A Natureza como Síntese #20

Em busca do “Ômega”
Depois dessa digressão voltemos a Teilhard de Chardin. Não há necessidade de insistir mais de que ele vai conduzindo toda a sua linha de  raciocínio em busca de um ponto de convergência da natureza global. Lida com a pluralidade das realidades naturais, supondo diante mão que, pela sua natureza, fazem parte de uma grande unidade. A visão unitária do universo e da natureza encontra-se implícita no macro-modelo que desenhou para orientar a coerência das suas reflexões. Tudo teve um começo no “alfa”. Nele encontrava-se o “estofo” do Universo, dotado de um potencial ilimitado de diversificação, de reagrupação, de complexificação, de compressão, até voltar novamente, no final, a uma unidade definitiva no “ômega”. No último capítulo do “Fenômeno Humano” que leva o titulo “A Terra Final”, a intenção de Teilhard fica mais clara:
O homem só continuará a trabalhar e a pesquisar se conservar o gosto apaixonado de fazê-lo. Ora esse gosto está inteiramente pendente da convicção, estritamente indemonstrável para a Ciência, de que o Universo tem um sentido e de que pode, ou até de que deve desembocar, se formos fieis, em alguma irreversível perfeição. Fé no progresso.
Podemos conceber cientificamente um melhoramento quase indefinido do organismo humano e da sociedade humana. Mas logo que se trata de materializar praticamente os nossos sonhos, constatamos que o problema continua indeterminado, ou mesmo insolúvel, a menos que admitamos, por uma intuição parcialmente supra-racional, as propriedades convergentes do Mundo a que pertencemos. Fé na Unidade. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 324)
Na citação que acabamos de registrar, Teilhard como cientista deixa clara a dificuldade em oferecer, via Ciência, uma perspectiva para uma resposta final e conclusiva para o desfecho da evolução do Homem. Percebe como, para entender o Universo e a Natureza, os cientistas desmontaram a realidade até as últimas peças. E no afã de, por esse caminho, encontrarem respostas de fundo para as hipóteses que orientam, cresce no mesmo ritmo do avanço de suas descobertas, a desconfiança de que não é por essa via que irão obtê-las. O fato é que o método  analítico indutivo próprio das Ciências, esconde uma armadilha que pode transformar-se num beco sem saída. Teilhard descreveu a situação mais ou menos assim. O método analítico oferece os instrumentos maravilhosos que se encontram na base de todo o progresso. Vem acompanhado, porém, de um risco que não pode ser desprezado. De tanto dissecar, desmontar, analisar, o pesquisador defronta-se com um monte de peças e perdeu a noção da máquina a que pertenceram. Se essa foi a situação em meados do século XX, o que dizer do começo do século XXI?. Em todo o caso e o que interessa é que ele descreveu o desfecho final para o qual deverão contribuir, tanto as Ciências Naturais, quanto as Ciências do Espírito.
Quando, no Universo movediço para o qual acabamos de despertar, olhamos as séries temporais e espaciais divergir e soltar-se à nossa volta e para trás, como camadas de um cone, fazemos Ciência pura. Mas quando nos voltamos para o lado do Ápice, em direção à Totalidade e o Porvir, forçoso nos é fazer também Religião
Religião e Ciência: duas faces, ou fases conjugadas de um mesmo ato completo de conhecimento, - o único que pode arcar, para contemplá-los, medi-los e consumá-los, o Passado e o futuro da Evolução.
No reforço mútuo dessas duas potencias ainda antagônicas, na conjunção da Razão e da Mística, o Espírito humano, pela própria natureza de seu desenvolvimento, está destinado a encontrar o extremo de sua penetração, com o máximo de sua força viva. (Teilhard de Chardin.  1986. p. 324)
Na sua obra complementar ao “Fenômeno Humano”, “ Homem na Natureza”, Teilhard formulou a conclusão de todo o seu esforço científico e as reflexões que o acompanham.
Se o polo de convergência psíquica no sentido do qual gravita, organizando-se, a Matéria não fosse nada de diferente, nem nada mais que o agrupamento totalizado, impessoal e reversível, de todos os grãos do Pensamento cósmicos momentaneamente refletidos uns nos outros, o enrolamento do Mundo sobre si mesmo desfazer-se-ia, na própria medida em que a Evolução, a progredir, tomaria consciência mais clara do beco sem saída em que terminaria. Sob pena de ser incapaz  de formar o fecho de abóbada para a Noosfera, “Ômega”só pode ser concebido como o ponto de encontro entre o Universo chegado ao limite de centração e um outro Centro ainda mais profundo – Centro auto subsistente e Princípio absolutamente último de irreversibilidade de personalização: o único verdadeiro “Ômega”. E julgo é neste ponto que se insere,  na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução.  (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).
