[ Reflexões ]

A questão teórico-metodológica

Para quem pretende enveredar pela produção do conhecimento dispõe, em última análise de duas vias básicas de aproximação do objeto em causa. Francis Bacon os definiu como sendo o método “sintético-dedutivo” e o “analítico-indutivo”. O primeiro, o sintético-dedutivo, parte do todo, do grande conjunto para, dessa perspectiva analisar e interpretar as partes. O método analítico-indutivo faz a aproximação pelo lado oposto, pela identificação das partes para chegar ao todo. Teilhard de Chardin classificou-o como “esse maravilhoso instrumento de investigação, ao qual devemos todos os nossos progressos ...” Chamou, porém, a atenção para as limitações e os riscos quando se exagera na aplicação, e principalmente, nas conclusões que se tiram dos resultados e completou a frase interrompida logo acima: “mas, que de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e fragmentos que se esvaem”. Cabe então a pergunta. Investigando a natureza a partir de cada um dos métodos, qual dos dois merece ser privilegiado, qual dos dois oferece potencial mais rico para o investigador? A resposta é complexa pela sua própria natureza. Depende de uma série de fatores que dizem respeito ao objeto e os objetivos perseguidos pelo investigador. Um filósofo ou um teólogo não hesitam em se decidir pela síntese e pela dedução como método reitor dos seu trabalho. Para Tales, por exemplo, a água representou o princípio universal no qual as demais realidades encontram a devida explicação. Alexandro S. Caldera condensou num diálogo imaginário entre Tales e Anaximandro, o pensamento do filósofo grego. “Não te esqueças desta lição, Anaximandro: o que verdadeiramente importa é a aptidão para captar o abstrato; a possibilidade de um pensamento sem imagem, como o reconheceu Nietzsche em começos do século XX, várias décadas antes de se instalar no mundo o reino da imagem sem pensamento. O importante é a unidade do múltiplo. ( Caldera; 204, pg. 18)

Num outro diálogo, agora entre Parmênides e seu discípulo Zenon, faz o primeiro afirmar. “(...) pois, eu sustento que o ser é uno, imóvel e indivisível, que o múltiplo é uma ilusão e, portanto, não existe”. E um pouco mais adiante continua no mesmo diálogo. “Toda a aparência é falsa, Zenon, o mundo sensível é o não ser. O único real é o pensamento. O pensamento é o ser”. (Caldera, 2004, pg. 31.) A essa afirmação categórica de Parmênides, Zenon recomendou cautela ao mestre. Num salto de visionário de três mil anos para o futuro, lembrou que então “se dirá que o único verdadeiro é a aparência; e a única realidade é a imagem que se projeta na pequena tela de um estranho aparelho que denominarão televisor”. - A essa observação Parmênides contrapôs a sua opinião. “Nada deverá mudar, pois se o ser é uno, não pode ser outro; se é imóvel, não pode transformar-se. Além do mais, é único e unitário e a unidade é eterna”. – Zenon não se deu por satisfeito e fez o mestre preocupar-se com o futuro. – “Não obstante, Parmênides, alguém chegado desse futuro distante e remoto disse-me que não somente o ser não existe, como que ninguém se importa se o ser existe ou não. Não há realidade real nem essencial, o único que existe é a realidade virtual das redes de computadores; e afirma, além disso, que a imagem que criam os televisores é mais certa e verdadeira que os seres de alma, carne e osso”. – Parmênides repreendeu o discípulo pela afirmação afoita. – “Fazes muito mal, Zenon, em prestar atenção a esses disparates, pois segundo o que tu dizes deveríamos concluir de que o que não tem imagem, não existe, e que o mundo permanece num limbo quando esses artefatos se apagam ou desconectam, para voltar a renascer quando são conectados outra vez”. – Zenon nada disse apenas concordou e Parmênides continuou a reflexão. – “Além disso, pelo que ouço, pois não posso dizer pelo que vejo, a televisão e o computador conduzem à abolição do pensamento e, portanto, do ser”. – Zenon encerrou o diálogo com uma referência a Descartes. – “Alguém tão radical como Descartes, que existirá dentro de dois mil anos, e a quem se atribui ser o fundador da modernidade, ficou, com toda a sua modernidade, convertido numa peça de museu. Seu penso, logo existo, melhor penso logo sou, tem sido substituído pelo vejo logo existo, ou também, pelo só existe que se vê”. ( cf. Caldera. 2004, pg. 31-32). 

Esse diálogo entre Parmênides e Zenon  que viveram há 3000 anos, fornece elementos valiosos para a reflexão que estamos desenvolvendo sobre a construção do conhecimento. Fica claro em primeiro lugar, que a filosofia ocidental que tem os filósofos gregos como base principal, vale-se do método dedutivo, partindo do geral para o particular, do todo para as partes, da síntese para a análise. Como não é do nosso interesse fazer história da filosofia, mas chamar a atenção à questão do método, conclui-se que a filosofia ocidental seguiu o método dedutivo até os tempos modernos. Dessa fonte alimentaram-se os grandes expoentes do pensamento filosófico até os dias atuais. Em segundo lugar fica evidente que o método sintético-dedutivo enfrenta problemas sérios no momento em que se trata de começar um diálogo construtivo com as Ciências Naturais, que parte do lado metodológico oposto, o analítico-indutivo. Obtiveram os dados com que lidam e os resultados com que argumentam, via análise e indução, da pluralidade para a unidade, a compreensão do todo analisando as partes.

Os dois métodos de que acabamos de falar, o sintético dedutivo e o analítico indutivo, polarizam em última análise, as duas vias básicas que levam à construção do conhecimento. O método sintético-dedutivo preocupa-se, antes de mais nada, com a unidade do saber. O que importa é descobrir o elo, o vínculo, a razão de ser das realidades com as quais o investigador se ocupa. Como sugere o próprio sentido etimológico latino “in vestigium ire”, isto é, perseguir a compreensão de algum objeto, como que percorrendo as trilhas da sua história, em busca da sua natureza ontológica.

