[ Reflexões ]

Doctrina multiplex – Veritas una  
As Doutrinas são muitas – a Verdade uma só.

Na medida em que a vida avança e os anos se somam em décadas, umas depois das outras, a natureza e os objetos das reflexões diminuem gradativamente em número, mas em compensação aqueles que perduram, ganham em importância existencial.  Aos vinte anos olhávamos em nossa volta e percebíamos o mundo como um cenário feito de múltiplas possibilidades. Caminhos em muitas direções nos convidavam a percorrê-los. Percebíamos o mundo como um cenário de múltiplas possibilidades para planejarmos os rumos da nossa existência, realizarmos nos nossos sonhos e concretizarmos os nossos ideais. A imaturidade e a falta de experiência cobraram em não poucas ocasiões um preço muito alto. Não poucos sonhos mostraram-se quimeras fugazes, outros tantos, utopias impossíveis. Opções para darmos rumos à vida que pareciam definitivas, mostraram-se equivocadas no decorrer dos anos. Para não sucumbir em tais situações foi preciso recorrer a correções de rota que, aparentemente, poderiam parecer rupturas pela raiz com o passado. Objetivamente falando, porém, não passaram de escolhas ousadas para não sacrificar a linha mestra da coerência que tínhamos traçado para a vida. E assim nos empenhamos na compreensão da vida e das vivências pessoais, dos relacionamentos com as pessoas, da atividade acadêmica, da procura de soluções para as perguntas de fundo da existência, da busca de respostas satisfatórias pelo sentido e o lugar que no universo cabe à natureza, ao homem e a Deus. Alinham-se nessa lógica também situações limites em que a nossa resistência física, psíquica e espiritual, foi posta à prova próxima ao sobre-humano. Se corretamente entendidas e avaliadas, porém, essas eventualidades que nos surpreenderam na nossa caminhada ao longo dos anos, tinham o poder de depurar, selecionar, descartar, dar valor ao verdadeiro, e dessa forma converter a “Geschenkte Zeit” – como diriam os nossos antepassados, ou “o tempo que nos resta como uma dádiva valiosa” – no coroamento prazeroso dos muitos sonhos que alimentamos e numa lição proveitosa para os que continuam privando conosco. 

E para não ficar apenas em afirmações genéricas, vagas talvez, tentarei aprofundar um pouco a linha de reflexão esboçada. Parece-me que a grande mestra que é a vida nos propõe três lições a serem aprendidas. - A primeira. Nenhuma proposta teórica e metodológica por si só contém potencial suficiente para dar uma resposta final para as questões realmente de fundo como são: a origem e o sentido do universo, da natureza, do homem, e em meio a isso tudo, qual o lugar ou não lugar para Deus. – A segunda. Além das abordagens convencionais pelo lado das Ciências Exatas ou da Filosofia, duas outras aproximações não podem ser ignoradas: o conhecimento que nos fornece a percepção, difusa, de alguma forma instintiva e intuitiva, tão importante na orientação e conduta do quotidiano das pessoas. E a esses níveis de respostas é preciso acrescenta, sob o protesto e a ira do racionalismo científico, o conhecimento teológico. – A terceira – Ninguém é dono da Verdade. Melhor talvez, ninguém descobriu a Verdade, nem o cientista com suas teorias, hipóteses, métodos e tecnologias mais sofisticadas, nem o filósofo com seus mergulhos nos meandros da natureza das coisas e dos fatos, nem o homem comum com sua ciência intuitiva quase  instintiva, nem o teólogo por mais certeza e convicção que lhe garante a fé. Mais do que nunca permanece verdadeiro o princípio que elegemos como título dessa reflexão: “Doctrina Multiplex-Veritas Una” – “As doutrinas são muitas – a Verdade é uma só”, ou como diria Nicolau de Cusa: “Ex partibus ominibus elucet totum” – “Pelas partes vislumbra-se o Todo”. Ou ainda a Verdade é o Todo e somente o Todo é a Verdade.

Quando se trata de explicar a natureza dos fatos e acontecimentos que dizem respeito ao homem e tudo que o rodeia e envolve, estamos habituados a considerar apenas duas aproximações válidas: a abordagem a partir das Ciências Naturais e a partir  das Ciências do Espírito, das Ciências Humanas, das Letras e Artes. Acontece, porém, que se formos  rastrear as veredas percorridas pelo conhecimento, desde que estamos de posse de dados confiáveis, uma coisa parece certa. A partir do momento em que, em alguma data remota e em algum lugar não conhecido da terra, faiscou  pela primeira vez a centelha da inteligência reflexa e “o homem se fez homem”, a pergunta pelo quando, o como e o porque da sua própria existência e do universo que o rodeava, fez parte das suas preocupações. Os fatos e fenômenos que acompanhavam a concepção, a gestação, o nascimento, o crescimento, o declínio e a morte individual, colocaram o homem de então frente a incógnitas que pediam explicações. O mesmo se pode afirmar das realidades que o rodeavam: os ciclos do ano, as fases da lua, a trajetória quotidiana do sol, a floresta misteriosa, a majestade das montanhas, o firmamento coberto de estrelas, os assustadores fenômenos da natureza como erupções de vulcões, a fúria das tempestades e tornados. Tudo isso reclamava explicações, sugeria razões de ser, sentidos e significados. E quais foram os instrumentos de que os pastores nômades, os agricultores, os caçadores, os pescadores e os coletores do neolítico e do paleolítico dispunham. Não muito mais do que uma percepção intuitiva, com muita coisa próxima do instinto, estimulando a capacidade reflexiva, alimentando a curiosidade e a procura de explicações. Foi em meio a esse panorama caracterizado por uma sobrevivência amparada num misto de estímulos instintivos, mas municiada também pelos potenciais do seu raciocínio reflexo, que o homem foi consolidando as bases do conhecimento. E conhecer não significa apenas ter certezas matemáticas, demonstrações em laboratórios, observações microscópicas, experimentos em estações experimentais ou observações em telescópios orbitando no espaço. O conhecimento também não se limita aos resultados e às conclusões da lógica racional. O verdadeiro conhecimento é algo muito mais complexo. Ele busca, como sempre buscou, a sua legitimidade na satisfação da curiosidade, no atendimento às necessidades, na resposta aos questionamentos e na contribuição que é capaz de dar ao homem em busca da sua realização existencial.

A premissa de que o conhecimento é fruto da busca do homem por caminhos que o levam a decifrar-se a si mesmo e ao mundo em que vive, faz concluir de que qualquer resposta nesse sentido, é fruto de alguma forma de conhecimento. Tentemos identificar e caracterizar o que parecem ter sido e são ainda hoje os diversos níveis do conhecimento.

