Deitando Raízes #39

Capítulo oitavo
Os veteranos da colônia e os retratos
de membros proeminentes da comunidade
Quando falamos dos veteranos de Bom Jardim, não nos referimos apenas àqueles cidadãos que participaram de guerras e nelas colecionaram louros. Incluímos entre eles muitos homens que chegaram a uma idade mais avançada do que a maioria dos compatriotas e, como veneráveis testemunhas do passado, viveram longo tempo entre a geração mais nova. Enumeramos entre eles todos aqueles que, nas mais diversas atividades, tiveram uma influência maior ou se distinguiram  de alguma forma. É mais do que justo de que a sua memória  se mantenha viva entre nós. Devem perpetuar-se em nosso meio como o cume das montanhas da nossa terra, ou como os gigantes da floresta virgem, na qual foram pioneiros. Da sua memória projetaram-se muitos ensinamentos para a presente geração e  continuam vivos entre nós como exemplos, embora já falecidos e sepultados.
Antes de nos ocuparmos individualmente com cada um recordemos os costumes daquele tempo.
Johannes Finger conta:
"No começo reinava entre nós a maior e a mais sonhada harmonia. Ninguém de nós possuía alguma coisa e por isso mesmo não se conhecia inveja, vaidade, vício e motivos de desunião. A veracidade e a honestidade era outra virtude que florescia entre nós. Posso afirmar sem exagerar que se mente mil vezes mais do que então. Hoje quase não se pode areditar no que se fala, quando naquela época se podia confiar  na palavra de cada pessoa."
"Nosso espírito de poupança era exemplar. Poucas vezes havia música ou dança e todos em peso se faziam presentes. Não ocorriam pancadarias e não se bebia vinho do Reno. Não se invadia o salão de dança montado em cavalos. Não se quebravam os pescoços das garrafas por pura exibição e não se bebia cerveja Christina [1] que custa dois mil réis a garrafa. Guardávamos o dinheiro que se resumia em notas pequenas e moedas de prata e o poupávamos para os nossos filhos."
"As roupas (161) e a alimentação não eram tão refinados como o são hoje, traindo evidências de desperdício, especialmente no que se refere ao vestuário.  Éramos comedidos e discretos e nem por isso menos felizes e satisfeitos. Tínhamos trabalho mais do que o suficiente e, parece-me, que os ossos de nós velhos eram mais sólidos, os músculos mais fortes do que os dos nossos filhos e netos. Trabalhávamos no sol e para manter em forma nossas energias, não tínhamos necessidade da cachaça como tônico dos nervos. Talvez nos respondam: vocês dispunham dos escravos que trabalhavam em seu lugar. Puro engano, meus jovens senhores. Só  poucos colonos ricos tinham condições de manter escravos e não era o trabalho do negro que fazia alguém progredir. Tornamo-nos o que somos pelo nosso próprio esforço e conquistamos o que temos. Além disto o sistema de escravidão dos negros não nos agradava pois, quantas famílias brasileiras empobreceram apesar dos muitos escravos. Lembro-me sempre do espetáculo feio que observei no navio em Porto Alegre. Os negros, crianças e adultos, homens e mulheres, eram oferecidos para a venda. O preço oscilava entre 600 a 1.200 mil réis de acordo com a idade e a força. E como me revoltou o tratamento a que eram submetidos! Será possível que se tratem pessoas humanas como o capataz do mercador de escravos tratou os infelizes negros? Para mostrar que tinham dentes sadios bateu com o punho no queixo, fazendo estalar os dentes uns contra os outros, cena que me abalou até o íntimo. E que tratamento indigno foi dispensado aos negros. Mesmo na colônia foram privados do batismo! Tanto assim que, depois da emancipação em 1888 o nosso vigário Pe. Eultgen, batizou pessoas de bastante  idade. Haviam, portanto, permanecido pagãos por todo este tempo e isto num país que se declarava Terra da Santa Cruz."
Passemos agora dos rápidos registros  sobre as condições sociais, para as personalidades de maior importância, que se sobressaíram em nossa picada. Ocupemo-nos, antes de mais nada, com os profissionais. Antes de começar vejo-me obrigado a observar que todos nós éramos obrigados a tocar, em grande parte, todas a profissões. Além disto, porém, dispúnhamos de alguns homens versados em cada ramo.
O pai de Jacob Schmitt, foi um competente marceneiro. Na época morava na 48. Quando se pretendia algum móvel melhor, mais apurado, um armário por ex., uma mesa, uma cama, recorria-se a ele.
