida? (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)
E continuando a reflexão, questiona-se se, de fato, estava  fadado a resignar-se e consumir a vida nessa “ocupação unilateral”. Certamente não! A resposta veio na forma de uma reação criativa que lhe franquearia um lugar de destaque entre os mais renomados pensadores que refletiram, com seriedade, sobre a essência, a razão de ser e o destino do universo, da natureza e do homem.
A resposta me parecia que tinha que ser  a reação, uma vez que me sinto jovem  e acho esse meu estado indigno. Por que não deixar de rastejar e levantar-me? Meu espírito acumulou, desde aqueles anos, um tesouro de novos conhecimentos, que reverteram em atividade criadora. Todos eles aguardam uma elevação e transfiguração na plácida luminosidade de Deus, que ainda hoje é, e sempre foi, o parente mais próximo do meus ser, o vizinho mais familiar da minha morada e o personagem mais amado do meu coração. Meus recursos linguísticos  não empobreceram, mas se enriqueceram em boa parte. Por que então haveria de deixar o mergulho na plenitude dos seres e acontecimentos, traduzindo em palavras a sua imagem, assim como o Senhor Deus converte em imagens sensíveis seus pensamentos eternos nos seres contingentes do mundo? Isto resultaria numa participação da obra criadora de Deus, o que de certo lhe daria gosto, porque seria feito com amor e reverência. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)
A reflexão que acabamos de registrar condensa as preocupações e as intenções que se encontram na base do pensamento e da cosmovisão do Pe. Rambo. Ele não deixa de ser um cientista, com especialidade em taxonomia botânica, reconhecido internacionalmente entre os seus pares. Acontece que ele é um representante não muito comum nesse meio. Foge do paradigma quase estereotipado do cientista frio, objetivo, que só crê nos resultados de suas pesquisas, avesso a reflexões filosóficas e recursos literários que não sejam técnicos e, obviamente só creem no que enxergam, observam com seus instrumentos ou no resultado dos seus cálculos. Mesmo que tenham fé não fica bem demonstrá-la em público. Colocá-la como uma variável determinante da pesquisa científica, é motivo suficiente para por em dúvida a consistência científica dos resultados das investigações. A opinião corrente manda que o cientista seja frio, objetivo, fáctico, avesso a divagações literárias e especulações de natureza filosófica e para muitos, de preferência,  sem fé e ateu. Pois, o Pe. Rambo foge a esse estereótipo. Sem a menor sem cerimônia classifica a prática científica  convencional, em muitos casos, como desgastante, levando à atrofia dos sentimentos  e à escravidão a serviço de  uma atividade sem sabor e sem alma. Ser cientista só então tem sentido e justificativa quando a serviço de um propósito maior. A atividade científica só então é legítima quando fornece os dados e as informações capazes de alimentar uma “atividade criadora” superior. E para ele a atividade criadora superior tem como destino final maior a “transfiguração na plácida luminosidade de Deus”. Portanto,  o Pe. Rambo faz ciência sobre o pressuposto da fé na existência de Deus. Mais ainda. A natureza no seu todo e nos seus componentes mais insignificantes, é o “livro dos livros abertos” da Revelação. Todas as outras revelações apresentadas em livros ou tradições orais dos povos, são formas peculiares de concebê-la, consolidadas pela tradição histórica de cada povo. Por isso mesmo são parciais e unilaterais. A Revelação autêntica, não viciada por nenhum cacoete histórico-cultural, é o livro aberto da Natureza. Aliás São Paulo na Carta aos Romanos chama a atenção para essa verdade. “Na verdade, as perfeições visíveis de Deus se tornaram visíveis depois da criação do mundo pela consideração das obras que foram feitas”. (Romanos. I-20).
O Pe. Rambo soma-se aos demais cientistas e cientistas-filósofos que concebem a Natureza como uma unidade estrutural, funcional e teoleológica. Concordando no essencial, cada um em particular, porém, iluminou-a a partir de uma perspectiva singular, inspirada na educação que recebeu, na formação acadêmica, na filiação confessional, na cosmovisão individual e não em último lugar nas características da sua personalidade. Erich Wassmann e Teilhard de Chardin, seus irmãos de Ordem, construíram complexos edifícios conceituais e trabalhosas argumentações, para a partir dos dados científicos, demonstrar a necessidade da existência de um Agente exterior que explica, em última análise a origem, a dinâmica e a razão de ser do Universo, da Natureza e do Homem. O Pe. Rambo pressupõe a existência de Deus Criador e partir desse dado, orienta a sua atividade científica e suas reflexões.
Chegou o momento de arriscar identificar quais as impressões, quais os sentimentos, quais as emoções e qual a compreensão, que povoavam o seu íntimo e qual a natureza das reflexões que o acompanharam nas suas  peregrinações  pela Natureza. Mais acima já destacamos que a parte mais volumosa dos escritos do Pe. Rambo, encontram-se no seu diário na forma de reflexões, não poucas vezes dirigidas a Deus na forma de diálogos. São literariamente ricas, rigorosamente científicas e filosoficamente densas. Ele próprio resumiu o que entendeu como Ciência e porque merece ser praticada.