[ Reflexões ]

Com o homem as coisas se passam de maneira bem diferente. Munido de Inteligência Reflexa é capaz de “saber o porque do seu saber”. Por isso desde aquele momento único na história do universo em que, em alguma savana da África ou em qualquer outro lugar do nosso planeta, cintilou pela primeira vez a centelha da Consciência Reflexa e o homem se fez homem, sua natureza permaneceu a mesma até hoje. Se a espécie humana fosse apenas mais uma espécie de símios antropoides, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou condenado a uma sobrevivência sem brilho. Suas mãos não especializadas servem para tudo, e por isso mesmo, não servem para nada específico. Seus dentes caninos servem para pouco mais do que completar a arcada dentaria. Seus sentidos pouco apurados não lhe garantem os alertas e alarmes suficientes, num entorno em que atrás de cada árvore, cada arbusto, cada rocha, ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem. A Inteligência Reflexa não só compensou a precariedade da especialização anatômica, como a transformou em trunfo para o sucesso na competição pela conquista dos espaços e na batalha pela sobrevivência.

Com olhar curioso e inquiridor o homem perambulava pelas florestas, pelas estepes, pelos desertos, pelas montanhas e planícies, observando, experimentando, comparando, distinguindo e selecionando aquilo que a natureza lhe punha à disposição em alimentos, vestuário, abrigo, proteção, inspirações, simbolismos e estímulos, responsáveis pela formação do imaginário. A cepa original da espécie humana multiplicou-se e povoou a terra: a África, a Ásia, a Europa, as Américas e o mundo insular do Pacífico. Centenas de raças: brancas, negras, amarelas, vermelhas e todos os matizes que a miscigenação entre elas foi capaz de engendrar, construíram suas histórias, desenvolveram culturas e consolidaram civilizações. E nessa fantástica epopeia o homem buscou no seu entorno ambiental o sustento, o abrigo e os símbolos para construir o seu imaginário. A partir de então aconteceu a lenta e gradativa simbiose, a síntese entre o homem e a paisagem, e com ela, definiu-se o caleidoscópio multicolorido das culturas das centenas de milhares de povos que povoaram e ainda povoam a terra.

Fazer história consiste no esforço de acompanhar, passo a passo, o acontecer da síntese entre os muitos elementos que compõem a trajetória humana através do tempo e do espaço. E quais são os campos que necessariamente precisam ser tomados em conta se de alguma forma quisermos entender a história da humanidade no seu todo ou nas suas inúmeras formas particulares? Pelo fato de formar uma espécie biológica o homem acha-se imerso ontologicamente no mundo natural. Não é aqui nem o lugar nem o momento para uma análise mais aprofundada da sua vinculação com a natureza química, física, biológica, biogenética e evolutiva. O que não pode ser ignorado por nenhum historiador é a importância decisiva do entorno geográfico em que as culturas e civilizações históricas se desenvolveram. A disponibilidade, o tipo e a natureza das fontes de alimentação, o clima, a vegetação, a facilidade ou dificuldade de circulação, os solos, a topografia e outros elementos naturais, foram e são ainda fatores determinantes na moldagem do perfil histórico das culturas. Buscando no seu entorno geográfico os alimentos, o abrigo contra as intempéries, contra as feras e os inimigos da própria espécie, o homem consolidou uma relação de vida e morte com as vicissitudes circunstanciais. Mas não foi só isso. A natureza não oferece apenas o pão de cada dia como também os símbolos, os estímulos para alimentar o imaginário, dar vazão ao impulso estético, personificar o universo mitológico e fornecer respostas às questões existenciais. A dependência do homem da natureza ensinou-lhe caminhos, formas e alternativas, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história. E penetrando nos mistérios da natureza, e espelhando-se neles, procurou compreender-se a si mesmo, e dessa forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência. O imaginário, as crenças e cultos buscaram a inspiração na dinâmica da vida nos acampamentos dos pastores e aldeias dos agricultores e nos fenômenos naturais que envolviam o quotidiano. Fatos como nascer, viver e morrer; a jornada diária do sol, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e a lua em divindades, personagens mitológicos. Não tardou que os observadores mais atentos notassem que esse universo não tinha nada de estático. Os astros movimentavam-se numa dança disciplinada, percorrendo caminhos e roteiros em meio a movimentos que obedeciam a leis fixas. De tempos em tempos essa coreografia celeste sofria a intromissão de fenômenos estranhos. O sol ou a lua passavam por eclipses, clarões iluminavam as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava pelo firmamento, para em seguida, submergir novamente no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas e a queda de meteoros, devem ter mexido com o imaginário daqueles povos. E observando as galáxias em noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas, as constelações, foram assumindo contornos de figuras de animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, a libra, os peixes, o touro, o leão e outros mais. Dessa forma o firmamento acima de suas cabeças povoou-se de criaturas imaginarias, réplicas daquelas com as quais convivia no dia a dia. Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre os criadores de cabras e ovelhas e os agricultores do neolítico e provavelmente mais cedo ainda. A relação real ou imaginaria que se estabeleceu a partir daí entre o curso e a posição dos astros e a sorte e o destino dos homens, não parou de se aprofundar. Mesmo hoje, quando o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios da natureza, as consultas ao horóscopo não perderam nem público nem popularidade e contando com um número de representantes nada desprezível nas camadas consideradas cultas e ilustradas.

O convívio imediato, diuturno e íntimo com a natureza, despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua existência desenrolava-se na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, suas crenças, sua religiosidade, suas religiões, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer se animava e se personalizava de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. Assumia vida e importância pelo que representava no quotidiano e pelo que sugeria à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. Em meio a essa dinâmica de interação, de amálgama e de síntese, as culturas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo. 

Alguém poderia objetar que há exagero nessas afirmações. A importância atribuída ao meio geográfico poderia levar à falsa compreensão de que as culturas são, em última análise, subproduto do meio geográfico. É verdade que, quanto mais se recua na História, tanto mais se faz perceber essa impressão. Sem cair, porém, no exagero, defendendo o determinismo geográfico, não se pode esquecer que sem a colaboração do geógrafo a análise e a pesquisa histórica carecem de um elemento fundamental. Não por nada a História e Geografia formavam uma unidade acadêmica e curricular até a década de 1960, fornecendo ao egresso o diploma de bacharel ou licenciado em Geografia e História.
Nas entrelinhas do que vinha afirmando sobre a importância dos subsídios que a geografia fornece ao historiador, um outro campo de vital importância para as Ciências Humanas é formado pela Antropologia, Etnografia e Etnologia. No acontecer da simbiose entre o entorno geográfico e o homem ao qual já nos referimos várias vezes, pela versatilidade criativa que a inteligência reflexa lhe proporciona, foi imprimindo um crescente toque de humanização às paisagens naturais. Cabe ao antropólogo físico, antropólogo cultural e antropólogo social, etnógrafo e etnólogo, municiar o historiador com dados sem os quais este corre o risco de escrever uma história, original talvez, mas carente de sustentação objetiva. Se a origem e natureza das matérias primas empregadas na construção da cultura material, tem tudo a ver com o meio geográfico em que se encontram, as tecnologias de confecção e de utilização reclamam a participação do etnógrafo que as descreve e o etnólogo que realiza o estudo comparativo. Mas os dados por eles fornecidos não são suficientes. É preciso recorrer ao antropólogo cultural para de alguma forma oferecer uma visão e uma compreensão das bases materiais, ideais e organizacionais sobre as quais a humanidade construiu a sua história. O homem por natureza, ou por instinto se preferirem, é um ser social. Desde que dispomos de alguma maneira de informações confiáveis o homem sempre viveu em hordas, bandos, tribos e/ou sociedades complexas, que definiam as regras da convivência, de acordo com cada situação em particular e o nível de desenvolvimento cultural de cada agrupamento. Da mesma forma a organização econômica mais ou menos complexa, responsável pela regulamentação do acesso, posse e uso dos bens materiais, encontra-se presente em qualquer ambiente em que convivem humanos. À organização social e econômica veio somar-se a organização política e a organização religiosa, aquela encarregada de definir a hierarquia e esta as crenças, rituais e o comportamento ético e moral. Definiram-se assim os campos da Antropologia que hoje contam com um número crescente de adeptos e especialistas: A Antropologia Social, a Antropologia Econômica, a Antropologia Jurídica, A Antropologia Religiosa, a Antropologia Filosófica e a Antropologia Teológica.