[ Reflexões ]

Terminada a segunda Grande Guerra entrou sorrateiramente em cena uma revolução que abalou pela base a modernidade. Anunciava-se quase imperceptivelmente no começo, depois com evidência crescente, para no final do século XX impor-se como um fenômeno avassalador que veio para ficar: a Pós-Modernidade. Subverteu pela base tudo que a modernidade tinha construído, quando, no dizer de Alexandro Serrano Caldera “desvalorizou o futuro, fez cair as utopias, cancelou as certezas e implantou o reino do ceticismo moral. (Caldera., p. 91) Em outra passagem conclui que “A Pós-modernidade não é apenas a deslegitimação e desconstrução dos modelos e paradigmas que deixariam, entre outras coisas, a ideologia arquivada nos museus do tempo irremediavelmente passado, sendo que a construção de novos modelos dar-se-ia a partir de uma realidade globalizante. (Caldera, p. 91-92) Ou ainda “O protótipo do homem   dominante da atualidade é um bárbaro digital”. (Caldera, p. 91). 

O autor das “Meditações Máximas e Mínimas” deixou outras dezenas de caracterizações da Pós-Modernidade. Todas elas convergem para um ponto comum. A eliminação de referências estáveis, a fragmentação e a compartimentação em todos os campos, inclusive na produção do conhecimento. Em meio a esse quadro, o passado perde a importância como fonte de referências e o futuro deixa de fazer sentido como um universo que importa construir. O que conta é o presente. “A modernidade está em crise porque está em crise a ideia do futuro. O homem contemporâneo vive em função do aqui e agora”. (Caldera, p. 91)

Somando os efeitos negativos do ensino e pesquisa tutelados e burocratizados, à tendência centrífuga própria da Pós-Modernidade, temos o caldo ideal para o cultivo dos obstáculos que barram o caminho de quem se aventura pelo caminho da produção do conhecimento. 

A tendência centrífuga à qual nos acabamos de referir pode ser sentida fazendo uma comparação com a dinâmica da Evolução em Teilhard de Chardin. Ele valeu-se do globo terrestre como recurso didático para tornar palpável a evolução global. O mesmo recurso, ressalvadas as peculiaridades, parece útil para explicar o que vínhamos teorizando. Para Teilhard a evolução do universo teve o seu começo num ponto único de partida, o “polo Sul”, o “Alfa”. Pelos mecanismos combinados da “agregação”, da “incorporação” e da “complexificação”, o todo expande-se e diversifica-se. À maneira dos meridianos terrestres o leque segue em direção ao equador abrindo-se e diversificando-se cada vez mais. Num corte transversal à altura do equador, observado da perspectiva do polo norte, dezenas, centenas e milhares de linhas ou meridianos, sugerem uma situação de isolamento ou separação entre elas. Parece que não existe relação de interdependência. A miopia do homem pós-moderno faz com que perceba apenas os terminais dos meridianos, gerando a ilusão de que a dispersão continuará a se acentuar cada vez mais. O polo sul donde partem os meridianos parece nada ter em comum com os meridianos isolados, observados a partir dos trópicos ou do equador. Na comparação os meridianos correspondem aos muitos campos possíveis do conhecimento. As gerações de estudantes e não poucos dos seus professores já não percebem que as áreas em que pretendem especializar-se e atuar futuramente, à maneira dos meridianos, têm um ponto de partida comum, o polo sul, o “Alfa”. A razão última de ser de tudo deve ser procurada lá no começo. Lá estão concentradas as energias que explicam a diversificação, e ao mesmo tempo, garantem que no avanço pelo tempo, apesar de as aparências simularem o contrário, a grande unidade persiste.

Continuando a comparação da produção do conhecimento com a trajetória dos meridianos, a situação gerada pela pós-modernidade, termina levando a sérios equívocos. É muito comum a falsa impressão de que na altura do equador os meridianos separam-se de vez, assim como os conhecimentos parciais por eles significados. Sendo assim a tendência que se observa é de ignorar o ponto de partida comum no qual e pelo qual a enorme multiplicidade encontra a razão de ser. Estamos assim frente a um risco de proporções catastróficas de perder de vista a dimensão histórica dos fatos e acontecimentos. Pior. Não se vai apenas a historicidade como a própria História do universo, da natureza e do homem.  A noção do passado, a noção de História como referência esclarecedora importante dos fatos, já não acrescenta nada ao conhecimento do homem pós-moderno.  O que importa é procurar lidar com a pluralidade e movimentar-se numa floresta na qual só interessam as árvores e não se percebe que fazem parte de um ecossistema. A ausência da noção histórica leva à desvalorização do passado e o ceticismo em relação ao futuro. Porque preocupar-se com um passado que pouco ou nada de útil oferece e com um futuro sem fascínio. “Para ele (o homem pós-moderno) o Paraíso não está num passado remoto nem num mais além dessa vida: só se existe nessa vida e nesse mundo; nele o ser humano, dono da razão e de si mesmo, é capaz de construí-lo”, ou “o homem contemporâneo vive  em função do presente, do aqui e agora”. Ou ainda “Vivemos o tempo da irrupção do presente”. (Caldera, p. 91).

Há sinais, ainda que muito tímidos é verdade, de que a pós-modernidade começa a esgotar   seus potenciais de dispersão e fragmentação. A abolição das referências em todos os setores da vida, a perda da perspectiva do todo e da razão de ser que explica a dinâmica das coisas, começou a produzir seus efeitos. Multiplicam-se as manifestações em favor do retorno a uma visão unificadora e integradora. Não se trata de um movimento saudosista e/ou romântico, interessado numa volta pura e simples ao passado. Não se postula a restauração do paraíso perdido, o retorno ao mundo mitológico dos antigos, ou à crença de que o presente nada mais é do que um momento de passagem, ou que a dinâmica do universo obedece à mecânica semelhante à de um relógio. Já há sinais evidentes de que a complexidade da pluralidade que nos cerca, encontra a explicação, mais ainda a própria razão de ser, num todo, numa totalidade, que explica sua existência e responde pela sua dinâmica. Retornando à metáfora do globo terrestre de Teilhard, na base de tudo há um “polo Sul”, um “Alfa”, do qual se originam e partem as realidades naturais que se diversificam e expandem, para novamente convergir em busca do “polo Norte”, o “Ômega”. 