A Ciência apenas possui então valor se é para cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit) – (para a formação humana do cientista), quando empreendida e praticada a partir do todo e estruturada dentro do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais. (...) A ciência quando praticada com acerto é uma recriação espiritual do mundo, uma atividade semelhante à de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo. Balduino. Diário. 1/08/1949)
Salvo melhor juízo está condensado nesse texto a síntese, a essência,  a razão de ser para alguém dedicar-se à Ciência, a maneira de conduzi-la e a sua destinação maior. E a destinação maior consiste, antes de mais nada, em humanizar o pesquisador e o próprio cientista e este, por sua vez, irradiar o seu “humanum” – “Menschlichkeit”, para o mundo em seu derredor. Pressupõe-se, para tanto, que o cientista desenvolva sua tarefa, inspirado numa cosmovisão unitária, holística e integradora da natureza. E é nesse particular que encontramos o “nó górdio” que é preciso desatar. A questão não se resolve cortando-o com a espada, mas desatando-o. Para tanto requer-se da parte do cientista, do pesquisador, uma formação acadêmica de visão ampla  e abrangente, fundamentada na concepção do todo em que se move. Além de dominar profunda e rigorosamente o objeto da sua especialidade. É preciso que esteja em condições de transmitir com precisão e estilo, maestria e convicção, os resultados das suas reflexões. Vai na linha da proposta de formação conhecida na Inglaterra como “Oxbridge”. Por ela objetiva-se formar um cidadão completo, não um especialista bitolado, tolhido por viseiras. Este é o verdadeiro “gentelman”, uma pessoa dona de uma formação de bases amplas, profunda e segura na sua especialidade, comunicando-se com desenvoltura e em alto estilo. Os antigos romanos falavam em “vir bonus, peritus dicendi” – “um homem bom, completo, bem formado, que sabe comunicar-se com elegância.  Não é vulgar, ignorante, grosseiro, mas conhecedor e sabedor do que fala. Salvo melhor juízo, vai nessa direção o pensamento do Pe. Rambo ao definir como ele concebia o verdadeiro fazer ciência.
Ciência verdadeira começa apenas ali onde ela se tornou culto pessoal a Deus para o próprio pesquisador. E isso muito antes de qualquer ideia relativa a publicidade. Ciência vem a ser um decifrar dos vestígios de Deus e um respeitoso reescrever imitativo do Mundo, portanto, um estudo artístico de primeira ordem e grandeza. Ciência é uma contemplação contínua e a cópia desejada  dos planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Mundo. Uma vez que tudo isso equivale à reconstrução imitativa e ao entender por dentro das coisas de sua ordem hierárquica – tudo no espelho de uma arte verdadeira. Próprio, contudo, à toda obra de arte é que irradie da plenitude e ordem hierárquica de cada uma de suas partes, de toda a sua ancoragem no belo todo o Cosmos e seu parentesco com o arquétipo, que se encontra além de toda a beleza artística, despedindo de si um calor e um reflexo de luz, aos quais não foge nenhum homem de pensamento hierárquico. Apenas dali, portanto, a partir da plenitude de um riqueza interior, começa a atividade exteriorizada da Ciência, pois, sendo verdadeira, ela é um facho aceso e reluzente, similar aos sóis do firmamento, que avançam espalhando benefícios por sua mera existência. (Rambo, Balduino. Diário. 3 de junho de 1951)
Nessa passagem do Diário Pessoal, Pe. Rambo condensou a sua compreensão do Universo e da Natureza como um todo e nas suas partes. Definiu a razão última de ser da Ciência como sendo um “culto a Deus”. Por isso a tarefa do autêntico cientista resume-se em reescrever, redesenhar, em prosa e verso, essa grandiosa obra em homenagem ao Supremo Artista. O que importa, em última análise, como resultado final da atividade  científica, consiste em descobrir em a Natureza “os planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Universo”. E identificando a arquitetura singular dos componentes da natureza, descobrir as relações estruturais, funcionais e hierárquicas que os inserem num todo maior, numa unidade superior, num “sistema global”, como diria Ludwig von Bertalanffy.

Para ele  Ciência se faz, em primeiro lugar, a partir da visão dos conjuntos naturais. A observação panorâmica dos conjuntos permite desenhar “grandes mapas descritivos”, os quais, por sua vez, sintetizam  a compreensão da Natureza no conceito de “Fisionomia”. Segue numa segunda fase a tarefa penosa e desgastante, mas indispensável de procurar, identificar e encaixar no “mapa”  as peças como que num quebra-cabeça. E o esforço não se limita em colocar os detalhes no seu devido lugar. Parece que nesse esforço esgota-se para a imensa maioria dos pesquisadores o conceito de “fazer ciência”. E aqui deparamo-nos com a razão de fundo porque o Pe. Rambo, de um lado sofre diminuição na sua estatura de cientista por uma minoria e os seus admiradores, que são a imensa maioria dos que entraram em contato com sua obra, admiram-no e chegam a venerá-lo.

