A Natureza como síntese #11

Teilhard de Chardin (1881-1954) - 1
O universo de Teilhard

Na mesma direção e avançando mais no aprofundamento da compreensão do homem e  do universo de Erich Wassmann, situa-se seu irmão de ordem, Pierre Teilhard de Chardin. Ambos foram cientistas de renome internacional e partiram dos resultados das suas pesquisas científicas para formular respostas às questões de fundo que envolvem a origem e a gênese da matéria, da vida e do homem. Wassmann encontrou seus dados empíricos nos estudos envolvendo o parasitismo e a relação simbiótica que ocorre entre fungos e bactérias nos ninhos de formigas e térmites. Teilhard de Chardin valeu-se de conhecimentos profundos de química, física e biologia, somadas às suas observações de antropólogo, etnógrafo e etnólogo, realizadas na China, na Europa e na América.
No prefácio que escreveu para o livro de Teilhard de Chardin “O lugar do homem na Natureza.” Jean Piveteau[1] da Academia de Ciências de Paris resumiu a concepção do autor sobre o mundo e a natureza:
“A vida está longe de ser uma combinação fortuita de elementos materiais, um acidente da história do mundo, mas a forma  que a matéria assume num certo nível de complexidade. Ela introduz-nos numa ordem nova, caracterizada por propriedades peculiares, a biosfera. Esta não deve ser concebida como uma imagem puramente espacial, um mero invólucro concêntrico da litosfera, uma espécie de quadro onde a vida é confirmada, mas como uma camada estrutural do nosso planeta, “um dispositivo no qual transparece a ligação que une entre si, no seio de um mesmo dinamismo cósmico a Biologia, a Física e a Astronomia.” A vida manifesta muito rapidamente uma das suas tendências mais fundamentais, a tendência de se ramificar enquanto avança....”    (Teilhard de Chardin. 1956. p. 9-10)
E o próprio Teilhard escreveu na “Advertência” que acompanha sua obra:
“( ... ) mas o seu grande interesse consiste em acender a uma posição privilegiada a partir da qual descobrimos com emoção, que se o homem deixou de ser (como antes se pensaria) o centro imóvel de um mundo acabado, em contrapartida, ele tende doravante a representar, para a nossa experiência, a ponta de lança de um universo em vias, simultaneamente de “complexificação” material e de “interiorização psíquica sempre mais  acelerada.” “Uma visão cujo choque sobre o nosso espírito deveria ser suficientemente forte para exaltar, ou mesmo para transformar a nossa filosofia.”  (Teilhard de Chardin. 1956. p.15-16)
Teilhard de Chardin como Erich Wassmann contavam em seus currículos com uma excelente formação filosófica e teológica. Preocupados com os questionamentos postos pelo avanço  das ciências às posições tradicionais em relação à compreensão do universo, da natureza e do homem, foram buscar respostas nos próprios dados científicos. As colônias de formigas e térmites  municiaram os argumentos de Erich Wassmann. Teilhard de Chardin foi buscá-los em todos os campos  do conhecimento científico. Demonstrando familiaridade com a física, a química, a biologia, a antropologia, a etnologia, a etnografia e, não em último lugar, com a Filosofia e Teologia, elaborou a sua ousada e grandiosa cosmovisão da gênese e da evolução da matéria, do universo, da vida e do homem.