Os argumentos em favor de uma compreensão integradora e globalizante, partem com frequência crescente de manifestações de cientistas de renome. Representantes emblemáticos são Francis Collins, diretor do projeto Genoma, Edward Wilson, um dos maiores especialistas em insetos e ecossistemas, professor por mais de quatro décadas na universidade de Harvard, e o próprio Einstein ao afirmar em sua carta à filha que o “Amor” é a essência do universo, ou então a sua afirmação: “Quero conhecer a mente de Deus, o resto é detalhe”. No último parágrafo das conclusões de sua obra mais conhecida, “Uma breve História do Tempo”, o físico Stephen Hawkings aponta na mesma direção. Obviamente enumeram-se entre esses depoimentos os de cientistas renomados oriundos do contexto religioso como, Erich Wassmann, Teilhard de Chardin, Johannes Rick, Ferdinand Theissen, Girolamo Bresadolla, Balduino Rambo, Luiz Sehnem e muitos outros. Apontam para o fato de que está em curso um movimento de retorno a uma compreensão unitária do universo. Significa também que a visão da dispersão e fragmentação, deve estar chegando ao limite. Voltando ao globo terrestre de Teilhard, estamos estacionados na altura do equador. Começou o movimento de reaproximação dos fragmentos, a retomada da reaproximação e reintegração. Os meridianos começaram a inflexão em direção ao polo norte, ao “Ômega”. Num futuro talvez ainda distante acontecerá o reencontro. A pluralidade será subsumida pela unidade. Não é aqui o lugar nem o momento para divagar sobre questões de prazos e o tempo necessário para a conclusão, do fecho dessa dinâmica. Mas com certeza não se trata de uma utopia tentando alcançar a linha do horizonte linha de horizonte que se distancia na medida em que tenta alcançá-la, mas um polo real, um “ômega” real a ser encontrado.

O desafio situa-se em outra esfera. É preciso empenhar-se para reaproximar a Pluralidade dispersa na Unidade que lhe dá sentido, a partir de base teórico-metodológica adequada. Em outras palavras. Qual o caminho que permite recolocar no seu devido lugar e importância da relação da Pluralidade com a Unidade, as partes com o Todo e o Todo com as partes.  

Partindo dessa preocupação a lógica leva a concluir que as partes são inter-relacionadas, interagem entre si, inter-determinam-se e inter-legitimam-se. O desafio que se coloca consiste   em identificar as partes, descobrir as relações mútuas, estabelecer o nível de importância de cada uma em relação ao todo. Falar em conhecimento só depois de alguém se ter apropriado da compreensão do “Plural no Uno e do Uno no Plural”. 

O caminho a percorrer oferece suas dificuldades. Costuma ser longo e trabalhoso. E como já sinalizamos mais acima, pressupõe algumas premissas. Com uma delas já nos ocupamos. O pretendente a produtor de conhecimento tem que estar munido de uma formação multidisciplinar e interdisciplinar ampla e consistente. E o que se entende por esse tipo de formação? Antes de mais nada inclui as ferramentas mínimas que permitem o acesso aos conteúdos, dados e informações, que representam a matéria prima com que se pretende trabalhar. Entre elas merecem destaque: domínio das línguas, pelo menos ao nível da leitura, nas quais está preservado o patrimônio do conhecimento; conhecimentos teórico-metodológicos  para conferir credibilidade e solidez a todos os passos, e de modo especial, à síntese final com que culmina o verdadeiro conhecimento e em se tratando de investigações no campo das ciências naturais, o perfeito domínio do manuseio dos aparelhos e tecnologias usadas nos respectivos laboratórios de pesquisa; estar de posse dos conhecimentos gerais mínimos que permitem a compreensão de que o universal, o todo, não se resume na simples soma aritmética das partes.

O Rebento do Carvalho

Contos dialetais do Pe. Balduino Rambo


A linguagem humana é, sem dúvida, muito mais do que um veículo técnico de comunicação. Elas desabrochou do sangue e da natureza de um povo. Por isso,, reluzem sobre suas folhas as reminiscências do orvalho dos tempos primigênios e do seu cálice emana até hoje o perfume do mistério da alma humana. A língua materna é uma flor milagrosa plantada por Deus à beira da estrada de todos os povos para que nela se alegrem. Aquele que a pisoteia e, sob qualquer pretexto a rouba, danifica sua alma e se intromete criminosamente no santuário da alma do homem. (Pe. B. Rambo)


Entre os anos de 1937  e 1961 foram publicados 21 contos no dialeto Hunsrück no almanaque “Die Fahne des Hl. Ignatius. Seu autor foi o Pe. Balduino Rambo, mais conhecido como professor do Colégio Anchieta, como professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e botânico de renome internacional. Quatro desses contos datam respectivamente de 1937, 1939, 1940, 1941. A proibição das publicações em língua estrangeira, pela Campanha de Nacionalização e a Segunda Guerra Mundial, interrompeu a série até 1947. O último conto foi publicado postumamente pois, o Pe. Rambo faleceu em setembro de 1961.

Do primeiro ao último os contos foram orientados pelos mesmos objetivos, os mesmos interesses e as mesmas preocupações. Na década de 1930 o teuto-brasileirismo lançara seu estágio mais característico. Em outras palavras, apresentava-se na sua maior pureza. Os descendentes dos imigrantes alemães tinham assumido de um lado conscientemente a condição de cidadãos brasileiros e do outro não abriam mão da tradição cultural da procedência germânica. E, neste contexto, a língua assumiu um significado prático e simbólico fundamental. E para esses descendentes de imigrantes de primeira, segunda, terceira e quarta geração entrava em questão, em primeiro lugar não o alemão erudito ou clássico, mas o dialeto falado  na comunicação do dia a dia em família e nas comunidades. Pois, foi nesses dialetos que se consolidaram e transmitiram de geração em geração, as singularidades da tradição de cada um dos  grupos dos grupos de imigrantes procedentes das regiões mais diversas da Europa Central onde predominou a “Ordem Alemã”. Chamar a atenção  para esses falares, esses dialetos, mostrar a sua importância e sua riqueza, foi a preocupação  do autor dos contos, que ora oferecemos ao público, em edição bilíngue, no dialeto original e na versão em português.