A Natureza como Síntese #21

Balduino Rambo (1905-1961)  -1
O perfil de Balduino Rambo
O centenário do Pe. Balduino Rambo (1905-1961), motivou a publicação de um número considerável de matérias, focando a vida e a obra desse ilustre jesuíta, professor, cientista, apostolo social e literato. Até hoje, quando se fala no seu nome, os que o conheceram ainda em vida ou entraram em contato com sua obra, citam-no entre os homens de ciência  mais destacados que honram o Rio Grande do Sul e o Brasil. Sua obra mais conhecida e mais consultada é “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. A primeira edição data de 1942, a segunda de 1956 e a terceira de 1999. O estímulo para conceber e escrever essa obra devem ser procurados nos sobrevoos que  realizou para o Serviço Geográfico do Exército, em começos de 1938. Durante 60 horas e 11.000 quilômetros voados, deslumbrou-se com as paisagens naturais mais variadas e mais surpreendentes e deslumbrantes que compõem o cenário natural do Estado ou, como ele diria: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Na parte do diário em que apontou os registros dessas vivências, percebe-se o quanto e quão profundamente as paisagens naturais, que deslizavam sob as asas do pequeno monomotor “Master Brasilia”, do Terceiro Regimento de Aviadores de Canoas, marcaram sua relação existencial para com a querência natal. Ao colega de estudos e amigo na Alemanha, Waldemar Moll, resumiu assim essa experiência, reservada para poucos naquela época: “Ah, o prazer de voar! Acredito que voar vire paixão da qual não há como não cair vitima”. Quinze anos mais tarde teria ocasião para realizar mais uma viagem aérea encomendada também pelo Serviço Geográfico do Exército. Nessa ocasião sobrevoou também num monomotor militar, o Brasil Central de sul ao norte, a Amazônia, descendo por Acre, Rondônia, cruzando o Mato Grosso, na época um estado, para terminar em São Paulo. Essa viagem não resultou num livro do gênero e da repercussão da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”. As observações feitas naquele sobrevoo renderam contudo um conto, seu gênero literário predileto, recheado de observações sobre paisagens, cidades, personagens, atividades econômicas, empreendimentos missionários e até lendas e histórias típicas dos lugares por onde passou e fez suas paradas obrigatórias. O conto foi escrito no dialeto do “Hunsrück” e endereçado para seus leitores do interior colonial. Leva o titulo sugestivo: “Nichs scheeneres uff de Welt wie en Schulerrer sin”. – “Nada mais belo no mundo do que ser professor”.
Foi a partir desses sobrevoos e a compreensão global  da visão que os grandes conjuntos lhe proporcionava, que o Pe. Rambo consolidou  uma aproximação multifacética e multicromática da “História Natural” da paisagem. Em meio a esse cenário de reflexões foi tomando forma o projeto da sua obra clássica: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Vista como um todo apresenta-se como uma monografia, como o próprio autor a classificou, bem ao estilo do velho, mas sempre  novo e inesgotável conceito de “História Natural”.  “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” conduz o leitor pelas diversas paisagens como se fossem de um livro aberto. Na sua linguagem peculiar a mineralogia, a petrografia, a geologia, a paleontologia, a edafologia, a hidrologia, a botânica, a zoologia, a climatologia, desenham as paisagens naturais das diferentes regiões do Estado e contam a sua história. Os conjuntos locais e ou regionais formam unidades que impressionam, assustam ou encantam. Cada qual na sua identidade, vem a compor uma peça a mais, na harmonia sinfônica da ”Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Na medida em que detalhou, com rigor científico a paisagem natural, apresentou-a ao público como uma declaração de amor apaixonado pela querência em que nasceu. E a paisagem que mais fundo calou em sua alma de cientista, poeta e místico, foi o planalto coberto de pinheiros. No seu diário deixou o registro de que lá “à sombra das araucárias era sua pátria na terra”.
O Pe. Rambo vem a ser uma personalidade rara entre os sábios que transitaram com desenvoltura e competência pelos diversos campos do saber. Escreveu os primeiros versos como jovem recém saído da adolescência e, aos quinze anos, em 1919, começou a redigir uma diário. Fez nele o último registro  um dia antes do seu falecimento em 12 de setembro de 1961. Ele próprio dizia que o  diário era a “obra literária e científica” da sua vida. Soma 49 volumes manuscritos em grande parte em estenografia e o restante na sua quase totalidade, em língua alemã e letra gótica (Süterlin).  Por ocasião da sua viagem de três meses aos Estados Unidos, a convite do governo daquele país, encontram-se páginas em inglês. Aparentemente aproveitou o diário para treinar aquela língua.  Esse diário tem um valor inestimável, pois, cobre um período de praticamente 40 anos em que o mundo como um todo e o Brasil em particular, passou por transformações radicais. Basta lembrar a implantação do Estado Novo e a ditadura de Vargas, a Campanha de Nacionalização, a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a redemocratização em 1945 e o posterior surto de modernização do Pais. De essencialmente rural começa o processo sem volta da urbanização, a revolução nas comunicações e seus reflexos inevitáveis sobre as comunidades coloniais tradicionais. Comprometido com o mundo rural, principalmente de descendência alemã, o Pe.  Rambo reservou páginas e mais páginas do seu diário, para as  preocupações pelo destino religioso e étnico do seu povo. Em paralelo desenvolveu toda uma linha de reflexão na qual nos legou a sua visão e compreensão peculiar do Universo, da Natureza, do Homem e, nesse panorama o lugar que cabe a Deus. Mas deixemos para mais adiante a imersão nos meandros do seu pensamento.
