Teilhard
de Cahrdin -5
Antropogênese -2
São fundamentais para Teilhard os
conceitos de “alfa” e “ômega” emprestados ao alfabeto grego. O sentido
metafórico de “começo” e “fim”, melhor talvez, “ponto de partida” e “ponto de
chegada”, não deixa dúvidas. Entre esses dois polos acontece na perspectiva macro histórica, o
ponto de partida, o acontecer e o ponto de chegada da evolução do Universo, da
Natureza e do Homem, assim como a evolução individual de cada um dos
componentes que integram o todo. Do “estofo” primordial, existente lá no começo
de tudo, confundindo-se com o “alfa”, resultou a matéria prima dos átomos. A
partir desse nível entraram em ação os processos que puseram em andamento e
aceleraram em ritmo geométrico a dinâmica da evolução, pela ação combinada da
“agregação”, da “repetição geométrica”, da “complexificação”, da “compressão” e
da “consciência”. Os meandros, as sinuosidades, os aparentes becos sem saída e
os recursos teóricos e metodológicos dos quais o autor do “Fenômeno Humano” e
do “Lugar do Homem na Natureza” se valeu, para não trair a perspectiva
científica, já foram motivo de
preocupação em outra parte dessas reflexões.
De um lado Teilhard esforça-se em deixar
claro de que lida com a evolução na
perspectiva das Ciências Naturais. Do outro, entretanto, sua formação
filosófica e teológica e, sobretudo, seu compromisso com a ortodoxia,
complicam-lhe em muito a caminhada. São, em primeiro lugar, os momentos
cruciais que marcaram a história da evolução: a origem da energia, o “estofo” do universo que a uma certa altura leva
à matéria; à origem da vida; o salto do nível do instinto para o patamar da inteligência reflexa. Em segundo
lugar, a preocupação de como surgiu a matéria e como tudo é conduzido por uma
teleologia, culminando num ponto de chegada pré-estabelecido. Entende-se a
dificuldade de Teilhard em movimentar-se nesse campo minado. Fiel ao propósito
de não se deixar levar pela tentação de, à maneira de um “deus ex machina”,
recorrer a referenciais alheios às Ciências Naturais, não trabalha com
conceitos como causalidade suficiente,
destino, criação, revelação natural, criação, forças sobre ou preter naturais.
Contudo elas devem ter influído na natureza e no rumo das suas reflexões
motivadas pelas observações feitas a partir da abordagem científica.
O arcabouço conceitual pelo qual procura
tornar compreensível a sua genial cosmovisão do universo, da natureza e do homem,
impressiona pela coerência. Tudo começa no polo “alfa” que se caracteriza
aparentemente por uma grande simplicidade. Este oculta, porém, um potencial
indefinido de desdobramentos que vão-se concretizando no decorrer da evolução
tanto no plano macro, quanto micro e nano cósmico. O “fenômeno humano nada mais
significa do que a antropogênese inserida organicamente, “sistemicamente”,
diria von Bertalanffy, nesse processo global. A evolução acontece pela
agregação, pela repetição geométrica pela complexificação. Com o acirramento da
complexificação acentua-se a “compressão” e com ela os níveis de “consciência”
tornam-se cada vez mais perceptíveis e mais atuantes. Se na primeira fase da evolução predominou a diversificação,
na segunda acentua-se gradativamente a compressão, até que tudo seja subsumido
num único polo de chegada, o “ômega”.
Os processos responsáveis por essa
dinâmica e seus resultados são explicados e explicáveis pela evolução natural.
Há, porém, três momentos nessa história de bilhões de anos em que as coisas se
complicam. São, na verdade, situações limite em que qualquer cientista sem
preconceitos, pergunta: Meu arsenal metodológico e conceitual está em condições
de dar uma resposta que convença, ou devo remeter essa tarefa para uma outra esfera
que dispõe dos instrumentos adequados para lidar com o problema? Os três momentos
críticos são, como já foi mencionado mais de uma vez: como originou-se a energia, matéria prima do
universo; como surgiu a vida com suas características de sistema aberto que se
alimenta, reproduz e locomove-se e, por instinto orientam-se no meio em que
vive; como aconteceu a hominização que dotou o cérebro do homem da capacidade
de manifestações operações de inteligência reflexa. Não é aqui o lugar para
requentar essa questão a nível teórico e genérico. Nosso interesse
resume-se na maneira como Teilhard lidou
com o problema. Fiel ao propósito de ocupar-se também com essa problemática
intrincada no contexto da evolução natural, não se pode esperar que remeta a
solução para algum “deseign inteligente”, ou, o que ninguém estranharia,
jesuíta que era, declarar que as Ciências Naturais não têm como dar uma
resposta definitiva e, portanto, resta a “criação” como solução. Optou pela
saída que qualquer cientista honesto adota, isto é, trabalhar com esse tipo de
conclusões como sendo hipóteses e nada mais. É o que ele deixa claro ao
introduzir o capítulo primeiro de “O
Fenômeno Humano”, ao qual deu o titulo: “O Estofo do Universo”.