Nas suas incursões e reflexões sobre a natureza da matéria, dos processos químicos e das leis físicas que nela operam, visava em última análise, definir o “lugar do homem na natureza.” A compreensão do homem constituía-se para ele na chave da compreensão da natureza como um todo. Sem compreender o homem o universo e a natureza é incompreensível, melhor, não fazem  sentido. O universo não faz sentido sem a inserção nele, do homem na sua totalidade existencial, com sua dimensão físico-corporal, racional e espiritual. Mais. Ao longo de sua obra Teilhard  vai insinuando que, assim como o universo e a natureza não fazem sentido sem a presença do homem, o homem não faz sentido e consequentemente o universo e a natureza também não fazem sentido, se ao todo não subjaz, como motor, uma dinâmica teleológica, que comanda o acontecer na natureza. A coerência e a lógica do raciocínio nos diz que, se o acontecer na natureza obedece a uma teleologia, significa o mesmo que afirmar que na sua origem atuou uma causa e, no decorrer dos processos, uma ordem que os conduz ao encontro de um objetivo final. Ou não seria este por acaso o sentido do “Alfa” como ponto de partida e o “Ômega” como destino final, visão que se tornou a marca registrada da concepção de Teilhard? Ou ainda, a metáfora do globo terrestre em que o polo sul simboliza o começo, o ponto de partida, o “Alfa” e o polo norte o ponto de chegada, o destino final, o “Omega. Entre os dois polos aconteceu e continua acontecendo a gênese e a história do universo, da natureza e do homem. A primeira fase corresponde a uma diversificação, a uma complexificação e uma expansão em direção ao equador e, numa segunda fase verifica-se o contrário. A diversificação vai diminuindo e a complexificação cedendo lugar a uma tendência de compressão crescente, simulando um afunilamento na medida em que se avança em direção ao polo norte, ou o “Omega.” E na projeção final essa História encontra a sua consumação no “Ômega.” O que acontece com o universo e a natureza como um todo, realiza-se individualmente em cada espécie de seres vivos, também no homem. Mais adiante falaremos mais sobre a natureza do “Alfa” e do “Omega” na visão de Teilhard.
Para obter êxito nesta empreitada e, principalmente, para formular uma saída coerente e satisfatória, valeu-se dos conhecimentos  acima apontados, fundamentou sua proposta  em pressupostos por ele identificados.
Para entender o homem e atribuir-lhe o lugar exato que lhe cabe no universo, a natureza percorreu um longo caminho. O caminho foi marcado por um começo, um ponto de partida que prima pela simplicidade, uma simplicidade que se manifesta pela ausência de diversidade e animada por processos físicos e químicos elementares. No começo existiu apenas energia. Da concentração da energia resultou a matéria primigênia na forma de átomos. Tudo o que aconteceu a partir de  então, durante os bilhões de anos que se seguiram, resume-se na concentração e na complexificação da matéria original. O próprio Teilhard assim se expressou: “A vida, repetirei ao longo de todas estas páginas, apresenta-se experimentalmente  à ciência como um efeito material da complexidade.”  (Teilhard de Chardin. 1956. p. 27). E, para que este conceito-chave não leve a equívocos de interpretação, continua definindo claramente de que tipo de concentração se trata. Negativamente complexificação não é sinônimo de agregação, como acontece num pilha de tijolos, ou a repetição geométrica que comando o “crescimento” de um cristal. Definiu assim a complexificação por ele observada
“( ... ) a combinação, ou seja, essa forma particular e superior de agrupamento cuja missão é ligar a si mesmo um certo número fixo de elementos (poucos ou muitos, não importa), com ou sem o contributo auxiliar de agregação e de repetição, num conjunto fechado, com raio determinado: o átomo, a molécula, a célula, o metazoário.”   (Teilhard de Chardin. 1956. p. 28)
Sempre segundo Teilhard, estamos aqui diante dos componentes e dos processos dos quais resultou a infinita complexidade do mundo, palco do homem e da sua história. Abstraindo da complexificação por agregação e da complexificação por  repetição, fiquemos apenas com a complexificação por combinação. Neste processo a agregação e a repetição entram apenas como mecanismos complementares e secundários. Nos dois casos o elemento “inacabado” é da essência do processo. À pilha de tijolos podemos “agregar” quantas unidades   quisermos sem modificar  a sua natureza. Um cristal admite a incorporação na sua rede estrutural um número indefinido de átomos, moléculas e ramificações. Faz parte da natureza dessas duas modalidades de estruturação estarem sempre abertos a novos acréscimos, tanto na estrutura, quanto no número de elementos que a compõem sem modificar a sua natureza.
Com a complexificação por “combinação”, colocada como base do seu pensamento por Teilhard, as coisas passam-se de outra maneira. A “combinação” resulta em cada etapa numa estrutura acabada em si mesma, porém, a partir de certo momento, dotada de um potencial interno de desdobramento sem limites definidos e predeterminados. Desta forma um “corpúsculo”, tratando-se tanto de uma unidade micro, macro ou mega, embora limitado no seu  contorno estrutural, a partir de um determinado nível de complexidade, começa a manifestar sinais efetivos de “autonomia”. Com o auxílio desses conceitos Teilhard atribui a evolução, a transformação,  a complexificação, o avanço autônomo na natureza, ou qualquer outro termo que se prefira empregar, à um tal ou qual “centro complexidade,” para ficar com o termo que ele próprio usa.