De outra parte o diário, somado a sua vasta correspondência científica contem os dados que permitem avaliar o tamanho da sua estatura como cientista de trânsito nacional e internacional, mais especificamente, no campo da botânica sistemática dos fanerógamos do sul do Brasil. Terminada a Grande Guerra engajou-se na campanha de Socorro a Europa Faminta (SEF). Foi secretário dessa organização interconfessional que arrecadou roupas, agasalhos e alimentos mandados por intermédio da Cruz Vermelha, para a “Europa Faminta”. Vidas sem conta foram salvas com esse socorro de emergência. Ao lado da atividade literária e científica o Pe. Rambo ocupou como fundador a cátedra de Etnografia e Etnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e foi responsável pela disciplina de História Natural do Colégio Anchieta. Encontrou ainda tempo para dedicar-se a projetos  sociais desenvolvidos pela Sociedade União Popular da qual foi secretario executivo e redator do seu periódico, o Skt. Paulusblatt, durante a década de 1940 e 1950. Em seu diário encontram-se informações sobre todas essas atividades.
O gosto pela poética foi, por assim dizer, a sua paixão juvenil no campo das belas letras. O entusiasmo por esse gênero foi arrefecendo no correr do tempo e foi ocupar um lugar secundário quando chegou à plena maturidade aos quarenta anos. Na ocasião anotou no diário. “O gosto antigo pela poesia e a sensibilidade pela contemplação, é verdade não morreram em mim, mas recuaram para um espaço bem mais reduzido”. (Rambo, Balduino. 1994. p. 14). Acompanhou-o, isso sim, o gosto pelos contos, dos quais publicou em alemão erudito em periódicos internacionais, uma série com pano de fundo histórico. O que, porém, representa uma valor inestimável são vinte um contos em dialeto do “Hunsrück” somados a mais de uma centena de cartas fictícias no mesmo linguajar, endereçados aos descendentes dos imigrantes alemães no interior colonial do sul do Brasil. Trata-se de um conjunto de matérias que se constituem numa autêntica mina para estudiosos da língua, linguística, teoria literária, assim como de história, antropologia, sociologia, religião e outras especialidades. Encontram-se além disso, no diário e ouras formas de publicação, dezenas de  matérias, versando, sobre os grandes temas que ocupavam a mídia de antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Suas preocupações mais recorrentes foram as mudanças  de natureza cultural, social, econômica, política e religiosa, que mexeram fundo na vida e na maneira de ser das comunidades do interior colonial, no qual ele nascera e passara a infância. As raízes que o Pe. Rambo fincara nesse meio tinham sido tão profundas e tão sólidas que, em vez de se enfraquecerem, tornaram-se o pano de fundo da sua inspiração e produção literária. Lendo e examinando seus escritos, principalmente os de ficção e os inspirados na realidade humana do mundo rural, é licito afirmar  que teriam tudo para dar-lhe um lugar de destaque na literatura mundial, caso se tivesse dedicado de corpo e alma ao gênero contos, por exemplo. Salvo melhor juízo, pouco ou nada ficam devendo à obra “Cem Anos de Solidão”, que valeu o prêmio Nobel em Literatura a Gabriel Garcia Marques.
A produção literária e científica
O  volume mais significativo dos escritos do Pe. Rambo são de natureza científica, tendo como cenário de fundo a taxonomia botânica. E foi a botânica sistemática que lhe garantiu nome nacional e internacional. É óbvio que na descrição de um gênero, uma família ou uma variedade de fanerógamos, não há espaço para grandes voos poéticos e estéticos. O estilo dessa produção deve ser por natureza enxuto, técnico e preciso, como manda  que sejam textos com objetivos  científicos.
Entre os escritos propriamente dito literários e científicos  o legado do Pe. Rambo conta com um volume impressionante de outros textos, na maioria inéditos. Situam-se num patamar intermediário e ocupam a maior parte do diário, descrições de excursões científicas, relatos de viagem, alguns contos em alemão erudito, além da sua obre de referência: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Nesses textos não falta o rigor científico. Os dados são reais e objetivos, mas os recursos literários e o estilo preferido pelo autor, vem carregados de descrições e reflexões que mexem com a mente, alimentam a fantasia e fazem com que o leitor viaje na imaginação por uma paisagem viva, povoada de personagens, de dramas, de mistérios, de simbolismos, de significados, de misticismo. Em outras palavras. A forma de apresentar uma caminhada pelos campos de Cambará, por ex., não se resume numa sucessão mecânica de atos de coletar o maior número possível de espécies de plantas. As reflexões que acompanham e complementam a tarefa, refletem a preocupação pelo lugar, de um modo mais amplo e os simbolismos de que os mínimos detalhes são portadores. Ao mesmo tempo seus escritos sugerem e fazem vislumbrar, em meio à infinita multiplicidade de detalhes, a convergência harmônica para uma unidade, que confere sentido a tudo. Renato Dalto, autor do texto da obra comemorativa do centenário do nascimento do Pe. Rambo, resumiu com rara precisão, o que vínhamos tentando dizer.
