A Natureza como Síntese #22

Balduino Rambo  - 2
O cientista e sua proposta de síntese
Um exame um pouco mais minucioso da reflexão do Pe. Rambo acima, põe em evidência os dois lados do seu autor. O primeiro revela o cientista especialista em botânica sistemática que, por décadas percorreu os cenários naturais do sul do Brasil, colecionando plantas. Acondicionou-as e carregou-as para o seu recinto de estudo, para ordená-las e classificá-las de acordo com os rígidos preceitos da taxonomia. O resultado final veio a constituir-se numa coleção de fanerógamos de cerca de 90.000 exemplares. Foi esse afã de sistemata e as dezenas de artigos rigorosamente científicos, que abriram as portas para o livre trânsito na comunidade científica internacional. A vasta correspondência que manteve com instituições nacionais, americanas e europeias, desfaz qualquer dúvida a respeito. Curiosamente, entretanto, o que para qualquer cientista seria o objetivo maior a ser alcançado e a realização suprema, para o Pe. Rambo não passou de um caminho penoso, um pressuposto desgastante, em busca dos dados objetivos, para com eles na mão, descobrir na Pluralidade na Unidade na Natureza,  identificar e entender a sua teleologia e, de alguma maneira, vislumbrar o sentido que polariza tudo. No diário encontramos o surpreendente desabafo escrito por ocasião do retiro anual em janeiro de 1944, na Vila Manresa em Porto Alegre
Na medida em que me entretenho com a descrição das Ciências Naturais, experimento em mim mesmo um espécie de esvaziamento da vida afetiva. Apodera-se de mim a sensação de que o ser cadavérico das plantas mortas reflete-se  em minha alma, como se minha vida interior assimilasse, mais e mais, o aspecto inanimado do meu cemitério de plantas. A ocupação constante  com as descrições latinas apenas esquemáticas, geralmente áridas e inanimadas, projetam sua cor mortiça sobre a alma, tornando-a embotada, gélida e apática. (Rambo, Balduino. 1994. p. 13)
Um pouco mais adiante, continuando a reflexão, recorda as duas semanas que passou na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, auxiliando o Pe. Arnaldo Bruxel na microfilmagem da “Coleção de Angelis”. A reclusão por dias a fio numa câmara escura improvisada debaixo de uma escada, aguçou nele  a sensação de isolamento e de solidão, que de física transformou-se também em prisão dos sentimentos e emoções. Diante da impotência de deixar correr  livre a imaginação e a reflexão, desabafou.
O isolamento quase completo do local, que me é sempre estranho no fundo do ser, colocou-me numa busca sequiosa de atividade racional e diálogo. O trabalho diário na biblioteca  contribuíra, em parte para me sentir insatisfeito e solitário como nunca.  (...) Eu me sentia em parte um irresponsável, por viver o dia-a-dia como um robô, deixando minha alma sofrer prejuízo. Levara então uma vida bem mais abundante, quando escrevia meus contos juvenis e compunha minhas poesias singelas. Julgava que minha existência era por demais preciosa, para ser consumida no meio de livros gastos pelo uso, em companhia de plantas mortas. (...) Estaria eu, com efeito, condenado tão incuravelmente ossificado, que não encontrasse mais nenhuma saída para me libertar dessa ocupação unilateral e sem vida? (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)
E continuando a reflexão, questiona-se se, de fato, estava  fadado a resignar-se e consumir a vida nessa “ocupação unilateral”. Certamente não! A resposta veio na forma de uma reação criativa que lhe franquearia um lugar de destaque entre os mais renomados pensadores que refletiram, com seriedade, sobre a essência, a razão de ser e o destino do universo, da natureza e do homem.