Jorge Eckert era um excelente sapateiro que, já no tempo dos Farrapos, trabalhava com cinco ou seis aprendizes. Sua moradia ficava lá onde hoje mora Nikolaus Schmitt. Quando os soldados apareceram nas redondezas, fugiu para o mato levando com ele todo o estoque de botas, sofrendo assim pouco prejuízo. Se tivesse ficado com os calçados e couros em casa, os numerosos fregueses que apareciam, teriam saqueado para valer a oficina.
Os alfaiates eram pouco procurados na época, porque cada qual encarregava-se de ser seu próprio alfaiate e não havia muita preocupação com calças finas e casacos bem talhados. Naquele tempo o provérbio: "o traje faz a pessoa", não tinha muita aplicação. Éramos homens sem que  os alfaiates nos fizéssemos como tais.
Guardo ainda boas lembranças de um certo ferreiro de nome Schatter Sortão  um homem honrado e leal. De manhã cedo junto à bigorna fazia acompanhar as vigorosas marteladas com uma alegre canção. Também o velho Schuler, na entrada da picada  não perdia para ninguém em aplicação, força e sua maneira de ser, para muitos um tanto rude.
Nem os açougueiros levavam seu ofício ao nível dos seus colegas de profissão de hoje. Na época abatia-se  no máximo a cada quatro semanas. Eu mesmo treinei o ofício durante 12 anos  com Jacob Müller. Um certo Herrmann era açougueiro na Estação. Os colonos não costumavam  carnear na sexta feira. De mais a mais não  consumiam muita carne, nos dias de abstinência nem pensar.
Os senhores médicos da época eram personagens bem diferentes dos de hoje. Lembro-me com satisfação do velho coronel Hildebrand de São Leopoldo. Socorria as pessoas com a melhor das disposições, sem cobrar demais. Qual é o doutor de hoje que cultiva ainda o espírito daquele homem honrado, que um dia afirmou: "Poderia  estar de posse de um barril cheio de onças, se não tivesse doado meus proventos a pessoas necessitadas."Também o velho Wolfenbüttel é credor de uma recordação honrosa em Bom Jardim. Queria muito bem às pessoas e com que cordialidade comunicava-se com os pacientes no seu dialeto holandês.
Foi desta maneira que Johannes Finger julgou os homens do tempo da sua juventude. Segundo o "Volksblatt",  o "Kosertiz Zeitung" escreveu sobre ele. “Em Bom Jardim às 11 horas em dezembro de 1896, com 81  anos de idade, entrou para o descanso eterno, o muito conhecido Johannes Finger, o conhecido o "Fingerhannes". Foi um dos primeiros povoadores da nossa região e, como costumava contar, participou de todas as alegrias e sofrimentos. É, portanto, um dos últimos representantes alemães e, como é previsível, em poucos anos  nenhum dos velhos veteranos estará mais entre nós. É obrigação nossa dedicar-lhes uma palavra de recordação e honrar a sua memória. O velho Fingerhannes era conhecido como uma personalidade singular, aberto e honesto, confiável nos atos e nas palavras. Creio que se pode afirmar que era um dos poucos que não tinha inimigos. Fazia parte dos membros mais assíduos da comunidade católica de Bom Jardim à qual pertencia e, por isto mesmo, ela lhe deve muito. Estava preparado para o seu fim, cansado e farto da vida. Descansa em paz, velho amigo, que a terra te seja leve”.
Se um homem, embora católico convicto, encontra tamanho reconhecimento nas colunas do "Koseritz Zeitung", nós da nossa parte não precisamos acrescentar nada. Só uma coisa queremos destacar. "Que estava farto da vida". Esta expressão tem no máximo sentido para um materialista, de maneira alguma para um católico. Da sua boca ouvimos muitas vezes. "Como Deus quiser. Estou pronto." E nos últimos tempos não se cansava em dizer ao sacerdote que o visitava: (163) "Padre, o  senhor precisa intervir com firmeza. Há tantos homens moços que não querem acreditar em Cristo. Sem a fé em Cristo a vida não tem sentido." Quando, pouco antes de falecer, arrastou-se penosamente até a igreja. Pediu a um dos netos que buscasse o padre com  recado que queria receber mais uma vez a Santa Comunhão.
Quando o padre apareceu ergueu as mãos para as arcadas da igreja e chorando disse: "Tudo isto é obra minha." Ao  padre que disse: "Deus te recompensará," respondeu: "Sim, eu o acredito e também o espero."  Mais tarde, no leito da morte, sua primeira palavra foi: "Padre, como é bom morrer perto do senhor." Por fim pediu que se colocasse o crucifixo sobre seu peito, presente do seu velho amigo Pe. Trappe, e que depois da morte fosse sepultado com ele. Que estava bem preparado para a morte ficou claro por uma declaração feita ao padre que lhe garantiu que estava pronto para a eternidade. "Rezo sempre de manhã e de noite e à noite também canto. Rezo também nas suas intenções." Um homem de fé tão robusta não está farto da vida, muito menos um grande devoto da Santíssima Virgem.