Pelo visto fica claro que, salvo melhor juízo, Teilhard de Chardin direcionou todo o seu esforço de cientista, de etnógrafo, de etnólogo, de historiador, de geógrafo, de filósofo e, porque não, de teólogo e místico, par demonstrar que o Universo é uno na sua imensa Pluralidade. Essa unidade somente é possível se houve um começo único, um “alfa”. Além disso exige também que o desfecho da evolução que levou à Pluralidade ao extremo numa primeira fase, numa segundo voltou a concentrar-se (lembramos a metáfora do globo terrestre), em busca de um ponto de chegada final único e definitivo: o “Ômega”. Apesar da pluralidade somada a uma aparente dispersão, uma linha mestra atrelada a uma teleologia, garantiu e garante ainda a Unidade radical. E se há uma teleologia, uma causa eficiente e inteligente – um “Alfa”, este tudo planejou, pós em andamento e direcionou a um objetivo final – o “Ômega”. A lógica dessa cosmovisão só podia terminar numa conclusão final, aquela que o próprio Teilhard formulou no “Lugar do Homem na Natureza”. O “Alfa” confunde-se com Deus Criador e o “Omega”, o mesmo Deus, princípio, alma, razão de  ser e  destino final do Universo, da Natureza e do Homem. “Julguo ser neste ponto que se isnere, na Ciência da Evolução, o problema de Deus – Motor, Colector e Consolidador da Evolução (Teilhard de Chardin. 1956. p. 149).
Conclusões sobre a cosmovisão de Teilhard de Chardin
As reflexões que nos levaram até aqui deixam claro de que sempre houve preocupação ao nível da Ciência e, evidentemente, da Filosofia e da Teologia, em relação aos questionamentos de fundo, implícitos no Universo, na Natureza e no Homem. Platão, Sto. Agostinho, Nicolau de Cusa, Spinosa, Hans Driesch, Oscar Hertwig, Karl von Baer, Erich Wassmann, Teilhard de Chardin, Theodosius Dobzansky. Ludwig von Bertalanffy, e, mais recentemente Francis Collins, Edward Wilson, entre outros, formularam as suas respostas. Cada qual, partindo de um ponto de vista particular e singular, fez suas observações e chegou a uma conclusão coerente com os dados que dispunha, interpretados de acordo com sua cosmovisão peculiar. Por caminhos diferentes e partindo de ângulos de observação originais, chegaram à mesma  conclusão. Na imensa Pluralidade que nos cerca, e não poucas vezes, nos confunde, percebe-se uma Unidade que, de um lado explica a própria diversidade e, do outro, confere-lhe uma razão de ser a ultrapassa. Em outras palavras. Estamos diante de doutrinas diferentes que iluminam a partir de perspectivas diferentes a Verdade que é uma só. “Doctrina multiplex, Veritas una” – “As doutrinas são muitas, a Verdade uma só”
A justiça manda que  nessa galeria de sábios não se omita o nome do Pe. Balduino Rambo (1905-1961),  contemporâneo de Teilhard de Chardin (1881-1951) e Ludwig von Bertalanffy (1901-1973). Em comum com primeiro merece lembrar que foi jesuíta, condição aliás partilhada também com Erich Wassmann (1859 – 1931). Acontece que não há registros, pelo menos até agora, de algum contato por correspondência entre os três nem referência um do outro nas suas obras científicas. De que o pensamento de Erich Wassmann era-lhe familiar pode ser deduzido do fato de em seus espólio encontrar-se a obra clássica  dele: Die Moderne Biolgie und Entwicklungstheorie. A ausência de um intercâmbio de ideias mais permanente  explica, pelo menos em parte, os caminhos aparentemente opostos que os dois jesuítas, Rambo e Teilhard escolheram para chegar ao mesmo objetivo. Aquele que se dá o trabalho de examinar um pouco mais de perto o “Fenômeno Humano”, percebe que o caminho que Teilhard foi, senão audacioso, pelo menos de uma considerável dificuldade. A execução do plano da obra que concebeu, exigiu uma complexa arquitetura conceitual, para dar suporte e consistência à lógica ao  texto. Logrou dessa forma garantir coerência à grandiosa, para muitos, genial concepção da origem, da evolução  e do destino do Universo, da Natureza e do Homem. Como cientista lançou mão dos múltiplos conhecimentos nas diversas áreas das Ciências Naturais e Humanas, para assegurar  objetividade à sua obra e, por isso mesmo, aceitação ou, pelo menos, respeito nas Academias de Ciências. O resultado compensou o esforço, como demonstra o depoimento de Jean Piveteau da Academia Francesa de Ciências, no prefácio que escreveu para “O Lugar do Homem na Nautreza”. É compreensível, pois, estamos  na primeira metade do século X, que sua obra como um todo e, consequentemente sua proposta de mega-síntese, alvoroçasse os guardas da ortodoxia religiosa. O mesmo já acontecera no começo do século com Erich Wassmann, impedido de publicar a terceira  edição da sua obra “Moderne Biolgie”. Estavam em pleno vigor os pesados documentos de Pio X, que proibiam aos católicos  aceitar o evolucionismo. O que dizer então dos religiosos ? Tanto Wassmann quanto Teilhard eram jesuítas e como tais deviam obediência irrestrita às determinações emanadas do magistério superior da Igreja. Wassmann falecido em 1931, sofreu mais diretamente o impacto dos documentos pontifícios do começo do século. Nem por isso deixou de aprofundar seus estudos, publicar os resultados e concluir a sua proposta de harmonização entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas, tão original quanto fácil de entender. Memoráveis foram os seus confrontos nos debates públicos em Berlim, com os maiores expoentes do Monismo de Ernest Haeckel. Sua cosmovisão e as matérias que a franquearam ao grande público, foram publicadas  na revista Stimmen der Zeit, entre 1910 e 1930.