O Pe. Balduino Rambo nasceu, viveu, pesquisou e se expressou na natureza. Quando menino, ainda no pátio da casa paterna, em Tupandi, região de colonização alemã no vale do Caí, onde nasceu no ano de 1905, considerava as árvores no fundo da casa seu brinquedo predileto. Quando foi estudar na Escola Apostólica, em Pareci Novo, em 1917, o passeio pelas matas dos arredores lhe aguçou o gosto pela botânica e a geografia. Isto foi determinante na sua vida de pesquisador. Seus relatos da natureza são grandes mapas descritivos – o conceito de  fisionomia, no qual  primeiramente enxerga o todo para depois entrar nos detalhes. O detalhe é visão do botânico, mas há também a busca da síntese entre ciência e religião, os questionamentos da alma, o vigor literário e a construção poética de ver couraça revestindo pedras, atribuir memória a acidentes geológicos, escutar a canção das águas, ouvir o murmúrio do divino  em meio à névoa da noite. (Tavares, Eduardo – Dalto Renato.  2007. p. 12)
Foi exatamente essa forma peculiar de apresentar dados isolados, paisagens locais ou fisionomias globais, que fizeram do Pe. Rambo um sábio de reconhecimento perene. Seus ex-alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Colégio Anchieta ainda vivos, intelectuais que privaram  com ele ou vieram a conhecê-lo pela obra que deixou, lembram-se dele com sincera veneração. Guardam dele a memória de um especialista e sábio que soube aliar como poucos, o rigor científico à sensibilidade de um poeta, às reflexões de um filósofo, e jesuíta que foi, perceber na paisagem natural as marcas da presença do Criador, como concluiu Renato Dalto: “Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para entender Deus” (Tavares, Eduardo – Dalto, Renato. 2007. p. 12). Assim como para Francis Collins o código genético é a “Linguagem de Deus”, para o Pe. Rambo Deus fala uma linguagem eloquente, para quem tem olhos para enxergar e ouvidos para escutar a natureza, nas suas macro micro e nano manifestações.
Tomando em conta os múltiplos campos do conhecimento em que o Pe. Rambo se movimentou, entende-se que sua obra encontre  dificuldades para ser avaliada no todo e nos diversos enfoques. A começar pelas diversas especialidades às quais se dedicou e sobre as quais deixou registradas suas reflexões, fica difícil, senão impossível, decidir em qual delas foi maior. E como maior não entendemos aqui o volume da produção específica, mas o significado e o valor de cada uma. Uma avaliação conjunta da produção literária, não deixa dúvidas sobre o valor tanto do objeto quanto da forma. A leitura dos contos e das cartas fictícias em dialeto, era disputada com avidez e paixão pelo público  a quem foi endereçado. A outra série de contos em alemão erudito, versando sobre temas regionais do sul do Brasil, atingiram o público leitor internacional, pois, foram publicados no periódico “Katholische Missionen” (Missões Católicas), de circulação internacional. Seu último conto expressa suas preocupações com uma civilização cada vez mais empolgada e rendida ao fascínio da tecnologia. Com o titulo “Drei Jahre auf dem Mars” (Três anos em Marte), veio a ser publicado anos depois do seu falecimento. Além de se constituir numa peça literária primorosa, o conto “Três Anos em Marte”, põe em evidência o polo para o qual convergiam todos os interesses do Pe. Rambo: Os textos que deixou, além dos que acabamos de mencionar, muitos inéditos como os diários de suas viagens, em 1956 para os Estados Unidos e em 1959 para a Alemanha, na condição de convidado oficial pelos governos daqueles países, demonstram o que para ele de fato interessava. Descobrir na diversidade das manifestações da Natureza o fio condutor que as une e lhes dá sentido. E se há uma baliza, uma referência que confere harmonia ao aparente caos, qual a sua natureza? Na condição de jesuíta  estava comprometido com a fé de que tudo que existe e acontece em nossa volta tem a sua origem num Deus Criador. Para ele a Criação e consequentemente o Criador, são dados objetivos. Dispensam provas. Mais ainda. Não há como entender o Universo, a Natureza e Homem sem esse pressuposto. Para ele, como para São Paulo, Santo Agostinho, Nicolau de Cusa, os últimos seis  papas e muitos outros, a Natureza é “O Livro” da Revelação por excelência. Todos os demais livros e  formas de Revelação conhecidos na história dos povos, não passam de versões consolidadas no decorrer da história das respectivas culturas. Por isso mesmo vêm marcadas pela visão e os cacoetes peculiares de cada uma em particular. O Pe. Rambo deixou explícita a convicção de que a Natureza e tudo que nela existe tem a sua origem e razão ser em um Deus Criador, no seu diário de 24 de junho de 1945.