E o que sugere o que acabamos de afirmar? Em algum momento que se perde nas brumas do tempo, começou a História, quando apareceu a primeira criatura dotada de inteligência reflexa. Não importa nem onde nem quando. Os dados fornecidos pela paleontologia antropológica, pela biogenética, pela arqueologia apontam para um fato que se deu uma única vez. Em outras palavras: A espécie humana é uma assim como sempre foi uma. À mesma conclusão chega-se quando se parte do conceito filosófico e teológico de espécie humana. A partir daí e na medida em que crescia em número, a humanidade foi ocupando sempre mais espaços, até marcar                               presença onde de alguma forma encontrava as condições mínimas de sobrevivência. E nesse processo que consumiu dezenas para não falar em centenas de milhares de anos, aconteceu a diversificação das raças e as incontáveis formas e modalidades de culturas das quais nos dão conta a geografia humana, a etnografia, a etnologia, a antropologia física e cultural, a história e as áreas complementares do conhecimento. Conclui-se daí que o homem construiu e continua construindo as suas culturas a partir da multiplicidade, da heterogeneidade e da complexidade dos estímulos que vêm do mundo ambiente em que vive. Mas não se pode perder de vista que essa pluralidade tem uma razão de ser na unidade radical de que fala Nicolau de Cusa, Teilhard de Chardin, Ludwig von Bertalannffy, Balduino Rambo, ou a pluralidade é a forma fenomênica do Uno, como observou Alexandro Serrano Caldera. Partindo desse pressuposto todas as culturas têm valor em si. É preciso superar velhos conceitos e preconceitos como: povos selvagens e povos civilizados, baixa, média, alta selvageria e civilização, primitivo e moderno, bárbaro e civilizado, cultura superior e inferior e outros mais. Uma outra base conceitual se impõe. As culturas encontram-se em níveis tecnológicos diferentes e em condições geográficas peculiares. Por isso elas são diferentes, o que não é prova de inferioridade ou superioridade evolutiva. Não são nem piores nem melhores umas do que as outras. São apenas diferentes. Cada cultura não passa de uma resposta singular dada por cada povo em particular, às necessidades materiais e espirituais sintonizadas com as características e estímulos vindos do entorno ambiental concreto.

Partindo dessa perspectiva foi tomando vulto a Filosofia Intercultural que parte do pressuposto de que todos as culturas são iguais na sua raiz.. Cada uma representa uma resposta peculiar dada aos desafios da vida, estimulada pelo contexto em que vive e como tal válida e digna de respeito. Todo empenho é pouco quando entra em questão o reconhecimento das diferenças, a aceitação das diferenças, o respeito às diferenças e o esforço sincero de incentivar o diálogo entre as diferenças. É a essa altura que se impõe o imperativo ético capaz de reger o encontro e as relações interculturais. Sem um fundamento ético toda a pregação e todo fascínio pela visão intercultural, estagna no plano da especulação, das constatações antropológicas, históricas, sociológicas, políticas ou ideológicas.

Voltamos assim ao ponto de partida: fazer História, diria Alexandro Serrano Caldera, “é percorrer novamente velhos caminhos, imaginar o ocorrido e sobre ele construir a nossa realidade, o que por sua vez, servirá de ponto de partida para a projeção do futuro pois, as coisas não são como as vemos, mas como as recordamos” (Caldera, 2004, p. 14). Trata-se de uma empreitada que requer um esforço interdisciplinar sério, honesto, despojado e desinteressado. Ao filósofo cabe identificar, analisar e interpretar os paradigmas, a visão do mundo, a concepção do homem e a sua razão de ser; cabe ao antropólogo interpretar a obra do homem nas suas ambições, limitações e grandezas; cabe ao geógrafo fornecer os dados para entender os milhares de perfis de culturas  que se sucederam e alternaram durante a História; cabe, enfim, ao Historiador a tarefa de, considerando o pano de fundo formulado pelo filósofo, a realidade humana pintada pelo antropólogo e a paisagem natural  desenhada pelo geógrafo, ordenar e descrever a marcha sincrônica e diacrônica do homem através dos tempos.

Conclui-se que a missão das Ciências que lidam diretamente com o homem, não é nem fácil, e não poucas vezes considerada dispensável, inútil e perda de tempo, num momento em que a tecnologia está em alta. O que vale é o aqui e o agora. O passado nada tem a oferecer e o futuro não passa de uma incógnita, uma ilusão, uma utopia ilusória e impossível. De outra parte, porém, os anseios mais profundos do homem clamam pela reversão do quadro de fragmentação, dissociação, desconstrução de paradigmas e a abolição de referenciais. Percebe-se um apelo crescente que pede por uma proposta de uma nova síntese, que recoloque o Todo, a Verdade, o Uno, como ponto de convergência, como norte, capaz de fazer com que o ser humano se reencontre de novo consigo mesmo e com a sua própria razão de ser.

[ Reflexões ]

Reflexão sobre o fazer História

Depois de mais de cinco décadas em sala de aula e dedicação à pesquisa chegou o momento de arriscar um olhar retrospectivo e proceder a um balanço dos resultados auferidos nessa jornada dedicada à academia. Esses anos todos não foram simplesmente consumidos em ministrar aulas, e por meio delas, familiarizar as novas gerações com os conhecimentos essenciais que cobrem os diversos campos do conhecimento, ou na orientação de trabalhos científicos, dissertações e teses. É comum a impressão de que a razão de ser de um mestre se esgota ao nível dessas atribuições formais. Acontece que as demandas que caracterizam um autêntico mestre, e eu me incluo entre eles, podem rotula-lo de falta de modéstia, não me importo, pressupõem uma constante atualização, ampliação e aprofundamento dos conhecimentos. E na medida em que informa e principalmente forma gerações de discípulos elabora, consolida e interioriza uma cosmovisão própria, fruto da percepção original e singular pela qual enxerga os acontecimentos e fatos que o rodeiam. Muitos há que não passam do alinhar-se ou filiar-se a linha teórica e metodológica de um determinado autor ou de uma determinada escola. Com orgulho autodenominam-se marxistas, liberais, positivistas, hegelianos, tomistas, platônicos, aristotélicos, agostinianos, cramscianos, da Escola de Frankfurt, etc. Costumam analisar e interpretar tudo sob a ótica teórica e seguir a cartilha metodológica das autoridades acadêmicas ou escolas de sua preferência. Em outras palavras. Bitolam suas investigações na linha de teóricos, teorias e escolas de plantão no momento. Uma opção nesta linha, porém, esconde uma perigosa armadilha. Não raro termina numa percepção unilateral e parcial da realidade e com facilidade leva à adesão a ideologias de ação equivocadas que, se levadas ao extremo, terminam em posições fundamentalistas, tanto no campo estritamente religioso, quanto no político, econômico e até científico. Não se  dão conta de que as teorias não costumam durar mais que “uma manhã de verão”, como alerta  Teilhard de Chardin. Essa é a sina que ronda cientistas, pesquisadores e estudiosos de modo especial na civilização pós-moderna. Diante de um universo fragmentado, a ponto de perder a noção do todo, constroem mundos individuais cada vez mais acanhados e estanques. O físico, o biólogo, o geneticista, o geógrafo, o sociólogo, o economista, o antropólogo, o historiador, o filósofo, o teólogo, recolhem-se aos seus cubículos sem janelas. A perda da capacidade de perceber o Todo, a Totalidade, é diretamente proporcional ao avanço de suas descobertas. De tanto dissecar, desmontar e analisar já não percebem mais o corpo, muito menos a alma. Só restam tecidos, engrenagens, peças de máquina, fatos e ideias dispersas. Há mais de setenta anos escrevia Teilhard de Chardin, prenunciando a pós-modernidade que se anunciava no horizonte:

Ao contrário dos “primitivos” que dão personalidade a tudo que se mexe, ou mesmo dos primeiros grupos que divinizavam todos os aspectos e todas as forças da natureza, o homem moderno tem a obsessão de despersonalizar o que mais admira. Duas razões para essa tendência. A primeira é a análise – esse maravilhoso instrumento da pesquisa científica, ao qual devemos todos os nossos progressos – mas que, de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e de partículas que se esvaem. E a segunda é a descoberta do mundo sideral, objeto tão vasto que se tem a impressão de que toda a proporção entre o nosso ser e as dimensões do Cosmos à nossa volta, foi abolida”. 

E a profecia de Teillhard de Chardin tornou-se dura realidade neste começo do terceiro milênio. O mundo pós-moderno caracteriza-se pela perda de referências e pela negação de princípios e valores sociais, éticos, morais e religiosos permanentes. E a razão de ser desse cenário preocupante é a perda da perspectiva de um Todo que serve de referência e faz com que o universo, a natureza e o próprio homem façam sentido e não desande em “náusea existencial”, no entender de Sartre.  O esforço maior, portanto, que cabe à Academia e mais especificamente à Universidade consiste, em de alguma forma, trilhar o caminho de volta ao reencontro com o Todo, a Totalidade, a Verdade. Alexandro Serrano Caldera chama a atenção que:

 “Vivemos num mundo cuja realidade é a dissociação, a dispersão e a fragmentação e que cabe à Universidade reunir de novo os fatores dispersos numa unidade que é o ser humano; numa síntese que é o homem, a mulher, o sujeito histórico”... “Há nisso a intenção fundamental de síntese e integração do ser humano com sua realidade, com a sua sociedade e com a sua história. É nesse particular que a Universidade e o Conhecimento têm de jogar um papel unificador”. (Caldera, 2004, p. 106)

Deixemos de lado os campos que se ocupam com as assim chamadas ciências empíricas, ciências experimentais, ciência exatas, ciências duras, ou qualquer outro nome que se prefira. O nosso “negócio”, para nos servirmos do termo tão prestigiado pelo homem pós-moderno, são as Ciências Humanas, e mais especificamente, as Ciências Históricas.

Como sugere o próprio conceito as “Ciências Humanas” cobrem um vasto e complexo campo de conhecimentos e investigações complementares que têm no homem o centro das preocupações. E sendo assim, todo e qualquer esforço para encontrar respostas para as muitas perguntas que se colocam para o historiador, pressupõe uma que é a condição sem a qual as demais ficam no ar: quem é afinal o Homem? As respostas são tantas quantos os pontos de vista a partir dos quais o observamos. Parece que os antigos gregos formularam uma que pode ser útil como ponto de partida para uma reflexão sobre o homem como ser histórico: o homem existe  como a natureza mineral; o homem existe e vegeta como as plantas; o homem existe, vegeta, sente como os animais; o homem existe, vegeta, sente e raciocina. Em outras palavras. Os minerais existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam, sentem, têm consciência e memória, o homem existe, vegeta, sente, tem consciência e memória, mas   distancia-se das categorias taxonômicas anteriores, por tomar conhecimento e “raciocinar”. São várias as conclusões que podemos tirar dessa constatação.

Primeiro. Ao percorrermos a história dos povos, um fato inequívoco impõe-se: a relação do homem e de suas culturas com o meio natural em que surgiram e se consolidaram. E não se trata de uma simples relação conjuntural, mas de uma inserção existencial, ontológica, no mundo natural. E não poderia ser de outra forma. Começa pelo fato de o corpo material do homem buscar os componentes estruturais entre os elementos comuns encontráveis na natureza: oxigênio, nitrogênio, carbono e hidrogênio, além de duas dezenas de outros, constantes na tábua periódica dos elementos.

Segundo. Como qualquer outra espécie animal o homem depende dos alimentos, depende dos abrigos e refúgios naturais para se proteger das intempéries e defender-se das feras e dos inimigos da própria espécie.

Terceiro. O homem partilha com os outros animais o mesmo ciclo de vida. É concebido, nasce, vive e morre em obediência às mesmas leis que regem a vida individual e coletiva das demais espécies. Mais. A humanidade, assim como nos é apresentada pelas Ciências, pela Antropologia, pela História, pela Filosofia e pela Teologia, forma uma única espécie. Pelo menos é assim que a definem os critérios taxonômicos da classificação das espécies animais e confirmam-no os estudos do genoma humano e os estudos da paleologia antropológica. As pesquisas arqueológicas, etnográficas e etnológicas, assim como a história da cultura, apontam para a mesma conclusão. E para não haver dúvida sobre a unidade da espécie humana, a Antropologia Filosófica e a própria Antropologia física e a Teológica concordam com as definições que as Ciências Naturais e as Ciências Humanas defendem na teoria e supõem como ponto de partida quando lidam na prática com questões humanas.

Quarto. A espécie humana, entretanto, embora com raízes ontológicas no mundo mineral ou na litosfera, no mundo vivo ou biosfera, supera-os pela inteligência reflexa, para dar vida e existência a uma esfera completamente nova, a “Noosfera”, para recorrer a um dos conceitos-chave de Teilhard de Chardin. Enquanto os minerais apenas existem, as plantas existem e vegetam, os animais existem, vegetam, sentem e se orientam pelos instintos, o homem existe, vegeta, sente e conta com os instintos como estímulos, mas sobretudo raciocina e reflete.  Não é o lugar nem o momento de entrarmos mais a fundo na discussão se a passagem do Rubicão que marca a fronteira entre o instintivo e o racional, foi um salto de qualidade ou apenas mais uma ascensão gradual prevista na lógica da evolução natural. O fato é que representou o ponto de partida para uma revolução inédita de uma espécie viva na solução dos desafios existenciais. Em outras palavras é lícito formular o “salto” a que nos acabamos de referir nos seguintes termos: o animal orientado pelo instinto “sabe” o que lhe convém e “sabe” o que lhe é prejudicial. O instinto cego garante-lhe o sucesso sempre que o âmbito do seu potencial não for ultrapassado. Nesse sentido pode-se afirmar que o instinto garante com certeza matemática o sucesso, e por isso o animal não tem versatilidade nem liberdade para escolher saídas alternativas, quando algum caminho se fecha.

