Teilhard
de Chardin -4
A
Antropogênese
Não há dúvida de que a biogênese, o
aparecimento da vida com a célula, significou o ponto de partida para, o
pressuposto condicionante, para que a evolução avançasse, sem sobressaltos,
numa trajetória harmônica em direção ao
“ômega”. Uma vez acontecida a Biogênese, a próxima “estação” de
significado crucial nessa jornada cósmica, vem a ser a Antropogênese. Convém lembrar que não se trata apenas de
vencer mais uma etapa importante na complexificação da natureza. A gênese da
matéria, a biogênese e a antropogênese podem ser consideradas como sendo os
marcos de referência que balizam o rumo da evolução do universo ao encontro do
“ômega”, ponto de convergência e, mais do que isso, a própria causa e razão de
ser do universo, da natureza e do homem.
Depois da incursão nos meandros do
fenômeno, da gênese e da natureza da vida,
até o ponto em que os conhecimentos científicos o permitem,
Teilhard persegue as pegadas deixadas
pela evolução da vida, em busca da realização máxima de que a matéria viva foi
capaz: o Homem. Como o foi até aqui, o modelo dinâmico do globo terrestre
continua oferecendo o cenário gráfico
sobre o qual se desdobra gradativamente seu raciocínio e formula as suas
conclusões. O polo sul, o “Alfa” é o ponto de partida. Desse ponto de
partida evolução gera uma quantidade e,
principalmente uma diversidade espantosa de estruturas e formas de organização
da matéria, as quais, à maneira dos meridianos vão se abrindo em leque até o
máximo na altura do equador. Do equador em direção ao polo norte, voltam a
convergir até fundir-se num ponto só, o “Ômega”. O que acontece com universo e
a natureza como um todo, repete-se com a vida animal e vegetal em geral, com
cada espécie em particular e com o homem também. Acompanhemos Teilhard na caminhada do homem desde o seu
Alfa até o seu Ômega.
“O homem entrou sem alarde no mundo”
(Teilhard de Chardin.1986. p. 198). Com
esta observação Teilhard quer afirmar apenas que a entrada do homem no cenário
da natureza, não foi nada de espetacular vista na perspectiva da evolução
natural. As descobertas da paleoantropologia que se multiplicaram no decorrer
dos últimos cem ou mais anos, apontam para uma trajetória, sob o aspecto
anatômico morfológico e filético, em
nada diferente daquela das demais espécies de animais. “Quanto mais a Ciência
sonda o passado da humanidade, mais
esta, enquanto espécie, se conforma às regras e ao ritmo que, antes dela,
regeram o aparecimento de cada novo rebento na Árvore da Vida” (Teilhard de
Chardin. 1986. p. 199). A entrada, a presença e a dispersão dos grupos humanos
foi tão discreta ao ponto de sabemos pouco de concreto sobre essa história que
seguramente se estendeu por dezenas,
centenas de milhares, quem sabe milhões de anos. Quando os instrumentos
de pedra lascada, prova definitiva da sua presença, representantes da espécie humana, já podiam
se localizados em todo o continente africano e por toda a Euro-Ásia até Pequim.
Para Teilhard, mesmo que a ciência
dispusesse ou com o tempo viesse a dispor, dos elementos materiais suficientes
para reconstruir a gênese e a trajetória do filo humano na sua ascensão
anatômica e morfológica, em detalhes e sem saltos e lacunas, a questão
realmente de fundo que envolve o homem, continua em aberto. O tamanho do
desafio fica claro na seguinte observação.
Para apreender a amplitude verdadeiramente cósmica do fenômeno, seria
necessário que seguíssemos suas raízes, através da vida, ate os primeiros
envolvimentos da terra sobre si mesma.
Mas se quisermos compreender a natureza específica e adivinhar o segredo do
Homem, outro método não há senão observar o que a Reflexão já deu, e o que ela
anuncia, para diante. (Teilhard de Chardin. 1986. p. 202).
