Capítulo oitavo
Os veteranos da colônia e os retratos
de membros proeminentes da comunidade
Quando falamos dos
veteranos de Bom Jardim, não nos referimos apenas àqueles cidadãos que
participaram de guerras e nelas colecionaram louros. Incluímos entre eles
muitos homens que chegaram a uma idade mais avançada do que a maioria dos
compatriotas e, como veneráveis testemunhas do passado, viveram longo tempo
entre a geração mais nova. Enumeramos entre eles todos aqueles que, nas mais
diversas atividades, tiveram uma influência maior ou se distinguiram de alguma forma. É mais do que justo de que a
sua memória se mantenha viva entre nós.
Devem perpetuar-se em nosso meio como o cume das montanhas da nossa terra, ou
como os gigantes da floresta virgem, na qual foram pioneiros. Da sua memória
projetaram-se muitos ensinamentos para a presente geração e continuam vivos entre nós como exemplos,
embora já falecidos e sepultados.
Antes de nos
ocuparmos individualmente com cada um recordemos os costumes daquele tempo.
Johannes Finger
conta:
"No começo
reinava entre nós a maior e a mais sonhada harmonia. Ninguém de nós possuía
alguma coisa e por isso mesmo não se conhecia inveja, vaidade, vício e motivos
de desunião. A veracidade e a honestidade era outra virtude que florescia entre
nós. Posso afirmar sem exagerar que se mente mil vezes mais do que então. Hoje quase
não se pode areditar no que se fala, quando naquela época se podia confiar na palavra de cada pessoa."
"Nosso espírito
de poupança era exemplar. Poucas vezes havia música ou dança e todos em peso se
faziam presentes. Não ocorriam pancadarias e não se bebia vinho do Reno. Não se
invadia o salão de dança montado em cavalos. Não se quebravam os pescoços das
garrafas por pura exibição e não se bebia cerveja Christina [1] que
custa dois mil réis a garrafa. Guardávamos o dinheiro que se resumia em notas
pequenas e moedas de prata e o poupávamos para os nossos filhos."
"As roupas
(161) e a alimentação não eram tão refinados como o são hoje, traindo
evidências de desperdício, especialmente no que se refere ao vestuário. Éramos comedidos e discretos e nem por isso
menos felizes e satisfeitos. Tínhamos trabalho mais do que o suficiente e,
parece-me, que os ossos de nós velhos eram mais sólidos, os músculos mais
fortes do que os dos nossos filhos e netos. Trabalhávamos no sol e para manter
em forma nossas energias, não tínhamos necessidade da cachaça como tônico dos
nervos. Talvez nos respondam: vocês dispunham dos escravos que trabalhavam em
seu lugar. Puro engano, meus jovens senhores. Só poucos colonos ricos tinham condições de
manter escravos e não era o trabalho do negro que fazia alguém progredir.
Tornamo-nos o que somos pelo nosso próprio esforço e conquistamos o que temos.
Além disto o sistema de escravidão dos negros não nos agradava pois, quantas
famílias brasileiras empobreceram apesar dos muitos escravos. Lembro-me sempre
do espetáculo feio que observei no navio em Porto Alegre. Os negros, crianças e
adultos, homens e mulheres, eram oferecidos para a venda. O preço oscilava
entre 600 a 1.200 mil réis de acordo com a idade e a força. E como me revoltou o
tratamento a que eram submetidos! Será possível que se tratem pessoas humanas
como o capataz do mercador de escravos tratou os infelizes negros? Para mostrar
que tinham dentes sadios bateu com o punho no queixo, fazendo estalar os dentes
uns contra os outros, cena que me abalou até o íntimo. E que tratamento indigno
foi dispensado aos negros. Mesmo na colônia foram privados do batismo! Tanto
assim que, depois da emancipação em 1888 o nosso vigário Pe. Eultgen, batizou
pessoas de bastante idade. Haviam, portanto,
permanecido pagãos por todo este tempo e isto num país que se declarava Terra
da Santa Cruz."
