A inteligência reflexa, porém, não só compensa a precariedade da especialização anatômico-fisiológica, como a transforma em trunfo para o sucesso na competição por espaços e na batalha pela sobrevivência. As mãos representam o que há de mais emblemático na falta de especialização anatômica. A rigor não passam de um equipamento que serve para tudo e, por isso mesmo, não serve para executar nenhuma tarefa especializada. Neste nível perde em competitividade para as garras de felino, as patas de um cavalo, as unhas de um tamanduá. Executam tarefas de qualquer um desses e outros animais, mas de forma precária e pouco eficiente. Paradoxalmente, entretanto, a falta de especialidade da mão, transforma-a na ferramenta ideal a serviço da inteligência reflexa. Sua versatilidade não conhece limites quando a seu serviço, exatamente por ser anatomicamente inespecífica. Treinada é capaz de executar os movimentos mais complicados e mais insólitos. Que extremidade de animal é capaz de dar conta da multiplicidade, da variedade e da habilidade dos movimentos que o violinista exige dos seus dedos e mãos ao executar uma peça de música. As papilas das pontas dos dedos denunciam irregularidades mesmo invisíveis a olho nu, numa superfície de papel, metal, madeira ou vidro. Acontece que o homem utilizando sua inteligência reflexa transformou, o que em muitos casos seria um estorvo, no trunfo maior da sua superioridade na batalha pela sobrevivência.
E, ao perceber as limitações da mão, não tardou que nossos mais antigos ancestrais concluíssem pela possibilidade de equipá-la com complementos artificiais para compensar sua precária eficiência quando desarmada. Começou, a partir daí, a caminhada vitoriosa do homem através dos milênios, desenvolvendo tecnologias cada vez mais eficientes. Encontrou no próprio entorno geográfico as matérias primas utilizadas para confeccionar os primeiros artefatos. É legítimo supor, sem grandes riscos de errar, que o homem de então se serviu de madeira, osso, chifre. Sendo materiais sujeitos a uma rápida destruição pelo calor, a umidade e ação mecânica da areia e a movimentação do solo, suas marcas apagaram-se sem deixar vestígios. Os artefatos mais antigos evidentemente manipulados por mãos humanas, são os instrumentos líticos. Resistem quase indefinidamente à ação das intempéries, ainda mais quando forem de sílex, vidro vulcânico e similares. Com eles é possível reconstituir a evolução, o aperfeiçoamento e a diversificação dos instrumentos. O artefato que poderíamos chamar de protótipo vem a ser o “machado de punho”. Para os nossos padrões é tosco na sua confecção e rudimentar e precário na sua eficiência. Examinado bem, entretanto, as múltiplas utilidades a que se destinava, foi o protótipo a partir do qual se derivou, nos milênios posteriores, a indústria de ferramentas, instrumentos, utensílios, implementos, destinados a compensar e superar a ineficiência anatômica e a falta de especialização da mão. Com o “machado de punho” foi possível enfrentar as tarefas mais elementares para melhorar as perspectivas de sobrevivência. Servia como instrumento para escavar, cortar, golpear, arremessar. Com ele trabalhava-se a matéria prima para a construção e instalação de abrigos, caçavam-se animais, escavavam-se raízes e tubérculos. Tornava mais fácil e eficiente a defesa contra animais selvagens e inimigos humanos e facilitava a confecção de vestimentas, enfim, permitiu ao homem da pré-história começar a longa e penosa jornada do controle e domínio do entorno geográfico. A partir dos machados de punho abriu-se o leque sem limites de possibilidades para a especialização de instrumentos e aperfeiçoamentos tecnológicos de lascamento por todo o Paleolítico e parte do Neolítico. Os artefatos e instrumentos diversificaram-se e especializaram-se em ritmo geométrico e as técnicas de lascamento atingiram níveis extremos de acabamento e refinamento. Com a entrada do Neolítico o polimento levou as técnicas da indústria lítica a esgotar suas potencialidades. Os instrumentos de madeira, osso e chifre dão conta de uma dinâmica paralela e semelhante a da utilização da pedra como matéria prima. E na medida em que a criatividade do homem foi aperfeiçoando as técnicas e melhorando a eficiência dos instrumentos de madeira, osso, chifre e pedra, descobriu outras matérias primas que aceleraram ainda mais o ritmo civilizatório. Primeiro foram os metais que se encontram em estado metálico natureza, como foi o caso do ouro e do cobre. Mais tarde os artesãos da época aprenderam a produzir bronze amalgamando cobre e estanho. Cada uma dessas conquistas serviu de estopim para uma nova revolução tecnológica, acompanhada por um salto na qualidade e, principalmente, na caminhada em busca do sucesso na luta pela sobrevivência.