Teilhard de Chardin e Balduino Rambo consolidaram ambos a suas compreensões do Universo, da Natureza e do Homem, entre 1940 e 1960. Vale observar que a Igreja por meio do Magistério Superior Eclesiástico, dava sinais inequívocos de aproximação com o universo científico. Pio  XII, eleito em fevereiro de 1939 e falecido em outubro de 1958, fundou a Academia Pontifícia de Ciências, um fórum de alto nível para o qual eram convidados os expoentes das diversas especialidades, com a finalidade de implementar o diálogo entre a Ciência, a Filosofia e a Teologia. Essa mudança  teve o mérito de atenuar as tensões entre a Ciência e o rigor doutrinário imposto por Pio X. Foi-se generalizando um arrefecimento gradativo das tensões  e uma lenta aceitação do transformismo, como um caminho legítimo para conceber o mundo, também para os católicos. Essa tendência tomou corpo e tornou-se uma das balizas sinalizadoras das investigações, e, de modo especial, das reflexões  de cientistas católicos. De outra parte, as autoridades eclesiásticas abandonaram sensatamente forçar os religiosos cientistas a pesquisar,  imobilizados  pela camisa de força da interpretação literal da Bíblia ou a rejeição do transformismo a qualquer preço. Assim, Teilhard e Balduino Rambo gozavam da liberdade para desenvolver suas investigações, suas observações e, de modo especial, suas reflexões, num cenário desenhado pelo evolucionismo, sem serem chamados à ordem ou estigmatizados como heterodoxos. É verdade que Teilhard foi, por algum tempo,  penalizado por um tal ou qual ostracismo e chamado a explicar-se  perante as autoridades eclesiásticas e da própria Ordem. Pelo que consta, o Pe. Rambo nunca foi chamado formalmente à ordem por defender em sala de aula e em palestras a sua convicção de evolucionista. De um lado não expôs-se tanto quanto o irmão de Ordem, porque sua especialidade era a taxonomia botânica, pouco propícia para uma discussão na linha da evolução e, do outro lado, porque não chegou a escrever uma síntese como o fez Teilhard no “Fenômeno Humano”. A questão foi posta num nível oficial definitivo pela Igreja com a encíclica “Divino Aflante Spiritu” de 1943[1] e a  “Humani Generis” de 1950.[2] Em resumo esses documentos remetem a face científica relativa ao Evolucionismo para a Ciência e para a Filosofia e a Teologia, os aspectos privativos a essa esfera. 



[1] Em 30 de setembro de 1943, Pio XII publicou a Carta Encíclica Divino afflante spiritu. Nela o papa recomenda a tradução da Sagrada Escritura das línguas originais em que foram escritas para substituir  a tradicional Vulgata de São Jerônimo. Esse recurso às línguas originais, tomando em consideração o gênero literário, o ambiente histórico cultural, abriria a possibilidade de interpretações alternativas do textos sagrados. Foi o primeiro e decisivo passo para o reencontro e o efetivo diálogo entre a Ciência e a Igreja Católica.
[2] Humani generis, promulgada por Pio XII em 12 de agosto de 1950 libera oficialmente o estudo e aceitação da teoria da evolução contanto que se preserve a doutrina relativa à criação direta da alma por Deus. O documento ensina que “A Autoridade Docente da Igreja não proíbe, tomando em consideração o presente estado da Ciência e da Sagrada Teologia, as pesquisas e discussões, baseadas na experiência dos dois campos, que envolvem a doutrina da Evolução, na medida em que aceita a origem do corpo humano a partir de um ser vivo anterior, ressalvando a criação da alma como um ato divino imediato”.

This entry was posted on quarta-feira, 7 de dezembro de 2016. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.