À primeira vista, a Tua Criação nem mesmo se apresenta como ordenada, mas como uma grande confusão: grande confusão o teu firmamento estrelado, grande confusão o edifício dos reinos do saber, uma confusão muitas vezes assustadora o roteiro da Tua Providência na História da Humanidade. Nós, cientistas, trazemos dentro de nós um certo pressentimento e um salutar temor face a  toda essa confusão. Imprimiste em nós um resplendor do Teu próprio ser e por isso sabemos de ante mão, que por trás dessa aparente balbúrdia reina uma maravilhosa harmonia. Mais ainda!. Que é tarefa nossa perseguir as meadas desse sistema  e explicar com transparência sua interligação. Até certo ponto somos nisso bem sucedidos e às vezes invade-nos a ilusão de termos descoberto a planta do mundo e agora a saberíamos fixar no papel preto sobre branco. Pena que, num último momento, algum das Tuas divagações ou digressões põe sempre em dúvida a consistência de todo esse edifício! Eis porque somos obrigados a sempre recomeçar, embora saibamos perfeitamente que também esta vez a conta não irá fechar. Empilham-se nossos livros, e nossas bibliotecas continuam  a crescer que é uma espanto. Muitos dos nossos opinam que, a partir das raízes desse tronco frágil podem esquadrinhar o próprio mistério da Tua ordem universal. Desenrolam e vasculham os pergaminhos de épocas passadas, dialogam com traças e escorpiões de livros, reduzem  cinquenta velhos volumes a um só, e chamam tal proeza de “Ciência”. (Rambo, Balduino. 1994. p. 127-128).

Teilhad de Chardin elaborou um complexo e sólido fundamento conceitual que garante lógica  e solidez para  fundamentar as suas obras de referência: “O Fenômeno Humano” e “O homem na Natureza”. Percebe-se um esforço penoso para não se desviar do caminho escolhido ao arquitetar para a sua grandiosa concepção do universo e nele o homem, e conferir-lhe coerência à base dos dados científicos de que dispunha na época. Esses dados provam, pelo menos para ele e seus admiradores, que o mudo em que vivemos revela-se como uma gigantesca unidade, Bertalanffy diria um gigantesco “Sistema”.

A Natureza como Síntese #20

Em busca do “Ômega”
Depois dessa digressão voltemos a Teilhard de Chardin. Não há necessidade de insistir mais de que ele vai conduzindo toda a sua linha de  raciocínio em busca de um ponto de convergência da natureza global. Lida com a pluralidade das realidades naturais, supondo diante mão que, pela sua natureza, fazem parte de uma grande unidade. A visão unitária do universo e da natureza encontra-se implícita no macro-modelo que desenhou para orientar a coerência das suas reflexões. Tudo teve um começo no “alfa”. Nele encontrava-se o “estofo” do Universo, dotado de um potencial ilimitado de diversificação, de reagrupação, de complexificação, de compressão, até voltar novamente, no final, a uma unidade definitiva no “ômega”. No último capítulo do “Fenômeno Humano” que leva o titulo “A Terra Final”, a intenção de Teilhard fica mais clara:
O homem só continuará a trabalhar e a pesquisar se conservar o gosto apaixonado de fazê-lo. Ora esse gosto está inteiramente pendente da convicção, estritamente indemonstrável para a Ciência, de que o Universo tem um sentido e de que pode, ou até de que deve desembocar, se formos fieis, em alguma irreversível perfeição. Fé no progresso.
Podemos conceber cientificamente um melhoramento quase indefinido do organismo humano e da sociedade humana. Mas logo que se trata de materializar praticamente os nossos sonhos, constatamos que o problema continua indeterminado, ou mesmo insolúvel, a menos que admitamos, por uma intuição parcialmente supra-racional, as propriedades convergentes do Mundo a que pertencemos. Fé na Unidade. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)
Na citação que acabamos de registrar, Teilhard como cientista deixa clara a dificuldade em oferecer, via Ciência, uma perspectiva para uma resposta final e conclusiva para o desfecho da evolução do Homem. Percebe como, para entender o Universo e a Natureza, os cientistas desmontaram a realidade até as últimas peças. E no afã de, por esse caminho, encontrarem respostas de fundo para as hipóteses que orientam, cresce no mesmo ritmo do avanço de suas descobertas, a desconfiança de que não é por essa via que irão obtê-las. O fato é que o método  analítico indutivo próprio das Ciências, esconde uma armadilha que pode transformar-se num beco sem saída. Teilhard descreveu a situação mais ou menos assim. O método analítico oferece os instrumentos maravilhosos que se encontram na base de todo o progresso. Vem acompanhado, porém, de um risco que não pode ser desprezado. De tanto dissecar, desmontar, analisar, o pesquisador defronta-se com um monte de peças e perdeu a noção da máquina a que pertenceram. Se essa foi a situação em meados do século XX, o que dizer do começo do século XXI?. Em todo o caso e o que interessa é que ele descreveu o desfecho final para o qual deverão contribuir, tanto as Ciências Naturais, quanto as Ciências do Espírito.
Quando, no Universo movediço para o qual acabamos de despertar, olhamos as séries temporais e espaciais divergir e soltar-se à nossa volta e para trás, como camadas de um cone, fazemos Ciência pura. Mas quando nos voltamos para o lado do Ápice, em direção à Totalidade e o Porvir, forçoso nos é fazer também Religião
Religião e Ciência: duas faces, ou fases conjugadas de um mesmo ato completo de conhecimento, - o único que pode arcar, para contemplá-los, medi-los e consumá-los, o Passado e o futuro da Evolução.