O universo de Teilhard está estruturado  sobre três pilares: o muito pequeno, o muito grande e o muito complexo. Em outras palavras. Os átomos com seus elétrons constituem a base “muito pequena.” Pela “agregação” e pela “repetição geométrica”, os elementos do universo tornam-se cada vez maiores até atingir as dimensões do “muito grande.” Paralelamente acontece a ascensão a partir de uma extrema simplicidade estrutural, via combinação de elementos e funções, para culminar numa “grande complexidade”, que atinge o seu grau máximo com a noosfera e o homem. São, portanto, três os pilares sobre os quais o universo é edificado: “o muito pequeno, o muito grande e o muito complexo.” Dito em outras palavras: “o ínfimo, o imenso e o complexo.”
Avançando um pouco mais no seu raciocínio Teilhard depara-se com o fato de que pela física cada “infinito” vem acompanhado de efeitos especiais e próprios como os “quanta” no ínfimo e a relatividade no “imenso.” Pergunta então: E a complexidade imensa não produziria como efeito específico a vida, com as suas propriedades como assimilação, reprodução e interiorização e psiquismo? A sua resposta é esta:
“Aqui está, se não me engano, a perspectiva libertadora de que dependem para nós a significação e o futuro do mundo. O vivo, dizia mais atrás, foi durante muito tempo olhado como uma singularidade  acidental da matéria terrestre, e o resultado  é que toda a Biologia ainda se move em terreno movediço, sem ligação inteligível com o resto da Física. Tudo muda se a vida não significa outra coisa, para a experiência científica, senão um efeito específico da Matéria complexificada: propriedade co-extensiva em si mesma a todo o tecido cósmico, mas somente apreensível pelo nosso olhar onde (através de um certo número de limiares que precisamos) a complexidade atravessa um certo valor crítico abaixo do qual não vemos nada. É preciso que a velocidade de um corpo se aproxime da luz para que sua variação de massa seja para nós aparente. É preciso que sua temperatura atinja 500 graus para que a sua irradiação comece a afetar os nossos olhos. Porque não havia de ser exatamente  em virtude do mesmo mecanismo que, até às proximidades de sua complexidade de um milhão e meio, a matéria nos pareça “morta,” (na realidade dever-se-ia dizer pré-viva), enquanto para além disso, ela começa a ganhar as cores da Vida?”   (Teilhard de Chardin. 1956. p.  32-33)
Posta essa  base Teilhard vai em busca da natureza  dos mecanismos e processos responsáveis pela estrutura do universo. A “agregação” que responde pelo “crescimento” de uma pilha de tijolos e a “repetição geométrica” que faz “crescer” um cristal, não oferecem maior problema para a sua compreensão. Já a complexificação que se dá por combinação oferece dificuldades bem maiores. Não há dúvida de que, tanto a agregação quanto a repetição geométrica, colaboram como mecanismos auxiliares na combinação. Tanto o crescimento por agregação quanto por repetição geométrica, por si só, resultam numa estrutura que, pela sua natureza nunca estará acabada, permitindo ao infinito novos acréscimos. Um pilha de tijolos formada por 100 ou 100.000 unidades, sempre será uma pilha de tijolos, assim como não muda a natureza do cristal de um milhão ou um trilhão de átomos. No processo de complexificação por combinação as coisas se passam de maneira bem diferente. Na curva ascendente dessa complexicação há dois momentos, melhor talvez, duas passagens, duas superações de etapas, ou, recorrendo à metáfora de Teilhard, dois níveis em que a temperatura em elevação,  torna perceptíveis, características até então latentes. Assim como a partir de uma determinada gradação a elevação da temperatura, faz brilhar uma barra de ferro, assim a complexificação por combinação, alcançado um determinado nível, faz manifestar-se a vida.