Passemos agora dos
rápidos registros sobre as condições
sociais, para as personalidades de maior importância, que se sobressaíram em
nossa picada. Ocupemo-nos, antes de mais nada, com os profissionais. Antes de
começar vejo-me obrigado a observar que todos nós éramos obrigados a tocar, em
grande parte, todas a profissões. Além disto, porém, dispúnhamos de alguns
homens versados em cada ramo.
O pai de Jacob
Schmitt, foi um competente marceneiro. Na época morava na 48. Quando se
pretendia algum móvel melhor, mais apurado, um armário por ex., uma mesa, uma
cama, recorria-se a ele.
Jorge Eckert era um
excelente sapateiro que, já no tempo dos Farrapos, trabalhava com cinco ou seis
aprendizes. Sua moradia ficava lá onde hoje mora Nikolaus Schmitt. Quando os soldados
apareceram nas redondezas, fugiu para o mato levando com ele todo o estoque de
botas, sofrendo assim pouco prejuízo. Se tivesse ficado com os calçados e
couros em casa, os numerosos fregueses que apareciam, teriam saqueado para
valer a oficina.
Os alfaiates eram
pouco procurados na época, porque cada qual encarregava-se de ser seu próprio
alfaiate e não havia muita preocupação com calças finas e casacos bem talhados.
Naquele tempo o provérbio: "o traje faz a pessoa", não tinha muita
aplicação. Éramos homens sem que os
alfaiates nos fizéssemos como tais.
Guardo ainda boas
lembranças de um certo ferreiro de nome Schatter Sortão um homem honrado e leal. De manhã cedo junto
à bigorna fazia acompanhar as vigorosas marteladas com uma alegre canção. Também
o velho Schuler, na entrada da picada
não perdia para ninguém em aplicação, força e sua maneira de ser, para
muitos um tanto rude.
Nem os açougueiros
levavam seu ofício ao nível dos seus colegas de profissão de hoje. Na época
abatia-se no máximo a cada quatro
semanas. Eu mesmo treinei o ofício durante 12 anos com Jacob Müller. Um certo Herrmann era
açougueiro na Estação. Os colonos não costumavam carnear na sexta feira. De mais a mais
não consumiam muita carne, nos dias de
abstinência nem pensar.
Os senhores médicos
da época eram personagens bem diferentes dos de hoje. Lembro-me com satisfação
do velho coronel Hildebrand de São Leopoldo. Socorria as pessoas com a melhor
das disposições, sem cobrar demais. Qual é o doutor de hoje que cultiva ainda o
espírito daquele homem honrado, que um dia afirmou: "Poderia estar de posse de um barril cheio de onças,
se não tivesse doado meus proventos a pessoas necessitadas."Também o velho
Wolfenbüttel é credor de uma recordação honrosa em Bom Jardim. Queria muito bem
às pessoas e com que cordialidade comunicava-se com os pacientes no seu dialeto
holandês.
Foi desta maneira
que Johannes Finger julgou os homens do tempo da sua juventude. Segundo o
"Volksblatt", o "Kosertiz
Zeitung" escreveu sobre ele. “Em Bom Jardim às 11 horas em dezembro de
1896, com 81 anos de idade, entrou para
o descanso eterno, o muito conhecido Johannes Finger, o conhecido o
"Fingerhannes". Foi um dos primeiros povoadores da nossa região e,
como costumava contar, participou de todas as alegrias e sofrimentos. É,
portanto, um dos últimos representantes alemães e, como é previsível, em poucos
anos nenhum dos velhos veteranos estará
mais entre nós. É obrigação nossa dedicar-lhes uma palavra de recordação e
honrar a sua memória. O velho Fingerhannes era conhecido como uma personalidade
singular, aberto e honesto, confiável nos atos e nas palavras. Creio que se
pode afirmar que era um dos poucos que não tinha inimigos. Fazia parte dos
membros mais assíduos da comunidade católica de Bom Jardim à qual pertencia e,
por isto mesmo, ela lhe deve muito. Estava preparado para o seu fim, cansado e
farto da vida. Descansa em paz, velho amigo, que a terra te seja leve”.