No reforço mútuo dessas duas potencias ainda antagônicas, na conjunção da Razão e da Mística, o Espírito humano, pela própria natureza de seu desenvolvimento, está destinado a encontrar o extremo de sua penetração, com o máximo de sua força viva. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 324)
Na sua obra complementar ao “Fenômeno Humano”, “ Homem na Natureza”, Teilhard formulou a conclusão de todo o seu esforço científico e as reflexões que o acompanham.
Se o polo de convergência psíquica no sentido do qual gravita, organizando-se, a Matéria não fosse nada de diferente, nem nada mais que o agrupamento totalizado, impessoal e reversível, de todos os grãos do Pensamento cósmicos momentaneamente refletidos uns nos outros, o enrolamento do Mundo sobre si mesmo desfazer-se-ia, na própria medida em que a Evolução, a progredir, tomaria consciência mais clara do beco sem saída em que terminaria. Sob pena de ser incapaz  de formar o fecho de abóbada para a Noosfera, “Ômega”só pode ser concebido como o ponto de encontro entre o Universo chegado ao limite de centração e um outro Centro ainda mais profundo – Centro auto subsistente e Princípio absolutamente último de irreversibilidade de personalização: o único verdadeiro “Ômega”. E julgo é neste ponto que se insere,  na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução.  (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).
Pelo visto fica claro que, salvo melhor juízo, Teilhard de Chardin direcionou todo o seu esforço de cientista, de etnógrafo, de etnólogo, de historiador, de geógrafo, de filósofo e, porque não, de teólogo e místico, par demonstrar que o Universo é uno na sua imensa Pluralidade. Essa unidade somente é possível se houve um começo único, um “alfa”. Além disso exige também que o desfecho da evolução que levou à Pluralidade ao extremo numa primeira fase, numa segundo voltou a concentrar-se (lembramos a metáfora do globo terrestre), em busca de um ponto de chegada final único e definitivo: o “Ômega”. Apesar da pluralidade somada a uma aparente dispersão, uma linha mestra atrelada a uma teleologia, garantiu e garante ainda a Unidade radical. E se há uma teleologia, uma causa eficiente e inteligente – um “Alfa”, este tudo planejou, pós em andamento e direcionou a um objetivo final – o “Ômega”. A lógica dessa cosmovisão só podia terminar numa conclusão final, aquela que o próprio Teilhard formulou no “Lugar do Homem na Natureza”. O “Alfa” confunde-se com Deus Criador e o “Omega”, o mesmo Deus, princípio, alma, razão de  ser e  destino final do Universo, da Natureza e do Homem. “Julguo ser neste ponto que se isnere, na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).
Conclusões sobre a cosmovisão de Teilhard de Chardin
As reflexões que nos levaram até aqui deixam claro de que sempre houve preocupação ao nível da Ciência e, evidentemente, da Filosofia e da Teologia, em relação aos questionamentos de fundo, implícitos no Universo, na Natureza e no Homem. Platão, Sto. Agostinho, Nicolau de Cusa, Spinosa, Hans Driesch, Oscar Hertwig, Karl von Baer, Erich Wassmann, Teilhard de Chardin, Theodosius Dobzansky. Ludwig von Bertalanffy, e, mais recentemente Francis Collins, Edward Wilson, entre outros, formularam as suas respostas. Cada qual, partindo de um ponto de vista particular e singular, fez suas observações e chegou a uma conclusão coerente com os dados que dispunha, interpretados de acordo com sua cosmovisão peculiar. Por caminhos diferentes e partindo de ângulos de observação originais, chegaram à mesma  conclusão. Na imensa Pluralidade que nos cerca, e não poucas vezes, nos confunde, percebe-se uma Unidade que, de um lado explica a própria diversidade e, do outro, confere-lhe uma razão de ser a ultrapassa. Em outras palavras. Estamos diante de doutrinas diferentes que iluminam a partir de perspectivas diferentes a Verdade que é uma só. “Doctrina multiplex, Veritas una” – “As doutrinas são muitas, a Verdade uma só”
A justiça manda que  nessa galeria de sábios não se omita o nome do Pe. Balduino Rambo (1905-1961),  contemporâneo de Teilhard de Chardin (1881-1951) e Ludwig von Bertalanffy (1901-1973). Em comum com primeiro merece lembrar que foi jesuíta, condição aliás partilhada também com Erich Wassmann (1859 – 1931). Acontece que não há registros, pelo menos até agora, de algum contato por correspondência entre os três nem referência um do outro nas suas obras científicas. De que o pensamento de Erich Wassmann era-lhe familiar pode ser deduzido do fato de em seus espólio encontrar-se a obra clássica  dele: Die Moderne Biolgie und Entwicklungstheorie. A ausência de um intercâmbio de ideias mais permanente  explica, pelo menos em parte, os caminhos aparentemente opostos que os dois jesuítas, Rambo e Teilhard escolheram para chegar ao mesmo objetivo. Aquele que se dá o trabalho de examinar um pouco mais de perto o “Fenômeno Humano”, percebe que o caminho que Teilhard foi, senão audacioso, pelo menos de uma considerável dificuldade. A execução do plano da obra que concebeu, exigiu uma complexa arquitetura conceitual, para dar suporte e consistência à lógica ao  texto. Logrou dessa forma garantir coerência à grandiosa, para