Estamos chegados num momento crucial. Teilhard chamou-o de o “Passo da Vida”. Em outras palavras a “passagem do não vivo para o vivo”, o “salto para a vida”, ou outras formulações que se poderiam empregar. Na história da evolução do Universo já houve outro momento similar, análogo: “o Passo da Matéria”, para ficar com a terminologia de Teilhard. No avanço da evolução um terceiro momento nos desafiará: “o Passo da Hominização”  ou “o Passo da Antropogênese”. A gênese da matéria, a biogênese e a antropogênese, representam os três momentos na história da evolução do Universo que ainda deixam  muito mais perguntas não respondidas do que as que já têm resposta. Neste momento o que preocupa e, ao mesmo tempo desafia, é entender o “Passo da Vida”.



[1] Jean Piveteau nasceu em 23 de setembro de 1899 em Rouillac – França e faleceu em 7 de março de 1991 em Paris. Foi um respeitado paleontólogo de vertebrados. Eleito presidente da Academia Francesa de Ciências, ocupou o posto até 1973. Foi um dos grandes admiradores de Teilhard de Chardin, tanto assim que escreveu a apresentação do livro:” O Lugar do Homem na Natureza”.

A Natureza como síntese #10

Erich Wassmann -2
Wassmann chama atenção no artigo citado que explicar a evolução, a transformação da natureza viva, pressupõe a compreensão dos mecanismos que subjazem ao potencial de adaptação ativa, em outras palavras o “Anpassungsverwögengen” dos organismos vivos. Lamarck já em 1809 se dera conta dessa necessidade, mas a formulação do seu pensamento não foi feliz. Mas é a partir do século XX que “o princípio da ação ativa,”  - “Prinzip der activen Bewirkung”  de Oskar Hertwig foi influenciando numerosos cientistas, para valer-se deste conceito como instrumento metodológico. “Chega-se cada vez mais à convicção acertada de que, sem a adaptação ativa, isto é, sem a capacidade de o organismo reagir teleologicamente aos estímulos do meio,  tanto a evolução filética quanto a individual, é uma impossibilidade. (St. Der Zeit. Vol 100, 1921, p. 135).
Outro que defendeu com êxito nos círculos científicos a necessidade de uma teleologia nos processos evolutivos, foi Karl von Baer.  Erich Wassmann formulou em resumo a sua concepção nos seguintes termos:
 “A mesma finalidade de gerar formas aptas para a vida, é válida também para a evolução  filética. Neste particular torna-se  tanto mais necessária a interdependência entre os processes evolutivos e as influências do ambiente externo pois, se trata da formação de novas modalidades de vida sob a influência de condições externas alteradas. Portanto, abstraindo de uma adaptação ativa a evolução filética dos organismos vivos é impensável. A capacidade de os organismos vivos reagirem finalisticamente às influências do meio externo, isto é, preservando a vida ou gerando vida, só pode ter a suja explicação mais profunda no potencial evolutivo disponível no próprio organismo. O potencial evolutivo não teria nenhuma utilidade se não estivesse em sintonia com os diversos fatores ambientais, exercendo seus estímulos evolutivos sobre o organismo. De outra forma o ser vivo não teria como “adaptar-se”  às novas condições de vida   por meio das modificações correspondentes à sua evolução. Caso contrário resta-lhe a extinção. Isto vale tanto para a primeira célula como vale para todos os outros fenômenos de adaptação presentes  na evolução filética  global do mundo orgânico.”   (St. Der Zeit. Vol 100, 1921, p. 135-136)
Desde que Wassmann publicou as considerações acima há 95  anos, em essência o foco da questão em nada se modificou. Entretanto as ciências físicas  e naturais fizeram avanços gigantescos. A física desvendou o micromundo da estrutura da matéria até os seus últimos componentes. Identificou as leis que regem o átomo e seus componentes. Criou tecnologias pelas quais seus potenciais energéticos podem ser controlados e utilizados como poderosas fontes de energia, tanto para fins pacíficos quanto bélicos. Uma imersão não menos profunda na trama e na própria mecânica dos processos vitais, levou os cientistas a desenvolverem tecnologias que desvendaram os segredos da estrutura e do funcionamento do genoma humano e de outros seres vivos. E, de posse  desses conhecimentos, o desenvolvimento de tecnologias para canalizar os potenciais dos mesmos para as mais diversas finalidades, é apenas uma questão de tempo. Os caminhos para a manipulação genética das plantas, animais e do próprio homem, estão abertos, acompanhados pelos riscos, desvios e benefícios inerentes aos mesmos. Foram desenvolvidos medicamentos e técnicas de tratamento, capazes de combater inúmeros males hereditários ou de pré-disposição hereditária, que afetam a saúde humana ou afetam a qualidade de animais e plantas.