Entretanto, os contos nos eu conjunto, têm um segundo objetivo não menos importante, isto é, descrever o mundo rural, seus personagens, a vida em família, a comunidade, a religiosidade, etc., no dialeto de que utilizavam os atores do quotidiano desse universo. O autor escolheu esse caminho para chamar a atenção sobre este mundo, sobre sua identidade e torna-lo consciente da sua importância e do seu valor. Ao ler os contos o colono identificava-se com os personagens e sua maneira de ser e ia descobrindo que o mundo rural cultivava uma maneira de ser que induz as condições perto do ideal para prosperar uma vida  individual e coletiva de notável qualidade, tanto no terreno material quanto espiritual. Assim, os contos serviram como um poderoso estímulo para fortalecer  a auto estima do leitor. Ele se descobre como o protagonista de um mundo humano e cultural que, no nível de qualidade,   nada fica devendo ao urbano, que costumava olhá-lo de cima para baixo, estigmatizando-o como inculto, ignorante, bruto, grosseiro. O mundo em que vive o colono oferece-lhe todas as condições para a realização pessoal e felicidade coletiva. Confere-lhe maior autenticidade mediante a simplicidade ingênua e telúrica, nascida do contanto permanente com a natureza, em contraposição o artificialismo e à sofisticação urbana. O mundo rural é autêntico, aproximando o colono do “bom selvagem”. E puro, até certo ponto ingênuo, romântico, enfim,  humano “Menschlich”. Apesar de carecer das facilidades e das comodidades urbanas, é nele que o autêntico humano do homem encontra o chão propício para germinar, desabrochar e manifestar-se  na sua espontaneidade, na sua exuberância primigênia. E, para que a reprodução do mundo rural teuto se aproximasse o mais possível dessa realidade o Pe. Rambo valeu-se do dialeto invocando a justificativa registrado no seu diário em 29 de junho de 1949.

Como sempre prende-me o teor épico da minha língua materna. É apenas nos dialetos que ainda vive toda força criadora da épica. Deles brota a língua artística, que se cobre mais e mais de torpor, quanto mais, ao crescer para o alto, ela se insere no mundo do intelecto e da razão. Quem não ama seu dialeto não aprendeu o espírito da língua.

Apesar da sua condição de padre jesuíta, professor universitário, escritor de renome e cientista internacionalmente reconhecido, o Pe. Rambo não esqueceu a sua origem colonial, muito menos a escondeu ou renegou. Pelo contrário. Costumava procurar em meio aos colonos o ambiente propício contrário e o convívio ideal para relaxar e revigorar as energias espirituais. As pessoas simples dos seus camponeses, em muitos casos, rudes, curtidos no dia-a-dia, no sol-a-sol, no tempo bom e no tempo ruim, nas alegrias e nas. Tristezas, estimulavam-no a retornar às raízes e apegar-se a elas cada vez mais. No convívio informal com os colonos e colonas encontrava os personagens com sua maneira de ser e falar e os episódios que inspiraram os contos. Nenhum desses. Personagens foi uma criação pura e simples do autor. Todos esses episódios aconteceram de alguma forma encontraram no quotidiano colônia os seus protagonistas. Por isso, mesmo os leitores viam-se retratados a si próprios, ou a conhecidos, ou vizinhos nos episódios narrados no saboroso e vigoroso linguajar, que lhes fazia vibrar as cordas mais sensíveis e mais profundas da alma. Para o colono que lia os contos, os personagens tinham nome, assumiam uma identidade, moravam num lugar determinado e ocupavam um espaço definido em alguma comunidade. Todos os acontecimentos narrados aconteceram de alguma forma em algum lugar. E sempre havia aqueles leitores que na vida real tinham participado de um ou de outro deles. Utilizando-se da estratégia de escrever no dialeto falado nas colônias, apresentando com vigor e exatidão da realidade humana e circunstancial dos leitores. O Pe. Rambo encontrou o caminho infalível para a aceitação das suas mensagens.

Para encerrar chamo a atenção para o último dos contos publicado um ano depois do falecimento do P. Rambo. O título no original em dialeto vem a ser: “Zwerrich dorrich de Hunsrück” – “Cruzando o Hunsrück” foi o derradeiro conto que o P. Rambo deixou como legado póstumo para os seus amados leitores espalhados pelas comunidades coloniais do sul do Brasil. Por ter sido o último, por ter sido póstumo e por descrever a visita que fez ao cenário histórico em que foi plasmado o perfil, a identidade étnica dos “Hunsrücker” e onde se consolidou o saboroso e vigoroso dialeto pelos imigrantes procedentes daquela região, o conto assume as características e o sentido simbólico do canto de cisne do P. Rambo no seu diálogo literário de 25 anos com os colonos que nutriam uma sincera veneração por ele.

[ Reflexões ]

Felizmente fazem-se ouvir também em nosso meio, as vozes, ainda isoladas, mas de especialistas de peso, preocupados com o nível preocupante em que se encontra a educação no país. Melhor ainda contamos com meios de divulgação de peso e vasta circulação que oferecem espaço para os arautos da boa nova. No artigo com o sugestivo título: “Educação para que?” o especialista em educação Gustavo Ioschpe, publicado na revista Veja de 12 de dezembro de 2012, aponta para o ponto crucial na formação, que prepara a criança e o adolescente para enfrentarem a vida profissional com sucesso. Transcrevo a passagem em que resume o seu ponto de vista.

A função primeira da escola é dar a seus alunos os instrumentos de que necessitam para navegar no mundo: um domínio básico da escrita e das operações matemáticas. Sem elas   é impossível funcionar de maneira autônoma. Depois, a escola precisa transmitir aos alunos uma vasta base factual, expondo-os ao conhecimento acumulado pela humanidade. Não apenas porque esse conhecimento é indispensável para o desenvolvimento do raciocínio (falo mais sobre isso em artigo futuro, sobre neurociência), nem porque, se bem ensinado, é inteiramente estimulante, uma vez que crianças são naturalmente curiosas, mas também porque essa exposição é necessária para que demos às crianças a chance de ter contato com suas reais vocações. Talvez uma criança nasça com o potencial de se tornar um médico extraordinário, mas precisará de algum contato com a biologia para facilitar o encontro coma sua vocação. Claro, não podemos ensinar na escola todos as milhares de especializações do conhecimento humano, mas precisamos abordar as grandes áreas nas quais esses conhecimentos estão inseridos (genericamente: linguagem, matemática, ciências sociais, humanas e exatas, artes e educação física). Finalmente a boa escola precisa fazer com que os alunos possam usar esses diversos conhecimentos como ferramenta para desenvolver sua própria capacidade de pensar. Não é importante estudar história para saber nomes e datas, mas sim ser exposto a nomes e datas para que se perceba como o estudo da história pode explicar o presente. Quanto mais ferramentas analíticas a pessoa tiver à sua disposição, melhores serão suas decisões e mais próximo do seu máximo potencial ela vai chegar. Por isso é que mesmo o aluno que sabe que vai ser advogado deve estudar química: se bem ensinada, é mais uma ferramenta para ajudá-lo a pensar. Uma boa educação gera multiplicidade de interpretações e de opções. (Ioschpe, Gustavo, 2012. p. 106)