Se um homem, embora
católico convicto, encontra tamanho reconhecimento nas colunas do
"Koseritz Zeitung", nós da nossa parte não precisamos acrescentar
nada. Só uma coisa queremos destacar. "Que estava farto da vida".
Esta expressão tem no máximo sentido para um materialista, de maneira alguma
para um católico. Da sua boca ouvimos muitas vezes. "Como Deus quiser.
Estou pronto." E nos últimos tempos não se cansava em dizer ao sacerdote
que o visitava: (163) "Padre, o
senhor precisa intervir com firmeza. Há tantos homens moços que não
querem acreditar em Cristo. Sem a fé em Cristo a vida não tem sentido."
Quando, pouco antes de falecer, arrastou-se penosamente até a igreja. Pediu a
um dos netos que buscasse o padre com
recado que queria receber mais uma vez a Santa Comunhão.
Quando o padre
apareceu ergueu as mãos para as arcadas da igreja e chorando disse: "Tudo
isto é obra minha." Ao padre que
disse: "Deus te recompensará," respondeu: "Sim, eu o acredito e
também o espero." Mais tarde, no
leito da morte, sua primeira palavra foi: "Padre, como é bom morrer perto
do senhor." Por fim pediu que se colocasse o crucifixo sobre seu peito,
presente do seu velho amigo Pe. Trappe, e que depois da morte fosse sepultado
com ele. Que estava bem preparado para a morte ficou claro por uma declaração
feita ao padre que lhe garantiu que estava pronto para a eternidade. "Rezo
sempre de manhã e de noite e à noite também canto. Rezo também nas suas
intenções." Um homem de fé tão robusta não está farto da vida, muito menos
um grande devoto da Santíssima Virgem.
Acrescentemos uma
pequena lembrança sobre esta última virtude. Quando nos dias úteis o padre
escutava do altar o barulho de um terço nos bancos, ele podia ter a certeza: o
velho Fingerhannes está presente e está
tirando o terço do bolso. É digno de nota também que ele como único homem
destinou um mil réis para a coroa de Nossa Senhora, cuja aquisição fora
decidido que seria tarefa exclusiva das senhoras. Para doá-lo desceu
especialmente até a casa paroquial, como costumava fazê-lo muitas vezes, para
cuidar da parreira, ou bater um papo tranqüilo sobre os velhos tempos que, por
vezes, se prolongava até além do almoço.
Já que falamos do
Fingerhannes queremos acrescentar uma curta biografia do seu sogro que, começou
a vida cultivando sua colônia na picada.
Foi um verdadeiro pioneiro da mata virgem no verdadeiro sentido da palavra,
forte, robusto, procedente da região de
Binger no Reno. Conforme o testemunho do Fingerhannes só dormia três horas.
O genro contou que
de manhã comia uma manta de toucinho com pão. Este hábito pressupunha
naturalmente um legítimo estômago alemão e grandes esforços no trabalho.
Lavrava com a enxada e abria sulcos mais retos que um arado. No começo
Isaías Noll, este era o nome deste homem
valente, semeava cereais, até que apareceu a ferrugem.
Mais tarde os
cereais e a aveia voltaram a produzir, mas desta vez eram outras variedades.
Conforme lembra o Fingerhannes, os porcos eram tão selvagens que era preciso abatê-los a tiro e não com se procede normalmente.