muitos, genial concepção da origem, da evolução  e do destino do Universo, da Natureza e do Homem. Como cientista lançou mão dos múltiplos conhecimentos nas diversas áreas das Ciências Naturais e Humanas, para assegurar  objetividade à sua obra e, por isso mesmo, aceitação ou, pelo menos, respeito nas Academias de Ciências. O resultado compensou o esforço, como demonstra o depoimento de Jean Piveteau da Academia Francesa de Ciências, no prefácio que escreveu para “O Lugar do Homem na Nautreza”. É compreensível, pois, estamos  na primeira metade do século X, que sua obra como um todo e, consequentemente sua proposta de mega-síntese, alvoroçasse os guardas da ortodoxia religiosa. O mesmo já acontecera no começo do século com Erich Wassmann, impedido de publicar a terceira  edição da sua obra “Moderne Biolgie”. Estavam em pleno vigor os pesados documentos de Pio X, que proibiam aos católicos  aceitar o evolucionismo. O que dizer então dos religiosos ? Tanto Wassmann quanto Teilhard eram jesuítas e como tais deviam obediência irrestrita às determinações emanadas do magistério superior da Igreja. Wassmann falecido em 1931, sofreu mais diretamente o impacto dos documentos pontifícios do começo do século. Nem por isso deixou de aprofundar seus estudos, publicar os resultados e concluir a sua proposta de harmonização entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas, tão original quanto fácil de entender. Memoráveis foram os seus confrontos nos debates públicos em Berlim, com os maiores expoentes do Monismo de Ernest Haeckel. Sua cosmovisão e as matérias que a franquearam ao grande público, foram publicadas  na revista Stimmen der Zeit, entre 1910 e 1930.
Teilhard de Chardin e Balduino Rambo consolidaram ambos a suas compreensões do Universo, da Natureza e do Homem, entre 1940 e 1960. Vale observar que a Igreja por meio do Magistério Superior Eclesiástico, dava sinais inequívocos de aproximação com o universo científico. Pio  XII, eleito em fevereiro de 1939 e falecido em outubro de 1958, fundou a Academia Pontifícia de Ciências, um fórum de alto nível para o qual eram convidados os expoentes das diversas especialidades, com a finalidade de implementar o diálogo entre a Ciência, a Filosofia e a Teologia. Essa mudança  teve o mérito de atenuar as tensões entre a Ciência e o rigor doutrinário imposto por Pio X. Foi-se generalizando um arrefecimento gradativo das tensões  e uma lenta aceitação do transformismo, como um caminho legítimo para conceber o mundo, também para os católicos. Essa tendência tomou corpo e tornou-se uma das balizas sinalizadoras das investigações, e, de modo especial, das reflexões  de cientistas católicos. De outra parte, as autoridades eclesiásticas abandonaram sensatamente forçar os religiosos cientistas a pesquisar,  imobilizados  pela camisa de força da interpretação literal da Bíblia ou a rejeição do transformismo a qualquer preço. Assim, Teilhard e Balduino Rambo gozavam da liberdade para desenvolver suas investigações, suas observações e, de modo especial, suas reflexões, num cenário desenhado pelo evolucionismo, sem serem chamados à ordem ou estigmatizados como heterodoxos. É verdade que Teilhard foi, por algum tempo,  penalizado por um tal ou qual ostracismo e chamado a explicar-se  perante as autoridades eclesiásticas e da própria Ordem. Pelo que consta, o Pe. Rambo nunca foi chamado formalmente à ordem por defender em sala de aula e em palestras a sua convicção de evolucionista. De um lado não expôs-se tanto quanto o irmão de Ordem, porque sua especialidade era a taxonomia botânica, pouco propícia para uma discussão na linha da evolução e, do outro lado, porque não chegou a escrever uma síntese como o fez Teilhard no “Fenômeno Humano”. A questão foi posta num nível oficial definitivo pela Igreja com a encíclica “Divino Aflante Spiritu” de 1943[1] e a  “Humani Generis” de 1950.[2] Em resumo esses documentos remetem a face científica relativa ao Evolucionismo para a Ciência e para a Filosofia e a Teologia, os aspectos privativos a essa esfera. 



[1] Em 30 de setembro de 1943, Pio XII publicou a Carta Encíclica Divino afflante spiritu. Nela o papa recomenda a tradução da Sagrada Escritura das línguas originais em que foram escritas para substituir  a tradicional Vulgata de São Jerônimo. Esse recurso às línguas originais, tomando em consideração o gênero literário, o ambiente histórico cultural, abriria a possibilidade de interpretações alternativas do textos sagrados. Foi o primeiro e decisivo passo para o reencontro e o efetivo diálogo entre a Ciência e a Igreja Católica.
[2] Humani generis, promulgada por Pio XII em 12 de agosto de 1950 libera oficialmente o estudo e aceitação da teoria da evolução contanto que se preserve a doutrina relativa à criação direta da alma por Deus. O documento ensina que “A Autoridade Docente da Igreja não proíbe, tomando em consideração o presente estado da Ciência e da Sagrada Teologia, as pesquisas e discussões, baseadas na experiência dos dois campos, que envolvem a doutrina da Evolução, na medida em que aceita a origem do corpo humano a partir de um ser vivo anterior, ressalvando a criação da alma como um ato divino imediato”.