As reflexões sobre a inconsistência para não dizer caos que é a proposta da educação em todos os níveis, poderia ser aprofundada. Resolveria muito pouco para não dizer nada. Em todo caso enquanto persistir a tutela do Estado, a instrumentalização política e ideológica da educação, a produção de um conhecimento de alto nível fica entregue a franco atiradores, a “free Lancers”. Nada de relevante se pode esperar neste sentido na atmosfera viciada das instituições formais de ensino. Não é por nada que se contam nos dedos das mãos os portadores do prêmio Nobel na América Latina. Um detalhe. Todos em Literatura e um da Paz. Nenhum em Medicina, Física, Química e Economia. O Brasil não conta com nenhum, apesar do discurso megalômano das autoridades e da empáfia de não poucos pesquisadores e ou “pensadores”. O que de alguma forma se produziu de valor em termos de Conhecimento, aconteceu fora do clima contaminado   das universidades. Nelas há condições apenas para repetir e reciclar, não raro de forma tosca Marx, Engels, Hegel, Lenin, Trotzki, Gramsci, Habermas, Adorno, Hockerheimer, e outros na moda, por “pensadores” que nunca leram seus autores no original. Penetraram no pensamento deles por meio de textos recosidos e devidamente interpretados de acordo com as conveniências políticas e ideológicas. 

A razão de fundo que não autoriza sonhar a curto e médio prazo com uma reversão do quadro que acabamos de descrever, foi expressa na observação do Pe. Alfonso Borrero. Para ele foi surpreendente a maciça presença de filósofos na formulação do programa da reforma universitária da Alemanha no começo do século XIX: Kant, Schelling, Schleiermacher, Fichte, Hegel, Humboldt e outros. Quando hoje se coloca na mesa dos debates o tema universidade, confrontam-se as ideias de políticos, economistas, jornalistas, contadores, planejadores e administradores da educação. Desinformados sobre a História e a Filosofia da Ciência, sobre a História e Filosofia da Universidade, sobre a História e Filosofia da Educação, não deixam espaço para a opinião do filósofo. 

Até aqui a nossa linha de reflexão teve como foco a necessidade de uma educação e formação, capaz de consolidar uma compreensão integradora do universo, da natureza e do homem, e ao mesmo tempo, oferecer uma sólida base teórica e metodológica. Em países como a Europa Central e do Norte, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Finlândia etc., as universidades   oferecem esse perfil, com a autonomia assegurada de direito e de fato. Esses países investem pesado no ensino fundamental e médio, na formação básica de natureza generalista e interdisciplinar, das línguas, literaturas, humanidades, ciências da natureza, sem se esquecer dos instrumentos técnicos e tecnológicos, sem os quais é inconcebível qualquer instituição de ensino. Sobretudo nas universidades as atividades são conduzidas nos limites “sagrados da liberdade de ensinar e liberdade de aprender” – “Lehrfreiheit und Lernfreiheit” no entender dos   alemães. A autonomia no plano acadêmico permite liberdade de escolha “do que” e “do como ensinar” e “do que” e “do como aprender”. E para que isso possa acontecer exige-se na outra ponta autonomia econômica e financeira e a maior distância possível, se possível total, do Estado, da Igreja, de partidos políticos e ideologias na moda. Nessa situação os governos centrais ou regionais têm o direito e o dever de destinar os recursos necessários. Uma vez depositados na conta de alguma universidade, cabe aos seus órgãos administrativos internos determinar as prioridades para aplicá-los.

Pelo que foi visto até aqui, é na ausência de autonomia de fato que reside o maior problema do ensino tutelado pelo Estado. Esse modelo de ensino alimenta-se do “leite envenenado da legislação napoleônica de 1806-1808, como diria o Pe. Borrero. Sem autonomia de fato, a formação fragmentada, superficial, inconsistente, a serviço de exigências ocasionais, serve talvez para dar conta de situações pontuais. Produzir conhecimento digno desse nome, abrangente e de longo prazo, nem falar. 

[ Reflexões ]

Este cenário de 50 anos passados começou a tomar o rumo oposto com a Reforma Universitária e 1961. Desencadeou-se a partir daquele momento o desmonte do modelo institucional e acadêmico da universidade tradicional. Não pretendemos negar as aberrações, os desvios e   equívocos que se tinham instalado e que exigiam correções e ajustes de menor ou maior profundidade. A Reforma, entretanto, significou em última análise, a opção por um modelo de instituição em bases essencialmente diferentes. O método sintético dedutivo foi substituído pelo analítico indutivo na orientação da pesquisa e produção do conhecimento. Em vez de partir do geral para o particular começa-se pelo particular para chegar ao universal. Analisando e pesquisando os fatos, fenômenos e dados particulares, pretende-se descobrir o que entre eles há de comum. Em outras palavras. Pretende-se entender o todo identificando e analisando as partes e não entender as partes a partir do todo. Pela Pluralidade chega-se à compreensão do Todo em vez de entender a Pluralidade partindo do Todo. Não resta dúvida de que a opção pelo caminho da análise, pelo método analítico-indutivo oferece vantagens inegáveis sobre o sintético-dedutivo. Mas não se pode ignorar que vem acompanhado por alguns riscos nada desprezíveis e por isso mesmo pede algumas cautelas quando da sua aplicação. Teilhard de Chardin destacou ambos os lados.

Ao contrário dos “primitivos” que dão personalidade a tudo que se mexe, ou mesmo dos primeiros grupos que divinizaram todos os aspectos e forças da natureza, o homem moderno tem a obsessão de despersonalizar ou de impersolanizar o que mais admira. Duas razões para essa tendência. A primeira é a análise, esse maravilhoso instrumento de pesquisa científica, ao qual devemos todos os nossos progressos, mas que, de síntese em síntese desfeita, deixa-nos frente a uma pilha de engrenagens desmontadas e de partículas que se esvaem. E a segunda é a descoberta do mundo sideral, objeto tão vasto que se tem a impressão de que toda a proporção entre o nosso ser e as dimensões do Cosmos à nossa volta, foi abolida. (Chardin, Teilhard de. O Fenômeno Humano 1986,)

De qualquer forma essa substituição da referência teórico-metodológica, como não podia deixar de acontecer, veio acompanhada de uma série de consequências tanto positivas quanto negativas. 