E o que trouxeram realmente de novo essas conquistas do último século? Em termos de concepção da natureza, de “Cosmovisão,” de “Weltauffassung”, a rigor nada de fundamentalmente novo. Aqueles cientistas que apostam todas as fichas na convicção de que o progresso, o avanço e o aperfeiçoamento dos métodos e das técnicas de investigação, terminarão desvendando e explicando as últimas incógnitas que envolvem a natureza e a própria vida, não passam de herdeiros do século XX e XXI, do mecanicismo monista de Haeckel,  Huxley  e outros do século XIX.
Um outro segmento de cientistas e, de modo especial, pesquisadores na linha interdisciplinar, formulam as mesmas perguntas e colocam as mesmas objeções dos seus colegas de cem anos atrás: Que mecanismos geraram as primeiras realidades materiais, as energias, os processos e a matéria prima de que é formado o universo; qual é a causalidade suficiente que gerou as primeiras formas de vida e as potencializou para se transformarem e evoluírem para a infinidade de formas e estágios, incluindo o homem, que povoaram e ainda  povoam a terra? Também neste  caso as respostas mais ou menos cautelosas, mais ou menos diretas, não sofreram modificações substantivas. Todos concordam em afirmar ou, pelo menos sugerem, que os processos, as leis, as estruturas e a matéria que compõem o universo, não são a causa suficiente para produzir efeitos como a vida, a sensibilidade, a inteligência reflexa, assim como a própria existência da matéria e as leis e processos que a regem.
As respostas a essas questões  variam na forma e na insistência de acordo com a época e a filiação  filosófica, confessional ou teológica, do autor.
Erich Wassmann resumiu sua posição nos seguintes termos:
“Aqui se oculta uma linha de pensamento eminentemente teleológica. Se for levada até as suas últimas consequências lógicas, termina necessariamente no reconhecimento de um Criador pessoal responsável pelas leis da natureza; pois, as leis da evolução devem ter sido concebidas pelo mesmo legislador, que outorgou as leis para o mundo ambiente como um todo e as aplicou harmonicamente às leis  da evolução dos seres vivos. Este legislador só pode ser uma sabedoria supramundana que, como causa prima, regula e engloba a natureza toda e suas leis. Assim as adaptações orgânicas se constituem  num testemunho vivo, numa prova da moderna concepção  teísta do mundo.”  (Stimmen der Zeit. Vol. 100, 1921, p. 136)
E  num tom que reflete bem a atmosfera de confronto entre o Monismo de Ernest Hackel, falecido em 1919 e a proposta de cientista cristão que era, Erich Wassamann concluiu a convicção a respeito da questão.
Há, portanto, um único caminho para livrar-se da confusão que se criou em torno da Ordem Natural e da Filosofia Natural. É forçoso abandonar a concepção baseada na suposição de uma união substancial de Deus com a Natureza e retornar às bases de uma cosmovisão Teísta Cristã. É preciso admitir que a tudo preside e a  tudo permeia uma sabedoria e um poder criador, única forma de explicar a ordem natural, assim como a conhecemos hoje. As leis que regem os corpos celestes assim como as menores partículas da matéria, a relação de interesses entre os seres vivos e a relação de cada átomo para com os processos vitais dos organismos vivos, formam uma maravilhosa harmonia do acontecer na Natureza, exigem da mente humana uma concepção unitária para a compreensão da Natureza. É exatamente essa concepção unitária que é postulada pelo Monismo moderno, sem obter uma resposta conclusiva. Não é a unidade substancial das realidades naturais, que na verdade, são múltiplas, que nos dão a resposta, uma “unidade pela causa primordial” (Ursächliche Einheit), que se encontra no Plano Criador  de um Deus Infinito. Este é o verdadeiro Monismo da concepção cristã da Natureza. ( ... ) E se a Natureza evoluiu autonomamente conduzida pelas leis a ela inerentes, como o professa a ciência moderna, o recurso  a um todo poderoso Criador do Céu e da Terra, impõe-se com tanto mais insistência. Não só as leis que regem o espetáculo da Cosmogonia, quanto as leis que garantem o bom andamento dos processos orgânico-evolutivos dos organismos vivos. Os Fatores Hereditários, os Genes do Mendelismo desempenham o papel de “causa segunda” (causa secunda) que impulsionam o vir a ser da história filética. A Causa Prima é Deus com sua Sabedoria e Poder infinitos, que se  concretiza nas mais diversas ramificações das formas de organismos e os Genes correspondem à ideias divinas feitas realidade em a Natureza viva.( Stimmen der Zeit. Vol 100. 1921. p. 138)