Acrescentemos uma pequena lembrança sobre esta última virtude. Quando nos dias úteis o padre escutava do altar o barulho de um terço nos bancos, ele podia ter a certeza: o velho Fingerhannes  está presente e está tirando o terço do bolso. É digno de nota também que ele como único homem destinou um mil réis para a coroa de Nossa Senhora, cuja aquisição fora decidido que seria tarefa exclusiva das senhoras. Para doá-lo desceu especialmente até a casa paroquial, como costumava fazê-lo muitas vezes, para cuidar da parreira, ou bater um papo tranqüilo sobre os velhos tempos que, por vezes, se prolongava até além do almoço.
Já que falamos do Fingerhannes queremos acrescentar uma curta biografia do seu sogro que, começou a vida cultivando  sua colônia na picada. Foi um verdadeiro pioneiro da mata virgem no verdadeiro sentido da palavra, forte, robusto, procedente  da região de Binger no Reno. Conforme o testemunho do Fingerhannes só dormia três horas.
O genro contou que de manhã comia uma manta de toucinho com pão. Este hábito pressupunha naturalmente um legítimo estômago alemão e grandes esforços no trabalho. Lavrava com a enxada e abria sulcos mais retos que um arado. No começo Isaías  Noll, este era o nome deste homem valente, semeava cereais, até que apareceu a ferrugem.
Mais tarde os cereais e a aveia voltaram a produzir, mas desta vez eram outras variedades. Conforme lembra o Fingerhannes, os porcos eram tão selvagens que  era preciso abatê-los  a tiro e não com se procede normalmente. Também o pão que era assado no forno à esquerda da entrada da casa, era tão áspero que machucava a boca. O Fingerhannes levou para casa a filha do velho Isaías Noll, ou melhor, mudou-se para a casa dela e viveu até o fim na colônia de Isaías Noll. Que ela lhe foi uma mulher fiel, conclui-se (164) dos hábitos cultivados até seus últimos dias. Muitas vezes na ida ou na volta da igreja, fazia uma visita à sepultura da mulher. Podia ser visto com o braço apoiado sobre a pedra, cobrindo o rosto com a mão e, não raro, as lágrimas descendo pelo rosto.
No dia 13 de setembro faleceu no Bohnenthal Michel Marmit, um homem  que, na verdade, fora um dos fundadores de Dois Irmãos. Mas pelo fato de ter passado os últimos anos na nossa paróquia e jaz sepultado no Bohnenthal, queremos render aqui um breve tributo à sua memória. Michel Marmit nasceu no dia dois de junho de 1814 em Waderriel (?) na província do Reno. Emigrou para o Brasil em 1827. Reproduzimos aqui a descrição da viagem conforme ele mesmo deixou registrado para os filhos.
"No oceano fomos surpreendidos por uma tempestade que nos jogou em todas as direções. Perdemos todos os mastros e, durante 14 semanas, boiamos entre a água e o céu. O capitão, os marinheiros e os emigrantes davam-se por perdidos. O capitão declarou que só Deus em pessoa poderia ajudar. Foi então que, católicos e protestantes,  decidiram fazer uma oração de contrição. As 700 pessoas ajoelharam-se, rezaram em voz alta e prometeram santificar o dia em que desembarcassem e escolher como patrono da igreja o santo daquele dia. E o que aconteceu? Em meio à angústia fez-se ouvir o troar de um canhão. O corpo do navio temeu e o povo ergueu-se. Neste momento ouviu-se um segundo estampido.
Era uma fragata a procura de navios em dificuldade. Amarraram o navio na fragata e arrastada por ela, cortando as ondas, desembarcaram no dia 29 de setembro em Rio Grande. Pouco depois de chegados apareceu o imperador D. Pedro I em companhia da esposa  e se pôs a conversar com os imigrantes. O príncipe herdeiro brincava junto ao cais, caiu nas ondas e, ao emergir pela segunda vez, foi salvo por Michael Marmit.