Antes de sinalizar para uma resposta que
ele, como jesuíta e como tal versado em Filosofia e Teologia, necessariamente
irá remeter a esse nível, Teilhard esgotou todas as aproximações pelo lado
ciência de que dispunha. Acompanhou passo a passo a trajetória da espécie
humana, desde o momento em que testemunhos materiais não deixam dúvidas sobre a
sua presença no cenário da vida. No final do plioceno, última fase do
terciário, a superfície da terra moderna recebeu seus acabamentos definitivos com grandes depósitos de areia, argila e aluvião.
Nessa paisagem reinavam mastodontes,
cavalos primitivos, tigres dente-de-sabre e nos oceanos uma fauna semelhante à atual. Até aquele momento não há
vestígios da presença do homem. Mas é no começo e durante a maior parte do
quaternário com a instalação de um clima mais frio e mais úmido, caracterizado
por períodos de expansão do gelo sobre vastas áreas continentais (glaciações), intercalados por períodos de degelo (interglaciais),
acompanhadas com a formação de morainas, deposição de areias glaciais,
transporte de blocos erráticos, formação de depósitos de loess e pântanos de
turfa, o cenário natural para receber o homem está completo. Povoam esse
cenário manadas de mamutes, rinocerontes, renas, ursos das cavernas, alces
gigantes e representantes de todas as espécies de animais e vegetais
contemporâneas ao homem.
“E o homem entrou no mundo sem alarde”. ( ... ) Quanto mais se
multiplicam os achados fósseis humanos,
quanto mais se esclarecem seus caracteres anatômicos e sua sucessão geológica,
- mais evidente se torna, por uma convergência incessante de todos os indícios
e de todas as provas, que a “espécie” humana, por única que seja a razão do
plano entitativo a que a ergueu a
Reflexão, nada abalou a Natureza no momento de seu aparecimento. Com efeito,
quer a observemos no seu ambiente, - quer a consideremos na morfologia de sua
haste, - quer a inspecionemos na estrutura global do seu grupo, ele emerge
fileticamente aos nossos olhos exatamente como qualquer outra espécie. (O
Fenômeno Humano,Teilhard de Chardin. 1986.
p. 198)
Em algum momento no final do Plioceno,
final do Terciário ou inícios do Quaternário, provavelmente em alguma savana da
África, cintilou pela primeira vez a centelha da Reflexão. Antes e durante as
mudanças geomorfológicas ocorridas durante o Plioceno, não há vestígios
materiais confiáveis atestando a presença do homem. Por via indireta conclui-se
por ela pois, quando termina a acomodação dos terrenos aparecem entre os
depósitos de aluvião, areia e cascalhos, os testemunhos fósseis do Homem de
Java e do Sinântropo da China. O número e a variedade de peças permite hoje um
estudo comparativo bastante confiável entre esses dois grupos humanos da Ásia
Oriental. Por si só essas peças paleoantropológicas não provariam
definitivamente a presença do homem, se não viessem associadas a artefatos de
pedra lascada, localizados em toda a África e
Europa Ocidental até a Ásia Meridional. Diante dessa realidade dois
fatos complementares merecem observação. Primeiro. Admitindo a convicção de
Teilhard, assim como da maioria dos paleoantropólogos, de que a espécie humana é monofilética, isto
é, descende de um único tronco inicial do qual evoluíram os tipos raciais
morfológicos já extintos e ainda hoje espalhados pelo mundo, o homem surgiu em
algum ponto geográfico definido. Pelo que os dados apontam esse acontecimento
situa-se na África. Segundo. Partindo do pressuposto de que os instrumentos de
pedra lascada são prova conclusiva da presença da Reflexão ou, se quisermos da
Inteligência Reflexa, conclui-se necessariamente que a história do homem recua
em muitos milênios sobre os quais temos informações tão escassas, que as
conclusões permanecem no terreno da especulação ou da hipótese. Uma coisa
parece certa. Para que a humanidade se espalhasse por tão vastas áreas foram
necessários, nas condições de então, períodos contados em milênios, em dezenas
de milênios e, provavelmente em centenas de milênios. Pois bem. Mas não é
exatamente isto que nos preocupa neste momento. De fato em última análise pouco
ou nada importa a aparência externa que
caracterizou o homem nos diversos estágios da sua ascensão evolutiva. Se há
provas que o Sinântropo, o Homem de Java, o Homem de Trinil, o Homem de
Heidelberg ou o Homem de Neandertal, foram portadores de Inteligência Reflexa,
então foram igualmente humanos como o Homo Sapiens de hoje, apesar de suas
aparências mais ou menos teromorfas ou simiescas.