Como se pode ver Erich Wassmann empenhou-se seriamente para encontrar e formular uma saída de consenso para as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Cientista como foi, suas sociedades ou colônias de formigas e térmitas convenceram-no de que o transformismo, a evolução fazia parte ou, quem sabe, era o motor principal que acionava o acontecer na história da vida. O parasitismo, a simbiose que faz parte da própria natureza  dessas sociedades animais, só pode ter acontecido ao longo de processo demorado. Padre jesuíta que foi, comprometido com a ortodoxia, cabia-lhe a obrigação de encontrar uma saída calcada em bases sólidas, tanto na Ciência quanto na Filosofia e Teologia. E, parece, que deu um passo significativo nesta direção. Para ele, tanto as evidências do transformismo, quanto o princípio filosófico da causalidade suficiente e o consequente pressuposto doutrinário da atuação de um ente criador na Natureza, eram dados inegociáveis. A sua resposta à questão acha-se claramente formulada na citação acima.

De um lado a Igreja, melhor setores da Igreja, empenharam-se em bloquear  os avanços das ideias evolucionistas. Do outro lado muitos cientistas extrapolaram  e avançaram para além do seu campo específico e especializado, valendo-se dos resultados das suas pesquisas e observações, para implementar suas investidas contra a Igreja, a Religião ou qualquer concepção que não coubesse na explicação monista materialista.

A Natureza como síntese #9

Erich Wassmann (1859-1931) - 1
Erich Wassmann, nascido em Moran no Tirol do Sul, hoje pertencente à Itália,  dedicou todo o seu empenho na tentativa de clarear as questões de fronteira entre as Ciências Naturais e as Ciências do Espírito. Cientista e filósofo jesuíta, apelidado de “o padre das formigas,”  contemporâneo de Hans Driesch, foi outro pioneiro no esforço de  solucionar as questões limítrofes entre os dois grandes campos do conhecimento. Hans Driesch buscou os dados empíricos para formular a sua explicação vitalista nas observações  que fez em embriões de ouriços do mar. Erich Wassmann encontrou os dados empíricos na observação atenta da estrutura e o comportamento das colônias de  formigas e cupins. Analisando a convivência simbiótica entre formigas e térmitas e fungos formulou a sua “Weltauffassung” – Cosmovisão. Suas observações levaram-no a identificar, como ele mesmo escreveu,  “milhares de espécies e dúzias de novas famílias de insetos que, hoje vivem regularmente como hóspedes nos ninhos de formigas e térmitas. (cf. Stimmen der Zeit, Vol 100, 1921, p. 134)[1]
Publicou uma série de trabalhos que lhe mereceram respeito e reconhecimento no meio científico da época. Entre eles sobressaem: “Os ninhos associados e as colônias mistas de formigas - 1911; “Inventário crítico dos artrópodos Mirmecófilos e Termicófilos” – 1914; “Estudo comparativo da vida das formigas e dos animais superiores – 1887 e 1910; “Instinto e Inteligência no mundo animal – 1897 e 1905; “As capacidades psíquicas das formigas” – 1890 e 1909; “A Biologia moderna e a teoria da Evolução” – 1904 e 1906; O parasitismo  entre formigas – problemas biológicos e filosóficos” – 1920; “O Monismo cristão” – 1919.
Erich Wassmann alinha-se, com Hans Driesch, entre aqueles cientistas que, pela virada do século XIX, assumiram uma atitude mais cautelosa na crítica, frente às teorias e hipóteses evolucionistas e, ao mesmo tempo, levaram a sério as conquistas científicas, fazendo delas aliadas em se tratando de lançar luz sobre  as questões que interessavam à Ciência e à Filosofia.