Um outro lance decisivo na marcha do homem pelo controle sobre suas fontes de sobrevivência foi o uso do fogo. Importa pouco sabermos como o homem do paleolítico chegou a descobrir a utilidade prática desse elemento da natureza, como entrou em contato com ele e como descobriu as técnicas de o produzir artificialmente. É legítimo imaginar que o contato com o fogo aconteceu por ocasião de incêndios causados por raios ou erupções vulcânicas. Quando e porque caminhos o homem chegou a produzir artificialmente o fogo permanece no terreno da especulação. De qualquer forma a descoberta dos meios e técnicas para produzir e controlar o fogo e canalizar suas potencialidades em favor da melhoria das condições de sobrevivência, significou um marco divisório sem precedentes, um transpor de “Rubicão”, um radical “antes e depois”, para o homem da pré-história. E pela dupla face de servir e ser útil quando sob controle e, ao mesmo tempo, representar uma fúria devastadora quando fora do controle, transformou-se num indicador de um patamar civilizatório mais avançado. Avaliado pelo viés da utilidade injetou alento nas culturas que o adotaram em vários níveis que, combinados, foram determinantes na caminhada exitosa do homem pela história. Dois aspectos vitais para a sobrevivência foram especialmente favorecidos. Em primeiro lugar, todos os povos se beneficiaram ao terem acesso ao fogo. Os alimentos que até então eram consumidos “in natura”, de então em diante, cosidos, assados, defumados ou preparados de qualquer outra maneira com o auxílio do fogo, ganharam em sabor, gosto e conservação. Além disso o leque de possibilidades de alimentação foi ampliado e diversificado em muito. Basta lembrar que uma variedade enorme de frutos, raízes, tubérculos só são aproveitáveis como alimentos quando devidamente manipulados com o auxílio do fogo.
Em segundo lugar, para as regiões frias da terra, a descoberta e a manipulação do fogo constituiu-se num fator de sobrevivência. Mais da metade das terras habitadas desde a pré-história localizam-se em latitudes com temperaturas que impedem a presença permanente do homem, a médio e longo prazo, sem um mínimo de proteção contra o frio. Acontece que exatamente essas regiões, pródigas em caça e pesca, sementes comestíveis como a bolota do carvalho, nozes, pinhões, cerejas, etc. etc., atraíram os caçadores, pescadores e coletores do Paleolítico. A proteção contra as intempéries, de modo especial as temperaturas baixas à noite e nos meses do outono, inverno e primavera, os obrigou a adotar toda uma tecnologia de confecção de vestimentas com peles de animais, instalar-se em abrigos naturais como cavernas ou recorrer a construção de abrigos, casa subterrâneas e outros com os materiais disponíveis. Tudo ficou mais fácil e, principalmente, mais eficiente no momento em que entrou em cena o fogo acompanhado de suas ilimitadas utilidades, tanto na preparação dos alimentos, quando no aquecimento das cavernas e abrigos artificiais.
O significado do fogo não se esgota na sua utilidade prática. Com sua “domesticação”, se é que se pode denominar assim a canalização dos potenciais do fogo em seu favor, os coletores daquela fase da história, dominaram um dos elementos mais úteis e, ao mesmo tempo, mais devastadores da natureza. O fogo sob controle é uma dádiva, um presente inestimável da natureza. Nada mais gratificante para o forasteiro do que refugiar-se do frio, da chuva e do vento, num abrigo aquecido por um fogão improvisado ou um singelo fogo de chão. Nada mais aconchegante e mais inspirador do que, numa noite de neve e geada, acomodar-se junto a um fogão de lenha ou uma lareira, curtir o calor amigo. Fogão, forno, lareira, integraram-se como elementos que o conceito de “lar”, “querência”, “home”, “Heim” e outros tantos moldados pelas milhares de culturas pelas quais se expressam as identidades étnicas. Pode-se afirmar que o fogo ao lado da água permeia a história das culturas e civilizações como um dos referenciais simbólicos mais presentes. Água benta, fontes que rejuvenescem, velas acesas, lamparinas, fogos simbólicos, tochas olímpicas, fogos de conselho, fogos de chão, o fogo sagrado vigiado pelas vestais em Roma, são apenas alguns exemplos mais conhecidos.
De outra parte o fogo fora de controle transforma-se num dos espetáculos mais assustadores e mais devastadores, experimentados pelo homem. Erupções vulcânicas, incêndios de florestas, casas em chama, os raios que assustam, lembram o homem da sua impotência e pequenez diante do poder da natureza.
E exatamente essa dupla face confere ao fogo significados que vão além da sua utilidade prática. A partir da sua descoberta e controle em períodos imemoriais até os dias de hoje, a sua presença é elemento obrigatório na composição das características étnicas. O fogo nas suas mais diversas manifestações, significados e simbolismos, perpassa todas as culturas e representa um componente sempre presente na síntese da identidade étnica.