A resposta me parecia que tinha que ser  a reação, uma vez que me sinto jovem  e acho esse meu estado indigno. Por que não deixar de rastejar e levantar-me? Meu espírito acumulou, desde aqueles anos, um tesouro de novos conhecimentos, que reverteram em atividade criadora. Todos eles aguardam uma elevação e transfiguração na plácida luminosidade de Deus, que ainda hoje é, e sempre foi, o parente mais próximo do meus ser, o vizinho mais familiar da minha morada e o personagem mais amado do meu coração. Meus recursos linguísticos  não empobreceram, mas se enriqueceram em boa parte. Por que então haveria de deixar o mergulho na plenitude dos seres e acontecimentos, traduzindo em palavras a sua imagem, assim como o Senhor Deus converte em imagens sensíveis seus pensamentos eternos nos seres contingentes do mundo? Isto resultaria numa participação da obra criadora de Deus, o que de certo lhe daria gosto, porque seria feito com amor e reverência. (Rambo, Balduino. 1994. p. 16)
A reflexão que acabamos de registrar condensa as preocupações e as intenções que se encontram na base do pensamento e da cosmovisão do Pe. Rambo. Ele não deixa de ser um cientista, com especialidade em taxonomia botânica, reconhecido internacionalmente entre os seus pares. Acontece que ele é um representante não muito comum nesse meio. Foge do paradigma quase estereotipado do cientista frio, objetivo, que só crê nos resultados de suas pesquisas, avesso a reflexões filosóficas e recursos literários que não sejam técnicos e, obviamente só creem no que enxergam, observam com seus instrumentos ou no resultado dos seus cálculos. Mesmo que tenham fé não fica bem demonstrá-la em público. Colocá-la como uma variável determinante da pesquisa científica, é motivo suficiente para por em dúvida a consistência científica dos resultados das investigações. A opinião corrente manda que o cientista seja frio, objetivo, fáctico, avesso a divagações literárias e especulações de natureza filosófica e para muitos, de preferência,  sem fé e ateu. Pois, o Pe. Rambo foge a esse estereótipo. Sem a menor sem cerimônia classifica a prática científica  convencional, em muitos casos, como desgastante, levando à atrofia dos sentimentos  e à escravidão a serviço de  uma atividade sem sabor e sem alma. Ser cientista só então tem sentido e justificativa quando a serviço de um propósito maior. A atividade científica só então é legítima quando fornece os dados e as informações capazes de alimentar uma “atividade criadora” superior. E para ele a atividade criadora superior tem como destino final maior a “transfiguração na plácida luminosidade de Deus”. Portanto,  o Pe. Rambo faz ciência sobre o pressuposto da fé na existência de Deus. Mais ainda. A natureza no seu todo e nos seus componentes mais insignificantes, é o “livro dos livros abertos” da Revelação. Todas as outras revelações apresentadas em livros ou tradições orais dos povos, são formas peculiares de concebê-la, consolidadas pela tradição histórica de cada povo. Por isso mesmo são parciais e unilaterais. A Revelação autêntica, não viciada por nenhum cacoete histórico-cultural, é o livro aberto da Natureza. Aliás São Paulo na Carta aos Romanos chama a atenção para essa verdade. “Na verdade, as perfeições visíveis de Deus se tornaram visíveis depois da criação do mundo pela consideração das obras que foram feitas”. (Romanos. I-20).
O Pe. Rambo soma-se aos demais cientistas e cientistas-filósofos que concebem a Natureza como uma unidade estrutural, funcional e teoleológica. Concordando no essencial, cada um em particular, porém, iluminou-a a partir de uma perspectiva singular, inspirada na educação que recebeu, na formação acadêmica, na filiação confessional, na cosmovisão individual e não em último lugar nas características da sua personalidade. Erich Wassmann e Teilhard de Chardin, seus irmãos de Ordem, construíram complexos edifícios conceituais e trabalhosas argumentações, para a partir dos dados científicos, demonstrar a necessidade da existência de um Agente exterior que explica, em última análise a origem, a dinâmica e a razão de ser do Universo, da Natureza e do Homem. O Pe. Rambo pressupõe a existência de Deus Criador e partir desse dado, orienta a sua atividade científica e suas reflexões.
Chegou o momento de arriscar identificar quais as impressões, quais os sentimentos, quais as emoções e qual a compreensão, que povoavam o seu íntimo e qual a natureza das reflexões que o acompanharam nas suas  peregrinações  pela Natureza. Mais acima já destacamos que a parte mais volumosa dos escritos do Pe. Rambo, encontram-se no seu diário na forma de reflexões, não poucas vezes dirigidas a Deus na forma de diálogos. São literariamente ricas, rigorosamente científicas e filosoficamente densas. Ele próprio resumiu o que entendeu como Ciência e porque merece ser praticada.