Wassmann condensou o seu ponto de vista sobre a problemática, num artigo publicado na revista Stimmen der Zeit, Vol 100 de 1921, com o título “A concepção cristã da natureza na luz das modernas descobertas científicas.”
Quem sabe a pergunta talvez seja esta: Será que toda a Cosmovisão cristã não se fundamenta sobre a “Imagem” antiga do mundo, totalmente modificada pelos progressos das Ciências  modernas? Como se pode esperar que a “Cosmovisão” cristã seja ainda hoje moderna? Por acaso não se tornou tão  insustentável quanto aquela “imagem” do mundo? (Wassmann. Stimmen der Zeit. Vol. 100. 1921. p. 126)

Para responder de forma consistente  essa pergunta, Wassmann trabalhou com os dois conceitos: “Weltbild e Weltauffassung”. Definiu “Weltbild” como sendo a “imagem do mundo” desenhado a partir dos conhecimentos disponíveis num  momento dado, das realidades naturais, das suas  relações mútuas e das leis que as regem.. O “Weltbild”, portanto, corresponde à imagem do universo, do mundo e da natureza, assim como as ciências o retratam em cada época. Cabe ao cientista da natureza, utilizando-se do instrumental e dos métodos científicos próprios, identificar, o que ocorre no mundo natural. É tarefa sua também detectar as regras e as leis imanentes aos processos naturais. O cientista, valendo-se das leis físicas, químicas, climatológicas, estatísticas, matemáticas,  procura entender  os acontecimentos que lhe interessam e formular  as teorias e hipóteses capazes de auxiliar na compreensão da natureza. Com esses dados desenha o “Weltbild” que, portanto, exige um permanente redesenhar na medida em que novos dados e resultados científicos forem produzidos.
O segundo conceito com que Wassmann trabalha é o de “Weltauffassung” – “Concepção do mundo” – “Cosmovisão”. A este nível pergunta-se pela causa primeira e pela finalidade última e as respectivas leis. O “Weltbild” mostra o caráter essencialmente determinado pelas investigações científicas no campo das Ciências Naturais e a “Weltauffassung a concepção do mundo, a cosmovisão resultado dos esforços da Filosofia Natural.
Com isto fica claro  que o cientista, sem o recurso a categorias filosóficas, não ultrapassará o nível dos dados objetivos que resultam dos seus esforços empíricos, porque, “cada  teoria envolvendo a natureza contém um elemento metafísico, na medida em que tenta identificar as relações entre as realidades apreensíveis experimentalmente.” (Wassmann. Stimmen Der Zeit, 1921. Vol. 100. p. 126)
De outra parte o filósofo da natureza movimenta-se  no verdadeiro  campo da metafísica, em busca do extra sensível. Procura responder a interrogações mais substantivas, mais fundamentais, sobre a origem das leis naturais e a harmonia que reina entre elas.   (cf. Wassmann. Stimmen Der Zeit, 1921. Vol. 100. p. 127)
Wassmann resumiu seu pensamento  nos seguintes termos:
Conclui-se daí  em que medida o “Weltbid” se relaciona com a “Weltauffassung” As conclusões metafísicas  somente então são consideradas verdadeiras quando fluem logicamente das leis naturais formuladas pelas Ciências Naturais e por elas forem fundamentadas. Neste sentido verifica-se, sem dúvida, a nível  do espírito, entre o “Weltbild” desenhado pela Ciência e da “Welauffassung” – Cosmovisão – da Filosofia Natural. Esta relação, entretanto, não é absoluta, senão relativa. No decurso do tempo o “Weltbild” muda e tem que mudar de acordo com as descobertas e as conquistas da Ciência Natural. Acontece, porém, que os questionamentos últimos que perguntam pela causa da ordem no mundo como um todo, permanecem eternamente as mesmas. Em resumo a pergunta é esta: As realidades naturais e suas leis subsistem por si mesmas ou é forçoso apelar para a explicação que tem como base a existência de um Deus pessoal que, da plenitude do seu Ser, deu origem a um mundo criado?  Sendo assim resta-nos em última análise, no plano da concepção metafísica da “Weltauffassung”, a alternativa: ou o Monismo nas suas mais variadas modalidades, do extremo Hilozoísmo ao extremo Panteísmo ou então o Teísmo,.”  ( Wassmann. Stimmen der Zeit, 1921, Vol. 100 p. 127)
Ao definir esta sua posição Wassmann mostrou uma grande cautela. De um lado dados científicos por ele próprio observados nas colônias de formigas e térmitas, impediam-no de rejeitar pura e simplesmente a ideia de uma evolução. Do outro lado qualquer aceitação  da evolução como uma explicação global ou parcial das diversidades naturais, atraía a desconfiança ou a oposição das autoridades religiosas. Como cientista procurou garantir bases sólidas para o “Weltbild” que suas observações empíricas com formigas e térmitas lhe revelavam, para, como filósofo, formular a sua “Weltauffassung” válida e capaz de fazer compreender o universo e suas partes. Comprometido com a Ciência já não lhe era possível negar a ocorrência de transformações na natureza em geral e entre os seres vivos em particular. Como religioso de formação filosófica e teológica, além do compromisso com a ortodoxia, cabia-lhe encontrar uma saída que satisfizesse os dois lados, tanto a Ciência quanto a Doutrina da Igreja.