[ Reflexões ]

Até aqui tentamos esboçar em linhas muito gerais como aconteceu a síntese que resultou da busca do homem dos recursos para atender às demandas materiais e espirituais durante o Neolítico. O resultado foi a consolidação da identidade das culturas dos caçadores e coletores. As identidades étnico-culturais consolidadas no decorrer do Paleolítico, resultaram da relação existencial entre o homem e o meio contingenciado pela própria natureza dos fatos. O homem não vive, não sobrevive, muito menos prospera fora dos contextos geográficos que vai encontrando na sua expansão pelos múltiplos territórios que a superfície da terra lhe oferece. Num primeiro momento busca o que lhe é oferecido espontaneamente para sobreviver. A identidade étnica dos primeiros grupos e caçadores, pescadores e ou coletores, exibia as marcas evidentes da batalha travada com o entorno geográfico. Essa situação começou a melhorar na medida em que o homem se equipou com ferramentas e as foi aperfeiçoando e especializando. Aos poucos o “humano” foi-se impondo até aproximar-se do equilíbrio no qual o meio ambiente entrou com as matérias primas, os referenciais simbólicos e a maneira como o homem materializa seu imaginário e torna palpável seu universo mitológico e suas crenças. Orientado pelo instinto de sobrevivência o homem foi buscar na natureza os alimentos de que necessitava. E, desde muito cedo o próprio ato de alimentar-se, essencial par viver, ultrapassaria o simples ato instintivamente compulsório, para fazer-se acompanhar de procedimentos de natureza cultural: hábitos, costumes, proibições, tabus e outros. O ato de alimentar-se assumiu as características de um ritual. E não só o ato de alimentar como também os próprios alimentos passaram a integrar as culturas, revestidos de sacralidade, de poderes mágicos, afrodisíacos, religiosos ou maléficos.

A parceria do homem com a natureza ensinou ao homem caminhos, formas e alternativas de como melhor consolidar uma pareceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da própria história. E, nesse esforço, três desafios estimularam a criatividade. Em primeiro lugar, encontrar alimento e abrigo, assegurando a sobrevivência física. E segundo lugar, descobrir e aperfeiçoar tecnologias eficientes tornando mais fácil a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. O terceiro o mais importante de todos, consistiu no esforço de penetrar nos mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo para, desta forma, entender e desvendar as incógnitas da própria existência.

O convívio imediato, diuturno, íntimo, existencial com a natureza despertou no homem a percepção de fazer parte dela. Além de depender dela para a vida e a morte, a sua vida desenrolava-se na mesma cadência, nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, o homem foi construindo a sua cultura, a sua história, o seu imaginário, a sua simbologia, alimentando suas crenças, sua religiosidade, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim, a sua cosmovisão. Tudo que o rodeava, por assim dizer,  animava-se e se personificava de acordo com seu significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades naturais e os fenômenos que as acompanhavam assumiam importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam à imaginação. Aconteceu assim um espelhar-se recíproco entre o homem e as realidades e fenômenos naturais. E, em meio a esse processo de interação, de amálgama e de síntese, as culturas e identidades étnicas foram desenhando seus perfis e a História definindo o seu rumo.

[ Reflexões ]

A inteligência reflexa, porém, não só compensa a precariedade da especialização anatômico-fisiológica, como a transforma em trunfo para o sucesso na competição por espaços e na batalha pela sobrevivência. As mãos representam o que há de mais emblemático na falta de especialização anatômica. A rigor não passam de um equipamento que serve para tudo e, por isso mesmo, não serve para executar nenhuma tarefa especializada. Neste nível perde em competitividade para as garras de felino, as patas de um cavalo, as unhas de um tamanduá. Executam tarefas de qualquer um desses e outros animais, mas de forma precária e pouco eficiente. Paradoxalmente, entretanto, a falta de especialidade da mão, transforma-a na ferramenta ideal a serviço da inteligência reflexa. Sua versatilidade não conhece limites quando a seu serviço, exatamente por ser anatomicamente inespecífica. Treinada é capaz de executar os movimentos mais complicados e mais insólitos. Que extremidade de animal é capaz de dar conta da multiplicidade, da variedade e da habilidade dos movimentos que o violinista exige dos seus dedos e mãos ao executar uma peça de música. As papilas das pontas dos dedos denunciam irregularidades mesmo invisíveis a olho nu, numa superfície de papel, metal, madeira ou vidro. Acontece que o homem utilizando sua inteligência reflexa transformou, o que em muitos casos seria um estorvo, no trunfo maior da sua superioridade na batalha pela sobrevivência.

E, ao perceber as limitações da mão, não tardou que nossos mais antigos ancestrais concluíssem pela possibilidade de equipá-la com complementos artificiais para compensar sua precária eficiência quando desarmada. Começou, a partir daí, a caminhada vitoriosa do homem através dos milênios, desenvolvendo tecnologias cada vez mais eficientes. Encontrou no próprio entorno geográfico as matérias primas utilizadas para confeccionar os primeiros artefatos. É legítimo supor, sem grandes riscos de errar, que o homem de então se serviu de madeira, osso, chifre. Sendo materiais sujeitos a uma rápida destruição pelo calor, a umidade e ação mecânica da areia e a movimentação do solo, suas marcas apagaram-se sem deixar vestígios. Os artefatos mais antigos evidentemente manipulados por mãos humanas, são os instrumentos líticos. Resistem quase indefinidamente à ação das intempéries, ainda mais quando forem de sílex, vidro vulcânico e similares. Com eles é possível reconstituir a evolução, o aperfeiçoamento e a diversificação dos instrumentos. O artefato que poderíamos chamar de protótipo vem a ser o “machado de punho”. Para os nossos padrões é tosco na sua confecção e rudimentar e precário na sua eficiência. Examinado bem, entretanto, as múltiplas utilidades a que se destinava, foi o protótipo a partir do qual se derivou, nos milênios posteriores, a indústria de ferramentas, instrumentos, utensílios, implementos, destinados a compensar e superar a ineficiência anatômica e a falta de especialização da mão. Com o “machado de punho” foi possível enfrentar as tarefas mais elementares para melhorar as perspectivas de sobrevivência. Servia como instrumento para escavar, cortar, golpear, arremessar. Com ele trabalhava-se a matéria prima para a construção e instalação de abrigos, caçavam-se animais, escavavam-se raízes e tubérculos. Tornava mais fácil e eficiente a defesa contra animais selvagens e inimigos humanos e facilitava a confecção de vestimentas, enfim, permitiu ao homem da pré-história começar a longa e penosa jornada do controle e domínio do entorno geográfico. A partir dos machados de punho abriu-se o leque sem limites de possibilidades para a especialização de instrumentos e aperfeiçoamentos tecnológicos de lascamento por todo o Paleolítico e parte do Neolítico. Os artefatos e instrumentos diversificaram-se e especializaram-se em ritmo geométrico e as técnicas de lascamento atingiram níveis extremos de acabamento e refinamento. Com a entrada do Neolítico o polimento levou as técnicas da indústria lítica a esgotar suas potencialidades. Os instrumentos de madeira, osso e chifre dão conta de uma dinâmica paralela e semelhante a da utilização da pedra como matéria prima. E na medida em que a criatividade do homem foi aperfeiçoando as técnicas e melhorando a eficiência dos instrumentos de madeira, osso, chifre e pedra, descobriu outras matérias primas que aceleraram ainda mais o ritmo civilizatório. Primeiro foram os metais que se encontram em estado metálico natureza, como foi o caso do ouro e do cobre. Mais tarde os artesãos da época aprenderam a produzir bronze amalgamando cobre e estanho. Cada uma dessas conquistas serviu de estopim para uma nova revolução tecnológica, acompanhada por um salto na qualidade e, principalmente, na caminhada em busca do sucesso na luta pela sobrevivência.