A primeira obrigou o redimensionamento da estrutura acadêmica em função da ressignificação e consequente redimensionamento dos conteúdos das áreas de conhecimento e respectivas disciplinas. Teve início então uma departamentalização cada vez mais acirrada que favoreceu a compartimentalização igualmente levada a extremos. Institucionalizou-se a independência, o isolamento e a impermeabilidade entre as disciplinas e seus conteúdos. Esse fenômeno veio acompanhado em não poucos casos, por um outro igualmente danoso. As áreas de conhecimento sofreram uma revisão, melhor talvez, uma ressignificação da sua própria natureza e sua função reorientada. A Geografia, por ex., deixou de ser uma ciência humana, para ser considerada técnica. Fato semelhante aconteceu com as Ciências Econômicas e Jurídicas e a Arquitetura. De áreas essencialmente humanas ou pelo menos com destino imediato direcionado para o homem, são na verdade tratadas e ensinadas nas respectivas faculdades, como se fossem apenas técnicas. Áreas eminentemente técnicas como a Engenharia, ignoram simplesmente a sua possível relação com outras especialidades. Escapa ao geógrafo, economista, arquiteto, jurista, etc., que a compartimentação centrífuga, teve suas raízes num momento histórico, no qual todo o saber humano, era visto como uma unidade, formado por áreas complementares e interdependentes. Trabalhava-se então com a “tese”, ou se quisermos, com o pressuposto de que o conhecimento em todos os seus desdobramentos, fundamenta-se, em última análise, numa base comum. Em outras palavras, os conhecimentos parciais não passam de manifestações de um todo, uma unidade, uma totalidade, que lhe confere sentido e razão de ser. No fundo, no fundo não faz diferença  se esse todo radical ou original corresponde a uma cosmovisão teocêntrica, antropocêntrica, budista, hinduísta, shintoista, taoista, shamanista, ou outra qualquer. 

Com as devidas adaptações impostas pelo andar do tempo, a essência estrutural e acadêmica nas universidades alemãs, inglesas e norte-americanas, manteve-se, como se mantém até hoje, fiel à “tese” de que os conhecimentos parciais tem uma origem comum no todo. 

As mudanças acadêmicas e estruturais implantadas desde a década de 1960, foram motivadas por duas razões de fundo. Em primeiro lugar a preocupação pela compreensão da unidade, da totalidade do saber passou para um segundo plano. O que importa é conhecer até o fundo as partes. Inverteu-se com isso a perspectiva a partir do qual o conhecimento é construído. A “análise”, veio a ocupar o lugar da “síntese”, como norte teórico-metodológico. Começou a vigorar nos laboratórios de investigação científica e nos gabinetes de produção de conhecimento a ordem de penetrar sempre mais a fundo nos objetos particulares. Há, com certeza, uma razão de peso para essa inversão de perspectiva. A segunda metade do século XX inaugurou uma forte tendência para o desenvolvimento. O mundo saíra profundamente modificado da guerra. As alianças políticas, os tratados econômicos, os pactos militares, acomodaram o mundo como uma totalidade, em blocos hegemônicos, envolvendo de alguma forma todos os povos e nações. Neste contexto a maneira de conceber a formação e a educação do cidadão, constitui-se peça fundamental. O apelo pela mobilização de cidadãos com conhecimentos diretamente utilizáveis, fez com que, principalmente as universidades, fossem convocadas para suprirem a demanda   de mão de obra especializada. O interesse pelos conhecimentos e investigações de aplicabilidade imediata e prática cresceu na mesma proporção que o conhecimento e a pesquisa em áreas indiretamente importantes, passaram para um segundo plano. As “prioridades” fazem com que por ex., as “Ciências Humanas” ocupem uma posição marginal em muitas Instituições de ensino superior.

O lado profissionalizante da produção do conhecimento e das investigações nos laboratórios científicos, é cada vez mais valorizado e a universidade orienta seus objetivos prioritariamente para o desenvolvimento. Não há necessidade de recorrer a profundos malabarismos lógicos, para perceber que essa correção de rumo fez tremer um dos pilares mestres da universidade: a “Autonomia”. Parece importante, entretanto lembrar que a Autonomia pode ser vista como informal, de fato, ou capitulada na Constituição e amparada na legislação complementar. A primeira versão é encontrada nos países em que o Estado se interessa pelas universidades porque os resultados das investigações nelas realizadas, os conhecimentos de alto nível produzidos e tecnologias de ponta desenvolvidas, interessam aos propósitos do Estado. Municiam as universidades com os meios e instrumentos de renovação e atualização, permitindo o progresso em todos os empreendimentos no plano material e conferem-lhe prestígio pelo conhecimento de alto nível, orgulho das suas academias. A relativa perda da autonomia de fato é imposta pelos “clientes” que encomendam “os produtos” que lhes interessam nas universidades. Esse fenômeno, salvo melhor entendimento, continua valendo nas universidades alemãs, inglesas e norte-americanas. Sua estrutura institucional e sua proposta acadêmica mantem a excelência como meta, a pluralidade na unidade como referência metodológica e a destinação do conhecimento produzido, os resultados das pesquisas efetuadas e a utilidade das tecnologias desenvolvidas, direcionadas para o desenvolvimento. Vista sob essa ótica o “mercado” orienta e seleciona o que a universidade tem a oferecer. Não lhe assiste, entretanto, nenhuma autoridade, muito menos amparo legal para cercear a autonomia.