Diante da constatação de que a Evolução, o Transformismo, ou outras denominações que se queiram empregar, tem como motor básico a adaptação, esta por sua vez efetiva-se no plano concreto pela seleção natural. Acontece que, em se  falando de seleção natural, é preciso penetrar um pouco mais a fundo no significado do conceito. A seleção natural costuma ser  invocada como um mecanismo de adaptação passiva dos seres vivos às condições naturais em que se acham inseridos. Em outras palavras. Trata-se de um processo calcado na eliminação  dos menos aptos e da sobrevivência e continuidade dos mais bem dotados. A constatação da universalidade e da eficiência deste mecanismo fez dele, pela simplicidade e obviedade e potencial de respostas científicas, a chave para solucionar os problemas e entender os caminhos percorridos pela transformação das espécies.
A questão, entretanto,  complica-se quando se tenta avançar mais a fundo nos processos de adaptação ou seleção natural. Percebe-se então que a eliminação dos menos aptos e a sobrevivência dos mais aptos, representa  apenas o efeito visível e mensurável de algo mais profundo e mais substantivo. Verifica-se que a adaptação passiva visível e aferível pelos métodos empíricos, deixa em aberto a pergunta: como se explica a maior ou menor adaptação ou a maior ou menor capacidade de sobreviver ou ser eliminado pelos processos seletivos naturais? Para responder Wassmann contrapõe no artigo citado os conceitos de “Adaptação passiva e Adaptação ativa.” Os organismos vivos  adaptam-se às circunstâncias em que se encontram inseridos nos limites  do seu “potencial de adaptação” – ou “Anpassungsvermögen”, próprio de cada um em particular. Para uns o espectro de adaptabilidade – o “Anpassungsvermögen” - é mais amplo do que para os outros. Assim, por exemplo, uma mudança climática mais profunda para o frio ou o calor, eliminaria todas aquelas espécies  dotadas de um potencial de adaptação aquém dos extremos das mudanças climáticas em curso. Para essas espécies há dois caminhos pela frente: ou migram para regiões onde sua capacidade adaptativa lhe permite sobrevier ou, num prazo determinado, desaparecem do cenário da vida.



27 Stimmen der Zeit periódico de Cultura Cristã editada pelos jesuítas alemães, atualmente com sede em Munique. Sua fundação data da década de 1860 sob o título original de Stimmen aus Maria Laach. Sem favor nenhuma esse periódico é, ao lado de Botéria de Portugal, Études da França, Vozes de Petrópilis do Brasil uma das publicações de Cultura mais importantes ainda em circulação. Quem pretende ter uma radiografia dos embates culturais, no sentido geral, de  150 anos para cá, encontra na “Stimmen der Zeit” uma fonte preciosa. Desde as discussões motivadas por Darwin e sua  teoria do evolucionismo, Vaticano I, a questão social e muitos outros temas nessa linha, encontram-se nessa revista numa coleção quase completa no memorial jesuíta na Universidade do Rio dos Sinos em São Leopoldo