Um outro lance decisivo na marcha do homem pelo controle sobre suas fontes de sobrevivência foi o uso do fogo. Importa pouco sabermos como o homem do paleolítico chegou a descobrir a utilidade prática desse elemento da natureza, como entrou em contato com ele e como descobriu as técnicas de o produzir artificialmente. É legítimo imaginar que o contato com o fogo aconteceu por ocasião de incêndios causados por raios ou erupções vulcânicas. Quando   e porque caminhos o homem chegou a produzir artificialmente o fogo permanece no terreno da especulação. De qualquer forma a descoberta dos meios e técnicas para produzir e controlar o fogo e canalizar suas potencialidades em favor da melhoria das condições de sobrevivência, significou um marco divisório sem precedentes, um transpor de “Rubicão”, um radical “antes e depois”, para o homem da pré-história. E pela dupla face de servir e ser útil quando sob controle e, ao mesmo tempo, representar uma fúria devastadora quando fora do controle, transformou-se num indicador de um patamar civilizatório mais avançado.  Avaliado pelo viés da utilidade injetou alento nas culturas que o adotaram em vários níveis que, combinados, foram determinantes na caminhada exitosa do homem pela história. Dois aspectos vitais para a sobrevivência foram especialmente favorecidos. Em primeiro lugar, todos os povos se beneficiaram ao terem acesso ao fogo. Os alimentos que até então eram consumidos “in natura”, de então em diante, cosidos, assados, defumados ou preparados de qualquer outra maneira com o auxílio do fogo, ganharam em sabor, gosto e conservação. Além disso o leque de possibilidades de alimentação foi ampliado e diversificado em muito. Basta lembrar que uma variedade enorme de frutos, raízes, tubérculos só são aproveitáveis como alimentos quando devidamente manipulados com o auxílio do fogo.

Em segundo lugar, para as regiões frias da terra, a descoberta e a manipulação do fogo  constituiu-se num fator de sobrevivência. Mais da metade das terras habitadas desde a pré-história localizam-se em latitudes com temperaturas que impedem a presença permanente do homem, a médio e longo prazo, sem um mínimo de proteção contra o frio. Acontece que exatamente essas regiões, pródigas em caça e pesca, sementes comestíveis como a bolota do carvalho, nozes, pinhões, cerejas, etc. etc., atraíram os caçadores, pescadores e coletores do Paleolítico. A proteção contra as intempéries, de modo especial as temperaturas baixas à noite e nos meses do outono, inverno e primavera, os obrigou a adotar toda uma tecnologia de confecção de vestimentas com peles de animais, instalar-se em abrigos naturais como cavernas ou recorrer a construção de abrigos, casa subterrâneas e outros com os materiais disponíveis. Tudo ficou mais fácil e, principalmente, mais eficiente no momento em que entrou em cena o fogo acompanhado de suas ilimitadas utilidades, tanto na preparação dos alimentos, quando no aquecimento das cavernas e abrigos artificiais.

O significado do fogo não se esgota na sua utilidade prática. Com sua “domesticação”, se é que se pode denominar assim a canalização dos potenciais do fogo em seu favor, os coletores daquela fase da história, dominaram um dos elementos mais úteis e, ao mesmo tempo, mais devastadores da natureza. O fogo sob controle é uma dádiva, um presente inestimável da natureza. Nada mais gratificante para o forasteiro do que refugiar-se do frio, da chuva e do vento, num abrigo aquecido por um fogão improvisado ou um singelo fogo de chão. Nada mais aconchegante e mais inspirador do que, numa noite de neve e geada, acomodar-se junto a um fogão de lenha ou uma lareira, curtir o calor amigo. Fogão, forno, lareira, integraram-se como elementos que o conceito de “lar”, “querência”, “home”, “Heim” e outros tantos moldados pelas milhares de culturas pelas quais se expressam as identidades étnicas. Pode-se afirmar que o fogo ao lado da água permeia a história das culturas e civilizações como um dos referenciais simbólicos mais presentes. Água benta, fontes que rejuvenescem, velas acesas, lamparinas, fogos simbólicos, tochas olímpicas, fogos de conselho, fogos de chão, o fogo sagrado vigiado pelas vestais em Roma, são apenas alguns exemplos mais conhecidos.

De outra parte o fogo fora de controle transforma-se num dos espetáculos mais assustadores e mais devastadores, experimentados pelo homem. Erupções vulcânicas, incêndios de florestas, casas em chama, os raios que assustam, lembram o homem da sua impotência e pequenez diante do poder da natureza.

E exatamente essa dupla face confere ao fogo significados que vão além da sua utilidade prática. A partir da sua descoberta e controle em períodos imemoriais até os dias de hoje, a sua presença é elemento obrigatório na composição das características étnicas. O fogo nas suas mais diversas manifestações, significados e simbolismos, perpassa todas as culturas e representa um componente sempre presente na síntese da identidade étnica.

[ Reflexões ]

Identidade e entorno geográfico

“Toda a cultura é síntese”, escreveu Alexandro Serrano Caldera. Por analogia, é lícito afirmar que toda “identidade é síntese” pois, os elementos que entram na composição da síntese cultural são os mesmos que definem o perfil da identidade étnica. Desta forma, cultura e identidade são os dois lados da mesma realidade. A cultura vem a ser o cenário sobre o qual, no qual e a partir do qual, se esboçam os traços que definem as identidades individuais e coletivas. Evidentemente essa afirmação implica num universo de desdobramentos que assumem características próprias e peculiares em cada caso particular. Uma observação superficial dificilmente perceberá afinidades ou parentescos mais significativos, por ex., entre a cultura dos patagônios da Argentina e os tiroleses da Áustria; entre os esquimós do Alasca e os pigmeus de Angola; entre os escoceses e os nativos da Austrália. Há, porém, evidências inegáveis que apontam para uma unidade radical da espécie humana. O homem é uma espécie zoológica que exibe todas as características de natureza biológica inerentes a esse conceito. Existiu e existe uma única espécie como prova tanto a paleontologia humana, quanto os critérios usuais de classificação zoológica das raças humanas historicamente conhecidas, quanto o mapeamento do genoma humano. Uma identidade a nível taxonômico e a nível biogenético une, portanto, todas as raças humanas. 