O estofo de universo: esse resíduo último das análises sempre mais
minuciosas da Ciência ... Não desenvolvi com esta, para saber descrevê-lo
dignamente, aquele contato direto, familiar, que faz a diferença entre o homem que leu e o homem que
experimentou. E sei também do perigo que existe em tomar, como materiais de uma
construção que se desejaria duradoura, hipóteses que, na própria mente daqueles
que as propõem, não devem durar mais do que uma manhã.
Em compensação, sob a variedade de teorias que se vão amontoando umas
sobre as outras, surge um certo número de caracteres que aparecem
obrigatoriamente em qualquer uma das explicações propostas para o universo. E
dessa “imposição” definitiva, na medida em que ela exprime condições inerentes
a toda a transformação natural, mesmo viva, que deve necessariamente partir e
que pode decentemente falar o
naturalista empenhado num estudo geral do Fenômeno Humano. (Teilhard de
Chardin. 1986. p. 41)
É, portanto, ao “estofo” do universo que o
autor do Fenômeno Humano atribuiu as potencialidades para que a evolução
pudesse acontecer e levar aos incontáveis desdobramentos, inclusive a vida.
Fica claro também que, como cientista,
lida com hipóteses que “não duram mais do que uma manhã”. Como cientista
não propõe mais uma hipótese sobre a origem e a natureza do “estofo” do
universo. Prefere adotar a linha de
raciocínio ditada pelo fato objetivo de que a natureza evolui e se transforma.
Trabalha com o pressuposto de que no “estofo” do universo encontram-se em
potencial, desde a sua origem, os elementos e os dispositivos que, no decorrer
de bilhões de anos de evolução, ao que hoje presenciamos no macrocosmos, no
microcosmos e no nanocosmos. No entender de Teilhard essa gigantesca
construção, tanto no tamanho quanto na diversidade e complexidade, foi possível
porque o “estofo” primordial previa a agregação, a repetição geométrica, a
complexificação e a compressão como as ferramentas para realizar a evolução. Na
medida em que a compressão acentua a “concentração”, percebe-se com crescente
evidência a presença da consciência, que se aperfeiçoa na medida que se acentua
a “concentração”. Mas no fundo, no fundo, a trajetória da evolução vai sendo
orientada por um plano que permite supor uma razão de ser e não uma mera
casualidade. O “alfa” como ponto de partida, a diversificação e a complexifiação acompanhadas e,
finalmente, superadas pela concentração, terminando no ponto “ômega”, levam à
conclusão de que o autor supõe uma
teleologia, evitando que a dinâmica se desgarre do caminho. Conforme Teilhard,
somente aceitando uma teleologia,
entende-se a evolução em todos os seus níveis. O potencial contido no ”estofo” do universo
materializou-se na complexa realidade que vem a ser o mundo inorgânico, orgânico
não vivo. Sua pedra angular é o átomo. Multiplicando-se quantitativa e qualitativamente
pela agregação, repetição geométrica, complexificação e compressão, levou ao
nível em que,
(...) é perfeitamente concebível que um salto essencial seja possível
entre dois estados ou formas, mesmo inferiores, de consciência. Para retomar e
resolver, nos seus próprios termos, a dúvida anteriormente formulada, há
efetivamente, eu direi, muitas maneiras diferentes de um ser possuir um Dentro.
Uma superfície fechada, de início irregular, pode-se tornar centrada. Um
círculo pode aumentar a sua ordem de simetria tornando-se uma esfera. Quer pela
ordenação das partes, quer pela aquisição de uma dimensão a mais, nada impede
que o grau de interioridade próprio de um elemento cósmico possa variar ao
ponto de se elevar bruscamente a um novo escalão.
Ora que semelhante mutação psíquica deve ter precisamente acompanhado a
descoberta da combinação celular, eis que resulta imediatamente da lei que,
conforme atrás reconhecemos, regula em suas relações mútuas o Dentro e o Fora
das coisas. Acréscimo da matéria: portanto correlativamente diríamos, aumento
de consciência no meio sintetizado. Transformação “critica” no arranjo íntimo
dos elementos, devemos acrescentar agora: logo, “ipso facto”, mudança de
“natureza” no estado de consciência do Universo.
E agora consideremos novamente, à luz destes princípios, o assombroso
espetáculo apresentado pela eclosão definitiva da Vida na superfície da Terra
Juvenil. Esse ímpeto para a frente na espontaneidade. Esse luxuriante
desencadeamento de criações fantásticas. Essa expansão desenfreada. Esse salto
no improvável ... Não será aí o acontecimento que a teoria nos permite
esperar?. A explosão da energia interna consecutiva e proporcionada a uma superorganização
fundamental da Matéria?.