De lá a viagem seguiu até a Porto Alegre e depois em carroças até Sapucaia, depois até o Portão na casa de Georg Berg, onde ficaram alojados por quatro semanas. Em Dois Irmãos compramos a colônia de número 38 à direita por 140 mil réis. Erguemos a nossa moradia entre as raízes de uma figueira e entre animais selvagens ferozes. Em 1831, 12 homens construíram uma capela de madeira, consagrada no dia de  São Miguel pelo padre espanhol Antônio.  Segundo o relato de seu filho, o velho Marmit foi o primeiro a empunhar o machado e derrubar árvores para erguer uma casa de Deus na nova Pátria. Com sessenta anos costumava subir no telhado podre da igreja. As tabuinhas podres soltaram-se debaixo dos seus pés e ele escorregou até a beirada inferior do telhado. Conseguiu equilibrar-se e voltar ao trabalho com ânimo redobrado. Mais tarde foi construída uma igreja nova com ele sempre na liderança. Perdeu dois filhos na Guerra do Paraguai, Mathias e Peter. Todas essas vicissitudes não o abateram e, há seis anos, festejou as bodas de ouro em companhia da esposa e 11 filhos vivos. Todos os domingos e feriados peregrinava regularmente para a igreja, até oito de dezembro de 1896. Assim nos informou o filho Georg. Seu último desejo e derradeira vontade merece louvor e imitação. Ao falecer obrigou os filhos a doar 50 mil réis para a capela do Bohnental.
Um personagem moldado (165) de maneira diferente pelo destino foi o velho Mossmann. Suas vivências mostram o drama vivido por um emigrante na viagem para o Brasil.
Mosmann saíra do Hunsrück com a mulher e quatro filhos. O irresponsável capitão do navio desembarcou-os na costa do Pará  e, além disso, os fez atestar que ele tinha cumprido com a obrigação para com eles. Com isto se foi abandonando-os na praia deserta. Para os alemães começou então uma marcha penosa pela praia do mar, alimentando-se com farinha e cachaça. Por  causa do terrível calor eram obrigados a esperar pela vazante para caminhar sobre a areia úmida. No norte não havia estradas e os viajantes obrigaram-se a seguir pela costa. Muitas vezes os homens faziam a travessia dos pequenos rios com água até o pescoço, enquanto os negros do local carregavam as crianças nos ombros. Entende-se que, devido ao verão permanente, não precisassem de muita roupa. Uma calça, uma camisa e um chapéu de abas largas. Quando chovia guardavam a camisa dentro do chapéu e, satisfeitos, marchavam como índios improvisados. Parando a chuva tiravam a camisa de dentro do chapéu e deixavam as calças secar no corpo. Além dos Mossmann tomaram parte nesta viagem  as famílias Walter, Engerhoff, Gewehr e outras. Depois de uma marcha e 200 horas chegaram exaustos e maltrapilhos em Pernambuco. O homem dedicou-se à sua profissão de sapateiro enquanto a mulher pedia esmolas. Felizmente não necessitavam de muitos utensílios domésticos, nem sequer uma cama, porque não havia inverno no local. Depois de muita espera e incerteza o governo deu-lhes finalmente terra e pequenas cabanas, doação concedida também aos jovens de 20 anos. Cultivavam um certo tipo de batata, cana de açúcar e mandioca. Eles próprios preparavam a farinha torrando-a num forno. Embora próximos da cidade do Recife em Pernambuco, não lucravam nada com as hortaliças, porque as grandes formigas devoravam tudo. Começaram então a queimar carvão, carregando-o em cestos até a cidade, cinco horas distante.Valiam-se para isso de cavalos não castrados. levando-os pelo cabresto. Compraram os cavalos em estado lamentável dos tropeiros, recuperaram-nos com mandioca e cana de açúcar, dando-lhes um boa aparência. A família trabalhou durante oito anos e conseguiu ajuntar algum dinheiro. Não abandonaram o desejo de juntar-se com os alemães no sul, principalmente porque as crianças sofriam do mal da terra. Com o dinheiro custearam a viagem marítima até o  Rio Grande e sobrou o bastante para comprar meia colônia de Lavalt por 600 mil réis. Neste lote Mossmann construiu primeiro uma choupana, um rancho e mais tarde uma casa melhorada. Acabara de mudar-se para lá quando veio a Revolução. Mossmann ficou do lado dos Farrapos e passou as dificuldades das quais já falamos. Na medida em que a Revolução se aproximava do seu final, entregou-se ao ofício de sapateiro em companhia de dois rapazes e um aprendiz. Ganhou um bom dinheiro com as assim chamadas botas para as fazendas e sapatos para os militares. Dos oito filhos um faleceu em Pernambuco. Em 1844 Mathias Lauermann casou com a filha Rosina. Depois de um longo e feliz casamento faleceu em 1892 de uma morte súbita mas não sem estar preparada. Duas outras filhas, as pernambucanas, por terem nascido no estado de Pernambuco, casaram, uma com Philipp Renner e a outra com Carl Sänger. O próprio Mossmann faleceu em 1886 com a fama de um homem correto e trabalhador.




[1] Marca de cerveja inglesa importada

This entry was posted on quarta-feira, 17 de agosto de 2016. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.