A constatação que se acaba de fazer leva a uma conclusão importante quando se pretende estabelecer a extensão e os limites na formação da identidade étnica e cultural. O homem como espécie biológica insere-se ontologicamente no mundo natural e isto de várias formas. Em primeiro lugar, o corpo humano é constituído pelos mesmos elementos químicos que entram na formação da natureza mineral em todos os seus níveis. Em segundo lugar os mesmos processos e as mesmas leis químico-fisiológicas básicas que mantém em funcionamento qualquer ser vivo, garantem as funções vitais do organismo humano. Em terceiro lugar, como qualquer outro ser vivo o homem vive numa relação existencial com o meio geográfico que o abriga. O conjunto das atividades fisiológicas necessárias à vida buscam em a natureza a reposição das matérias primas processadas pelas atividades vitais. Da mesma forma a sobrevivência da espécie humana depende das condições climáticas e das matérias primas e dos recursos naturais que lhe garantem abrigo e proteção contra as intempéries e as ameaças oriundas da parte de inimigos humanos e animais predadores. Essa realidade põe-nos frente ao primeiro dos grandes conjuntos de componentes que determinam a gênese de uma identidade étnica e cultural.

A relação primária com o meio  geográfico pelo fato de o homem emergir dele e nele sobreviver, como uma espécie taxonômica igual a qualquer outro mamífero, não pode ser considerado como ponto de partida da identidade étnica e cultural. Este ponto de partida deve ser procurado num outro momento e num outro nível. A identidade étnico-cultural primigênia começa a se esboçar no momento em que entrou em cena o primeiro ser humano em cujo cérebro faiscava a centelha da “inteligência reflexa”. Pouca diferença faz se o fato ocorreu há milhares ou milhões de anos, se foi na África, na Ásia ou em outro lugar qualquer do planeta terra. Pouco importa também, se aquele ser exibia uma fisionomia mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. As regras, as leis e as dinâmicas que até hoje regem a construção da identidade começaram a tomar forma, a partir do momento em que despontou  no cenário desta terra o homem que, com olhar curioso e inquiridor embrenhava-se nas florestas, cruzava estepes, adentrava os desertos, escalava montanhas, percorria as planícies e se banhava nos rios. Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi aprendendo a identificar e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em alimentos, em vestuário, abrigo e proteção. Sem demora  as observações  e as reflexões levaram esses humanos que, ainda hoje, rotulamos erroneamente de “primitivos”, a equipar as mãos com artefatos  e instrumentos que tornavam o acesso  e o manuseio dos alimentos mentos trabalhoso, mais rendosa  caça, mais segura a defesa contra os animais ferozes e mais eficiente a proteção contra as intempéries.

E assim, estavam postas as premissas para começar, lentamente, numa dinâmica auto     alimentada, num ritmo cada vez mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios e montanhas, entre o homem e as estepes, os desertos, os gelos polares, os trópicos e os climas temperados. Ao mesmo tempo em que foi aperfeiçoando e diversificando as tecnologias de fabricação de ferramentas para assegurar a sua sobrevivência física, cresceu o interesse pela compreensão dos fenômenos, das incógnitas e mistérios com que deparava no seu cotidiano. O nascer, o viver e morrer dos animais e dos homens, os ciclos da natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da lua, o germinar, o crescer, o florescer, o amadurecer dos frutos das plantas, tudo desafiava a curiosidade primigênia. E, na procura de respostas tomou forma todo um corpo de crenças, mitologias e simbologias que terminaram por formar uma cosmovisão peculiar para cada situação concreta.

Levado pelo instinto de sobrevivência, o homem foi buscar no seu entorno geográfico os alimentos de que necessitava. E, desde logo, o próprio ato de alimentar-se, vital para a sobrevivência, ultrapassaria o ato elementar instintivamente compulsório, para fazer-se revestir de procedimentos de natureza cultural, como hábitos, costumes, etiquetas, proibições ou tabus. O ato de alimentar-se foi assumindo entre todos os povos as características de um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte integrante das respectivas culturas, ou tratados como algo sagrado, dotado de poderes mágicos, milagrosos, ou então proibidos como maléficos, impuros ou simplesmente nocivos à saúde.

O convívio do homem com a natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como melhor consolidar uma parceria com ela, de como sobreviver nela, de como torná-la uma aliada sempre presente na construção das culturas e da história.

E, neste esforço, três tipos de desafios estimularam a criatividade do homem. Em primeiro lugar, encontrar na natureza os alimentos, abrigos e defesas para garantir a sobrevivência física. Em segundo lugar desenvolver tecnologias cada vez mais eficientes para facilitar a obtenção de alimentos, a confecção do vestuário e a instalação de abrigos. Em terceiro lugar, penetrar os mistérios da natureza, compreendê-los e, espelhando-se neles, compreender-se a si mesmo e desvendar as incógnitas da própria existência.

A relação imediata, íntima e diuturna com a natureza despertou no homem a clara percepção de fazer parte integrante dela. Além de dela depender para a vida e a morte, a sua vida desenrola-se na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, nesse conviver simbiótico, a humanidade foi construindo suas culturas, suas identidades, suas histórias, seus imaginários, suas simbologias, suas mitologias, suas crenças, seus rituais, seus sistemas éticos, enfim suas cosmovisões. Tudo que rodeava os homens, por assim dizer, animava-se, personalizava-se de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vinha revestido. As realidades e fenômenos naturais assumia vida e importância pelo que representavam no cotidiano e pelo que sugeriam ao imaginário. Aconteceu dessa maneira, um espelhar-se recíproco entre o homem e os fatos, fenômenos e realidades do entorno geográfico em que vivia e em meio a esse processo de interação, as culturas foram desenhando seus perfis, as identidades individuais e coletivas definindo suas características e a História traçando seu rumo

Dispensam-se Teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto da constatação com que concluímos a postagem anterior. Entre os povos agricultores, o sol e a lua, imprimindo com seus ciclos regulares a cadência da natureza, tornaram-se referência da própria dinâmica da história. Em torno do nascer do sol, da alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o homem foi elaborando e construindo todo um universo simbólico, todo um universo de costumes, de hábitos, de valores, de crenças, cultos e rituais. O sol definia os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comandava a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse perpétuo fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer, fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos, climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e culturas. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida; o verão o vigor e plenitude adulta; o outono a colheita dos frutos, o inverno o declínio e, finalmente, a morte para, em seguida germinar nova vida e recomeçar o interminável ir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e as fases da vida confundem-se simbolicamente numa única dinâmica. E neste sentido que se fala em primavera da vida ou a idade é contada em primaveras. Pela sua importância, o sol será cultuado como divindade e a lua como deusa. 

No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Apenas alguns exemplos mais. A água indispensável à vida figura como objeto de veneração e não poucas culturas. Água e vida chegam ser sinônimos. As fontes que brotam das entranhas da terra, vem revestidas de propriedades especiais, inclusive mágicas, para curar doenças, rejuvenescer ou regenerar. Por exemplo, banhar-se no primeiro dia do ano numa fonte promete vida longa e saudável. A água entra como elemento simbólico no batismo, na água benta e muitas outras ocasiões. 