Uma situação bem diferente, para não dizer antagônica, está presente nas universidades públicas e privadas, direta ou indiretamente inspiradas no modelo napoleônico. Na sua própria concepção original o modelo é profissionalizante. Como tal o maior valor cultivado na academia é a aplicabilidade prática. Como tal a universidade transforma-se em mais um instrumento precioso e poderoso para aparelhar o Estado. Neste caso os homens e os partidos de plantão no governo, servem-se da universidade como de todos os níveis do ensino, para perseguir seus propósitos, difundir suas ideologias políticas e implementar interesses pessoais. Dessa maneira está armado o cenário para o Estado por em andamento a escalada da tutela sobre a universidade. Nos cinquenta anos que se passaram desde que começaram as reformas  até hoje, os governos federal, estadual e municipal, valendo-se de “bases e diretrizes”, repetidas vezes remodeladas e “aperfeiçoadas”, implementadas por meio de um aparelhamento burocrático cada vez mais acirrado, controlam até às minúcias o ensino e a educação, começando pelo infantil até a pós-graduação. A autonomia prevista na Constituição é letra morta e não passa de uma ficção.

A tutela do Estado sobre o ensino, de forma especial sobre a universidade, trouxe consigo problemas de fundo, que afetaram as investigações científicas e a produção do conhecimento. O lado talvez mais discutível dessa situação relaciona-se com as áreas de conhecimento privilegiadas na escolha das prioridades acadêmicas além da opção pela base teórico-metodológica preferencial. As demandas do mercado público e privado ditam a formação profissional preferencial. Somado ao engajamento político-ideológico a situação que se criou, relegou para um segundo plano as Ciências Humanas, Letras, Artes ... 

Os fatores que determinam a escolha da área ou objeto específico digno de atenção especial,   obedece em primeiro lugar ao critério das oportunidades profissionais que oferece. Ora essas oportunidades estão intimamente relacionadas com os instrumentos necessários para implementar as políticas públicas de desenvolvimento. Compreende-se que a lógica determine a canalização dos estímulos e recursos em favor das áreas prioritárias. Ninguém de são juízo colocará em dúvida a validade dessa forma de proceder. Trata-se de uma tendência universal   que faz parte do momento histórico. A razão de ser dos problemas e das dúvidas que se fazem sentir, não se situam na natureza do processo, mas na forma como é administrado. 


No caso específico do Brasil, os órgãos públicos, ministérios, secretarias, etc., direta ou indiretamente responsáveis pela formação acadêmica e profissional, impuseram, com o andar dos anos, um aparelhamento burocrático hermético. O Ministério da Educação dita, por meio da CAPES e secretarias setoriais, até as últimas minúcias, tanto a estrutura burocrática das instituições de ensino, quanto a natureza, a importância e a destinação das propostas curriculares. Pouco espaço, melhor, nenhum, sobra para propostas que não cabem nessa camisa de força. Para usufruírem da legitimação oficial as instituições de ensino em geral e as universidades em particular, são coagidas a se burocratizarem até os últimos detalhes. O processo começa pela opção por prioridades, estrutura curricular, seleção de conteúdos, escolha e execução de projetos de pesquisa e por aí vai. Uma pesquisa científica ou a produção de conhecimento, só goza de reconhecimento quando executada rigorosamente de acordo com as regras ditadas pelas coordenações, comitês, colegiados, etc. ou pior, pela ideologia ou simples humor dos gestores. Não sobra espaço para a liberdade ou autonomia de voo de uma investigação científica ou produção do conhecimento sem compromisso. Estamos diante do cenário perfeito que favorece o espírito de rebanho na mesma proporção em que obstrui o caminho em busca da produção de um conhecimento livre. A situação torna-se dramática quando se instala a tirania partidária e ideológica no meio acadêmico. Os poucos professores que ousam discordar são sumariamente silenciados e boicotados pelos colegas. No momento em que se decidem currículos e disciplinas suas opiniões são ignoradas. Cabe ao oportunismo ideológico a última palavra. Em sala de aula os conteúdos são escolhidos, apresentados e tratados sob medida, para agradar alunos e exigir deles o mínimo de esforço. Professor bom é   aquele que fala sobre temas, e principalmente, sob o enfoque que os alunos esperam, melhor, exigem ouvir.

E os resultados? Egressos do ensino fundamental semianalfabetos, formados no ensino médio candidatos ao superior, incapazes de formular um raciocínio coerente, dominando precariamente a língua do país, sem condições de redigir uma frase correta. Nessas condições falar em produzir conhecimento, só com muita boa vontade. Faltam as condições prévias mais elementares. Em primeiro lugar os estudantes ressentem-se da falta das ferramentas básicas para ousarem trilhar o caminho da produção do conhecimento. Entre elas são fundamentais as línguas clássicas e modernas mais correntes, uma formação geral mínima, a posse dos indispensáveis instrumentos teóricos e metodológicos. Com a falta desse pressuposto as perspectivas infelizmente permanecem limitadas. 


[ Reflexões ]

A mesma preocupação com uma formação ampla e consistente, tiveram os responsáveis pela consolidação da universidade norte-americana. No transplante para a América, não deixaram de acontecer as adaptações óbvias exigidas pelas novas circunstâncias. A formação revestiu-se de um direcionamento pedagógico-educacional mais ostensivo. A preocupação pela pesquisa pura, por assim dizer “desinteressada”, cedeu lugar a uma visão mais utilitária, mais pragmática. Com essas adaptações naturais, porém, o cerne do modelo original não sofreu nenhuma modificação substancial na sua valorização. Pelo contrário. Foi enriquecido. Em vez de apropriar-se do conhecimento pelo conhecimento, o saber pelo saber, desde cedo sinaliza-se para direcionamentos práticos. Neste sentido o M.I.T. é um exemplo de instituição de grande sucesso. 

A razão por ter-me prolongado na caracterização da formação média e superior, foi mostrar sua importância como pressuposto para a produção do conhecimento. Já que partimos da premissa de que conhecimento é síntese, a lógica sugere que o resultado final dessa síntese é tanto mais rico e tanto mais consistente, quanto mais conhecimentos parciais participaram da sua construção e quanto mais sólida for a sua integração. Os dois elementos estão presentes tanto na proposta pedagógica quanto no currículo e nível médio e superior das instituições de que nos ocupamos acima. Nos “Gymnasia” de nível médio estavam previstas todas as disciplinas indispensáveis para uma formação básica ampla do tipo generalista. Os diversos blocos afins formam os pilares que servem de base para a construção do conhecimento. Em grandes linhas são eles: as línguas clássicas e modernas mais correntes na comunicação de alto nível, com as respectivas literaturas. O formado nesses “Gymnasia”, estava em condições de valer-se do original dos textos em grego, latim, alemão, francês, inglês, e não raro em outras línguas, com destaque para o italiano, o espanhol, português, russo, sueco, polonês, etc. A História Natural, compreendendo a física, química, biologia, geologia e demais conhecimentos da natureza, formava o segundo pilar. O terceiro tinha na história, geografia, antropologia, etnografia, etnologia, seu foco de interesse. E finalmente a quarta coluna mestra da formação tinha na matemática, na filosofia e não raro na teologia a sua coroação. 