Realização externa de um tipo essencialmente novo de agrupamento
corpuscular, permitindo a organização mais flexível e melhor centrada de um
número ilimitado de substâncias tomadas e em todos os graus de grandeza
particulares; e, simultaneamente, aparecimento interno de um novo tipo de
atividade e de determinação conscientes: por essa dupla e radical metamorfose
podemos razoavelmente definir, naquilo que ela tem de especificamente original,
a passagem critica da Molécula para a célula, - “o Passo da Vida”. (Teilhard de
Chardin. 1986. p. 91)
Nos parágrafos que
acabamos de citar, Teilhard deixa transparecer que, como cientista, está lidando com um
desafio de boas proporções. Em linguagem popular diríamos que tem uma “batata
quente” na mão. Vale-se de recursos conceituais e literários até surpreendentes
no linguajar de um cientista. De qualquer forma parece legítimo perceber nas
linhas, mais ainda nas entrelinhas, uma lógica que no fundo orienta a evolução,
assim como ele a entendeu. O “estofo” de que e feito o Universo e a Natureza,
concentra em si o potencial para tornar-se realidade na medida em que as
condições necessárias estiverem presentes. Elas tornam-se efetivas como
realidades presentes na medida em que a agregação, a repetição geométrica, a
complexificação e a compressão, levam a sempre novos e mais altos níveis de
organização. Cada nível de organização da matéria, por sua vez, exige um passo
adiante na preparação ao que o autor chamou de “passagem critica da Molécula
para a Célula, - o Passo da Vida”. À resposta para a pergunta se essa “passagem
critica” é explicável por processos de natureza físico-química atuantes na
história da evolução natural ou não. Teilhard responde:
Nada, em si mesmo, impediria que, em massas infinitesimais, a substância
viva esteja ainda a nascer sob os nossos olhos. – Mas nada, de fato, parece
indicar, - tudo pelo contrário, parece dissuadir-nos de pensar assim.
(Teilhard. 1986. p. 96)
Teilhard apoia a sua afirmação nas
experiências de Pasteur que comprovaram
que, nas condições atuais, a vida não é gerada em laboratório, num
meio previamente esterilizado. Em
princípio, porém, esse fato não prova nada, nem a favor, nem contra, a gênese
da célula no passado remoto da evolução. O uso universal dos métodos de
esterilização comprova que, nos limites das investigações de hoje,
o protoplasma não mais se forma a partir de substâncias inorgânicas da
Terra. E isso nos obriga, para começar, a revisar certas ideias por demais
absolutas que podíamos alimentar sobre o
valor e o uso, em Ciências, das
explicações pelas “causas atuais”. (Teilhard. 1986. p. 96)
Como se pode ver tanto a origem e a
existência da matéria prima, “o estofo “ do Universo, quanto a manifestação da
vida na célula, desafiaram, como desafiam ainda, o potencial explicativo das
Ciências Naturais. O terceiro passo na história da evolução, que coloca a
Ciência diante de um desafio igualmente, ou muito mais intrigante, oferece a
superação da “consciência instintiva pela consciência reflexa”, do “saber
instintivo para o saber reflexo”, da “inteligência instintiva para a
inteligência reflexa, em outros termos “a Hominização”. Teilhard resumiu o
tamanho do desafio.
Numa perspectiva puramente positivista, o Homem é o mais misterioso e o
mais desconcertante dos objetos com que a Ciência se depara. E, de fato, temos
de confessar, a Ciência não lhe encontrou ainda um lugar nas suas
representações do Universo. A Física chegou a circunscrever
provisoriamente o mundo do átomo. A
biologia logrou estabelecer uma certa ordem nas construções da Vida. Apoiada na
Física e na Biologia, a Antropologia, por sua vez, explica, mais ou menos, a
estrutura do corpo humano e certos mecanismos da sua fisiologia. Mas uma vez
reunidos todos esses traços, o retrato manifestamente, não corresponde a
realidade. O homem, tal como a Ciência o consegue reconstruir hoje em dia, é um
animal como os outros, tão pouco separável, por sua anatomia, dos antropóides,
que as modernas classificações da Zoologia, retornando à de Lineu, o incluem
com eles na mesma superfamília dos Homínidas. Ora, a julgar pelos resultados do
seu aparecimento, não constitui ele precisamente algo totalmente diferente ?
Salto morfológico ínfimo; e, ao mesmo tempo, incrível abalo das esferas
da Vida: todo o paradoxo humano ... E toda a evidência, por conseguinte, de que,
na suas atuais reconstruções do Mundo, a Ciência negligencia um fator
essencial, ou melhor dizendo, uma dimensão inteira do Universo.
Entre os últimos estratos do Plioceno, donde o Homem está ausente, e o
nível seguinte, onde o geólogo deveria ser sacudido de estupefação ao
identificar os primeiros quartzos lascados, o que é que se passou ?. E qual é a
verdadeira dimensão do salto. (Teilhard. 1986. p. 185)