Pelo mistério natural que costuma envolver montanhas, vulcões, lagos, mares, florestas, desertos, oceanos, etc., eles terminaram pro personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na foram de crenças, mitos, tabus e outros significados mais. Os deuses e deusas do universo mitológico grego no monte Olimpo, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam com o que acontecia no cotidiano dos mortais. Uma atitude olímpica tornou-se sinônimo de postura sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, acima do bem e do mal. O vulcão Fuji simboliza a própria história do povo japonês. Espíritos que não toleram a presença do homem povoam lagos como o de Lhanguihe no sul do Chile, fazendo com que as proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX.

Poderíamos continuar enumerando ao indefinido os vínculos e as relações das culturas e identidades como entorno físico-ambiental. Não é objetivo aqui pois, esta é apenas uma das condicionantes da identidade étnica e cultural. Outros elementos de importância decisiva não podem ser esquecidos.

Não há a mínima possibilidade de formar uma ideia, nem mesmo superficial, do perfil dos primeiros grupos humanos. As pegadas deixadas por eles apagaram-se a tal ponto, que até nós chegaram apenas alguns vestígios da sua fisionomia física e praticamente nada da sua identidade cultural. A curiosidade, portanto, para saber como eram esses humanos quanto aos seus traços físicos e, principalmente, quanto à sua identidade cultural, não ultrapassam o nível das hipóteses, das teorias e especulações, possíveis com os dados objetivos precários de que   dispomos. Uma coisa, porém, é certa. A matriz original de todas as culturas e identidades étnicas foi apenas, pelo que se pode deduzir, o ponto de partida de uma dinâmica que acelerou o ritmo e multiplicou as formas, na medida em que a história avançava.  O modelo gráfico do globo terrestre utilizado por Teilhard de Chardin para visualizar a evolução da espécie humana, torna mais fácil a compreensão da gênese e multiplicação das formas étnico-culturais. Os meridianos simbolizando as diversas formas culturais partem do mesmo ponto no “polo Sul”. Abrem-se, multiplicam-se e diversificam-se na medida em que se aproximam do equador.  Do equador em direção ao “polo Norte” seguem uma dinâmica inversa. Aproximam-se, fundem-se e tendem a terminar num ponto só no “polo”. Do “alfa”, do ponto de partida tanto geográfico como filético, em algum lugar da África, segundo Teilhard, a humanidade começou a sua trajetória de expansão e ocupação da terra.

Os dados paleoantropológicos e culturais de que dispomos de momento não são suficientes ao ponto de permitir uma reconstituição, passo a passo, da expansão da espécie humana, desde o seu foco de irradiação original. Os indícios apontam para uma ocupação, em ondas sucessivas, de toda a África com uma concentração maior na orla do Mediterrâneo. Seguiu o povoamento, também na forma de vagas sucessivas do oeste para o leste, tomando de assalto toda a Euro-Ásia. Teilhard de Chardin observou três “pulsações” sucessivas, tendo como ponto de partida na pré-história, passando pela proto-história para, finalmente, entrar nos tempos históricos propriamente ditos. A primeira dessas pulsações ou ondas alastrou-se do Sul para o norte pela costa do Pacífico até os contrafortes da Mongólia. Pouca coisa se sabe sobre o nível cultural dessa humanidade primitiva. Sabe-se, entretanto, que o extremo norte desse avanço, em Chukutien, o Sinântropo com domínio sobre o fogo e técnicas de lascamento de pedras, encontrava-se relativamente bem organizado em grupos sociais e, por isso mesmo, dotado de uma considerável força de penetração em novos territórios. A segunda pulsação partiu do norte dos Alpes e não parou de avançar para o leste, até encontrar a costa do Pacífico. Seus vestígios bem caracterizados encontram-se mais visíveis no vale fértil do rio Amarelo na China. Essas vagas humanas tem como protagonistas o homem de Aurignac do Paleolítico Superior. Além do fogo e das técnicas rudimentares de lascamento de pedra, já eram cultores da arte. Sobrepõe-se numa sequência brusca aos depósitos do paleolítico antigo e médio e povoou os espaços que as populações anteriores, pouco numerosas, ainda não tinham ocupado.

A terceira onda começou na entrada do neolítico, com a predominância absoluta do “Homo sapiens” e a saída de cena definitiva de todas as outras raças humanas mais arcaicas. Sempre conforme Teilhard de Chardin, duas grandes áreas geográficas serviram de cenário para o novo estágio civilizatório que teve seu começo com a agricultura e a domesticação de animais. Estas duas formas de subsistência, superando de vez a necessidade constante de os coletores e caçadores se deslocarem, sem parar, por vastos territórios, fazendo com que os agrupamentos humanos não passassem do nível de bandos e hordas nômades. A nova situação trouxe consigo o sedentarismo, pelo menos relativo. Em seu lugar multiplicaram-se coletividades mais numerosas e mais bem organizadas.  O fenômeno evoluiu em duas grandes áreas geográficas.  A primeira, na África do norte mediterrânea e a outra na Euro-Ásia central e norte, desde a Europa Central até a Ásia Central e do Norte.

A essa altura a humanidade encontrava-se no limiar da Pré-História para a História, por volta de 15000 a 20000 anos passados. Demorei-me propositadamente um pouco mais na caracterização da fase que costumamos chamar de Pré-História, para mostrar como a identidade étnica e cultural é uma realidade em permanente construção e em constante evolução, motivada pelas diversas contingências em que a humanidade como um todo e seus grupos individualmente considerados, são obrigados a passar. E para entender melhor essa dinâmica destacamos alguns fatores mais determinantes que atuam na história.

O mais importante foi, sem dúvida, o fato de o homem distinguir-se e distanciar-se de todas as outras espécies de animais, também dos antropoides, pela “Inteligência Reflexa”. Sob o aspecto físico, anatômico, fisiológico, biogenético e instintivo, o homem tem suas raízes fincadas ontologicamente na Biosfera. Mas distancia-se dela e a ultrapassa de vez pela Inteligência Reflexa, ou pela capacidade de Reflexão. Esta eleva a espécie humana a uma esfera inteiramente nova: a Noosfera como a chamou Teilhard. O potencial dessa novidade é de tal ordem que sobre a Litosfera, a Biosfera e a Hidrosfera, envoltas na atmosfera, alastra-se pela terra, em progressão geométrica, a urdidura da trama da Noosfera. Se a espécie humana tivesse sido apenas mais uma espécie de antropoide, de há muito as leis implacáveis da evolução a teriam varrido do cenário da vida, ou então, reduzida a uma espécie condenada a sobreviver sem grandes perspectivas. Suas mãos não especializadas servem para tudo e, por isso mesmo, não servem para nada de específico. Seus dentes caninos servem para pouca coisa mais do que completar a arcada dentária. Seus sentidos pouco apurados não garantem os alertas e alarmes indispensáveis num entorno no qual, atrás de cada árvore, cada rocha, cada arbusto ou na correnteza dos rios e fundo dos lagos, espreitam ameaças de toda a ordem.