O enorme
e complicado desafio, de como harmonizar a visão do humanismo cristão
tradicional com os conhecimentos
científicos, que conferem uma compreensão cada vez mais real e pragmática
ao mundo que nos cerca. foi explicitado por Teilhard nas páginas do
“Fenômeno Humano” e em “O Lugar do Homem na Natureza” Como cientista avança até
esgotar o potenciais teóricos, metodológicos e experimentais que a ciência oferece,
para explicar o “Fenômeno Humano”. Com a entrada da “Noosfera”, algo de inédito
a um nível muito mais profundo do que com a entrada da “Biosfera”, dá um
impulso novo a toda a natureza. Nada daquilo que preparou o caminho para o fato
absolutamente novo, inusitado e inédito, foi superado. A energia primordial, os
átomos, as moléculas, as macromoléculas e as mega moléculas, as células, os
protozoários e os metazoários em todos os níveis de evolução, em todas as suas
formas e desdobramentos evolutivos, continuam como sempre foram. A “consciência”
cósmica continua presente em toda a parte, “desenrola-se”, na terminologia de
Teilhard, explicita-se e dita o rumo dos acontecimentos e garante a
sobrevivência instintiva dos animais. Com a entrada em cena da Reflexão, da
Inteligência Reflexa aconteceu um salto de qualidade como jamais houve antes.
Inaugurou o predomínio da Noosfera. O homem como o animal sabe, mas
distancia-se radicalmente desse nível pela capacidade de Reflexão, a capacidade
de ser capaz de saber o “porque” do seu saber”. Essa formulação oculta o abismo
que separa o saber instintivo do saber reflexo ou racional. A Reflexão permite
ao homem analisar, distinguir, ponderar, avaliar, escolher e optar por caminhos, soluções e vias alternativas para enfrentar as situações concretas mais variadas.
Fica claro que tentar entender o leque sem
fim de potencialidades implícitas que acompanham a chegada da Noosfera, exige o
recurso a um instrumental de outra
natureza daquela que a Ciência oferece com seus métodos e aparatos. Depois de
aperceber-se que já não tinha nada a esperar, via Ciência, para avançar na
compreensão dos mistérios mais intrigantes do “Fenômeno Humano”, tanto no final
do livro “O lugar do Homem na Natureza” quanto do “Fenômeno Humano”, Teilhard,
segundo seu grande admirador e comentador Jean Piveteau, da Academia Francesa
de Ciências, observou:
Na última parte da obra, o Padre Teilhard de Chardin parecerá mais
filósofo que homem de ciência, e muitos dos que admiraram o paleontólogo na sua
interpretação da evolução do mundo vivo, sentirão alguma dificuldade em
acompanhar o autor nas suas previsões. Mas a todos sensibilizará o pensamento
lúcido e firme e a autoridade intelectual de um dos maiores espíritos do nosso
tempo. (Teilhard de Chardin. 1956. p.
11)
O raciocínio que leva Teilhard ao projetar
o futuro do “Fenômeno Humano” ou a evolução da “Noosfera” como uma realidade
perfeitamente integrada na evolução universal, pode até ser mais difícil de ser acompanhado, mas não
deixa de ser “lúcido e firme” e, sobretudo coerente com a “Complexidade –
Consciência” que serve de eixo e guia a toda esta obra”. (Teilhard de Chardin. 1956.
124).