Dessa forma o estudante estava em condições de ter acesso à matéria prima e as ferramentas teóricas e metodológicas indispensáveis para a produção do conhecimento. Assim aparelhado o formado em nível médio ingressava no superior, em condições para, sob a orientação de mestres experientes, encontrar o caminho para dar início à arquitetura de um universo próprio de produção de conhecimento. O processo que levaria anos dava-se num ambiente que se denominava “Seminário”. Na modalidade padrão de Seminário, o professor fazia o papel de moderador e coordenador dos debates, das discussões e não como autoridade que ditava de cima para baixo as regras e impunha suas ideias. Cabia-lhe conduzir de tal forma o fluxo do debate, para que dele resultasse um avanço qualitativo sobre o tema em foco.  Cada patamar alcançado servia de degrau para um novo avanço, para mais adiante e mais acima. Preparava-se assim a plataforma para um novo Seminário no qual se aprofundava e levava para mais adiante o aprofundamento da temática. E assim, professor e aluno, cúmplices e comprometidos na aventura da apropriação e aprofundamento de sempre novos saberes, avançavam sobre sempre novas fronteiras do conhecimento.

Com esse formato, o Seminário bem conduzido vem a ser um laboratório próximo do ideal. Habilita o estudante a levantar voo rumo à produção de conhecimento autônomo, guiado por um mestre que faz mais o papel de parceiro do que de tutor ou autoridade do saber. Não por nada o orientador de teses de doutorado ainda hoje leva o nome sugestivo e quase carinhoso   de “Doktor Vater” (“Pai de Doutorando”). Oferece também uma magnífica ocasião para o próprio professor enriquecer, ampliar, renovar e atualizar o seu próprio universo de conhecimento. 

A especialização não vem ser a prioridade dos Seminários. Na proposta original nas universidades alemãs modernas da primeira geração, interessava, antes de mais nada, o conhecimento como tal e apropriação das ferramentas indispensáveis para produzi-lo. Pela lógica supunha-se que aquele que estivesse de posse delas, deveria estar em condições para dedicar-se com sucesso a qualquer campo específico do saber. Foi exatamente essa característica do Seminário que encantou os jovens americanos que em massa foram estudar   nas universidades alemãs entre 1850 e 1914. São recorrentes testemunhos como o do aluno Henry W. Langfellow, estudante em Göttingen em 1829, já citado. 

Ao tirocínio ao qual o estudante era submetido no Seminário das universidades alemãs, à formação da personalidade pelo modelo “Oxbridge” e ao acentuado propósito pedagógico das universidades americanas do Norte vem na contramão, a proposta latino-napoleônica de uma universidade voltada para profissionalização e tutelada pelo Estado. Dois elementos complementares são responsáveis pelo seu perfil institucional e acadêmico. Antes de mais nada a formação do cidadão em qualquer nível e de modo especial na universidade, consta no rol dos instrumentos de que o Estado se serve para concretizar seus propósitos. Sendo assim sua destinação primeira consiste em prestar serviço ao Estado. A lógica é retilínea. Para tocar suas políticas, iniciativas e projetos públicos, o Estado precisa de mão de obra especializada, precisa de técnicos. Ora a formação desses recursos humanos acontece em instituições que vão do fundamental ao ensino superior. Entende-se assim que é do interesse do Estado ditar a própria   razão de ser da universidade, e consequentemente, a natureza acadêmica e o perfil institucional, administrativo e burocrático. Estamos assim diante de um modelo viciado na sua própria essência. A autonomia prevista na Lei Fundamental ou na Constituição de algum país que optaram por esse modelo, não passa de ficção. Não é para valer como na prática não vale. Presta-se muito bem para a mistificação em discursos políticos, encobrir propósitos ideológicos, enfim, para enganar os desavisados, nada mais. Nessa condição a universidade, como qualquer outra instituição de ensino e em qualquer nível, constitui-se, em primeiro lugar, senão em único, num instrumento a serviço dos interesses do Estado. Pior. Dar a impressão de que por meios legítimos ou nem tanto, a formação dos cidadãos está sendo direcionada em função de interesses pessoais dos donos da nomenclatura no poder. Nessas condições produzir conhecimento digno desse nome, só fora ou à margem das instituições formais. 

A instrumentalização da formação do cidadão em qualquer um dos níveis de ensino, vem acompanhado de outro inconveniente não menos desastroso. Fica atrelada aos partidos e ideologias políticas que se alternam no poder. Esse fato resulta ainda mais danoso em períodos em que regimes democráticos, são intercalados com governos autoritários ou pior, ditatoriais. Nesse contexto costumam suceder-se em intervalos curtos e sem condições mínimas de avaliação, as “Reformas do Ensino”, tão familiares no Brasil a partir da década de 1960.

No caso específico do Brasil as relativamente poucas universidades em funcionamento até o final da década de 1950, exibiam um perfil muito parecido com as alemãs, inglesas e norte-americanas. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ocupava o centro polarizador e irradiador, a “Alma Mater” da universidade. Em volta dela agrupavam-se as faculdades, as escolas profissionais, os institutos de pesquisa, etc. No âmbito da “Alma Mater” cultivava-se o clima propício para uma formação de base mais ampla. Nela o estudante encontrava as condições necessárias para familiarizar-se com o conhecimento e tudo o que era preciso para dar início a uma carreira de pesquisa, investigação e produção do conhecimento. Essa estrutura institucional facilitava em muito o encontro e intercâmbio de informações e experiências. Professores e alunos de filosofia, história, geografia, biologia, matemática, física, química, línguas e literatura, circulavam pelos mesmos espaços físicos. Compartilhavam salas de professores, restaurantes universitários comuns ou participavam de programações acadêmicas interdisciplinares. Áreas afins como história e geografia formavam um único departamento. Hoje, por ex., as duas encontram-se tão distantes no contexto universitário, ao ponto de se ignorarem e não terem nada para se enriquecerem mutuamente.