Também o pão que era assado no forno à esquerda da entrada da casa, era tão
áspero que machucava a boca. O Fingerhannes levou para casa a filha do velho
Isaías Noll, ou melhor, mudou-se para a casa dela e viveu até o fim na colônia
de Isaías Noll. Que ela lhe foi uma mulher fiel, conclui-se (164) dos hábitos
cultivados até seus últimos dias. Muitas vezes na ida ou na volta da igreja,
fazia uma visita à sepultura da mulher. Podia ser visto com o braço apoiado
sobre a pedra, cobrindo o rosto com a mão e, não raro, as lágrimas descendo
pelo rosto.
No dia 13 de
setembro faleceu no Bohnenthal Michel Marmit, um homem que, na verdade, fora um dos fundadores de
Dois Irmãos. Mas pelo fato de ter passado os últimos anos na nossa paróquia e
jaz sepultado no Bohnenthal, queremos render aqui um breve tributo à sua
memória. Michel Marmit nasceu no dia dois de junho de 1814 em Waderriel (?) na
província do Reno. Emigrou para o Brasil em 1827. Reproduzimos aqui a descrição
da viagem conforme ele mesmo deixou registrado para os filhos.
"No oceano
fomos surpreendidos por uma tempestade que nos jogou em todas as direções.
Perdemos todos os mastros e, durante 14 semanas, boiamos entre a água e o céu.
O capitão, os marinheiros e os emigrantes davam-se por perdidos. O capitão
declarou que só Deus em pessoa poderia ajudar. Foi então que, católicos e
protestantes, decidiram fazer uma oração
de contrição. As 700 pessoas ajoelharam-se, rezaram em voz alta e prometeram
santificar o dia em que desembarcassem e escolher como patrono da igreja o
santo daquele dia. E o que aconteceu? Em meio à angústia fez-se ouvir o troar
de um canhão. O corpo do navio temeu e o povo ergueu-se. Neste momento ouviu-se
um segundo estampido.
Era uma fragata a
procura de navios em dificuldade. Amarraram o navio na fragata e arrastada por
ela, cortando as ondas, desembarcaram no dia 29 de setembro em Rio Grande.
Pouco depois de chegados apareceu o imperador D. Pedro I em companhia da
esposa e se pôs a conversar com os
imigrantes. O príncipe herdeiro brincava junto ao cais, caiu nas ondas e, ao
emergir pela segunda vez, foi salvo por Michael Marmit.
De lá a viagem
seguiu até a Porto Alegre e depois em carroças até Sapucaia, depois até o
Portão na casa de Georg Berg, onde ficaram alojados por quatro semanas. Em Dois
Irmãos compramos a colônia de número 38 à direita por 140 mil réis. Erguemos a
nossa moradia entre as raízes de uma figueira e entre animais selvagens
ferozes. Em 1831, 12 homens construíram uma capela de madeira, consagrada no
dia de São Miguel pelo padre espanhol
Antônio. Segundo o relato de seu filho,
o velho Marmit foi o primeiro a empunhar o machado e derrubar árvores para
erguer uma casa de Deus na nova Pátria. Com sessenta anos costumava subir no
telhado podre da igreja. As tabuinhas podres soltaram-se debaixo dos seus pés e
ele escorregou até a beirada inferior do telhado. Conseguiu equilibrar-se e
voltar ao trabalho com ânimo redobrado. Mais tarde foi construída uma igreja
nova com ele sempre na liderança. Perdeu dois filhos na Guerra do Paraguai,
Mathias e Peter. Todas essas vicissitudes não o abateram e, há seis anos,
festejou as bodas de ouro em companhia da esposa e 11 filhos vivos. Todos os
domingos e feriados peregrinava regularmente para a igreja, até oito de
dezembro de 1896. Assim nos informou o filho Georg. Seu último desejo e
derradeira vontade merece louvor e imitação. Ao falecer obrigou os filhos a
doar 50 mil réis para a capela do Bohnental.
Um personagem
moldado (165) de maneira diferente pelo destino foi o velho Mossmann. Suas
vivências mostram o drama vivido por um emigrante na viagem para o Brasil.