A Ciência apenas possui então valor se é para cultivar o que o cientista tem de humano (Menschlichkeit) – (para a formação humana do cientista), quando empreendida e praticada a partir do todo e estruturada dentro do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais. (...) A ciência quando praticada com acerto é uma recriação espiritual do mundo, uma atividade semelhante à de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo. Balduino. Diário. 1/08/1949)
Salvo melhor juízo está condensado nesse texto a síntese, a essência,  a razão de ser para alguém dedicar-se à Ciência, a maneira de conduzi-la e a sua destinação maior. E a destinação maior consiste, antes de mais nada, em humanizar o pesquisador e o próprio cientista e este, por sua vez, irradiar o seu “humanum” – “Menschlichkeit”, para o mundo em seu derredor. Pressupõe-se, para tanto, que o cientista desenvolva sua tarefa, inspirado numa cosmovisão unitária, holística e integradora da natureza. E é nesse particular que encontramos o “nó górdio” que é preciso desatar. A questão não se resolve cortando-o com a espada, mas desatando-o. Para tanto requer-se da parte do cientista, do pesquisador, uma formação acadêmica de visão ampla  e abrangente, fundamentada na concepção do todo em que se move. Além de dominar profunda e rigorosamente o objeto da sua especialidade. É preciso que esteja em condições de transmitir com precisão e estilo, maestria e convicção, os resultados das suas reflexões. Vai na linha da proposta de formação conhecida na Inglaterra como “Oxbridge”. Por ela objetiva-se formar um cidadão completo, não um especialista bitolado, tolhido por viseiras. Este é o verdadeiro “gentelman”, uma pessoa dona de uma formação de bases amplas, profunda e segura na sua especialidade, comunicando-se com desenvoltura e em alto estilo. Os antigos romanos falavam em “vir bonus, peritus dicendi” – “um homem bom, completo, bem formado, que sabe comunicar-se com elegância.  Não é vulgar, ignorante, grosseiro, mas conhecedor e sabedor do que fala. Salvo melhor juízo, vai nessa direção o pensamento do Pe. Rambo ao definir como ele concebia o verdadeiro fazer ciência.
Ciência verdadeira começa apenas ali onde ela se tornou culto pessoal a Deus para o próprio pesquisador. E isso muito antes de qualquer ideia relativa a publicidade. Ciência vem a ser um decifrar dos vestígios de Deus e um respeitoso reescrever imitativo do Mundo, portanto, um estudo artístico de primeira ordem e grandeza. Ciência é uma contemplação contínua e a cópia desejada  dos planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Mundo. Uma vez que tudo isso equivale à reconstrução imitativa e ao entender por dentro das coisas de sua ordem hierárquica – tudo no espelho de uma arte verdadeira. Próprio, contudo, à toda obra de arte é que irradie da plenitude e ordem hierárquica de cada uma de suas partes, de toda a sua ancoragem no belo todo o Cosmos e seu parentesco com o arquétipo, que se encontra além de toda a beleza artística, despedindo de si um calor e um reflexo de luz, aos quais não foge nenhum homem de pensamento hierárquico. Apenas dali, portanto, a partir da plenitude de um riqueza interior, começa a atividade exteriorizada da Ciência, pois, sendo verdadeira, ela é um facho aceso e reluzente, similar aos sóis do firmamento, que avançam espalhando benefícios por sua mera existência. (Rambo, Balduino. Diário. 3 de junho de 1951)
Nessa passagem do Diário Pessoal, Pe. Rambo condensou a sua compreensão do Universo e da Natureza como um todo e nas suas partes. Definiu a razão última de ser da Ciência como sendo um “culto a Deus”. Por isso a tarefa do autêntico cientista resume-se em reescrever, redesenhar, em prosa e verso, essa grandiosa obra em homenagem ao Supremo Artista. O que importa, em última análise, como resultado final da atividade  científica, consiste em descobrir em a Natureza “os planos arquitetônicos secretos e misteriosos do Universo”. E identificando a arquitetura singular dos componentes da natureza, descobrir as relações estruturais, funcionais e hierárquicas que os inserem num todo maior, numa unidade superior, num “sistema global”, como diria Ludwig von Bertalanffy.

Para ele  Ciência se faz, em primeiro lugar, a partir da visão dos conjuntos naturais. A observação panorâmica dos conjuntos permite desenhar “grandes mapas descritivos”, os quais, por sua vez, sintetizam  a compreensão da Natureza no conceito de “Fisionomia”. Segue numa segunda fase a tarefa penosa e desgastante, mas indispensável de procurar, identificar e encaixar no “mapa”  as peças como que num quebra-cabeça. E o esforço não se limita em colocar os detalhes no seu devido lugar. Parece que nesse esforço esgota-se para a imensa maioria dos pesquisadores o conceito de “fazer ciência”. E aqui deparamo-nos com a razão de fundo porque o Pe. Rambo, de um lado sofre diminuição na sua estatura de cientista por uma minoria e os seus admiradores, que são a imensa maioria dos que entraram em contato com sua obra, admiram-no e chegam a venerá-lo.

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