Voltando à metáfora de Nietzsche da corda estendida
sobre o abismo é lícito concluir que a humanidade, como espécie biológica, ainda
não concluiu a travessia sobre o abismo.
Fica a pergunta: Será que logrará chegará são e salva na outra margem, ou seu
destino é precipitar-se do alto e terminar com sua história truncada no meio da
travessia. Na verdade, três são os desfechos possíveis. Ou a evolução termina
no super-homem entendido aqui como a realização plena do “humano no homem”; uma hecatombe fora do
comum provocada pelo próprio homem ou por acontecimentos naturais, rompem a
corda e a humanidade termina no fundo do abismo; ou a evolução encontra
condições para continuar normalmente sua marcha até esgotar todo o seu
potencial para avançar, e a biosfera, e com ela, a espécie humana
apagam-se como uma vela que esgotou a cera que a alimentou.
Não faz sentido apostar em um desses desfechos pois, em última análise não
interfere na essência da natureza humana e sua relação com a natureza. O
próprio super-homem de Nietzsche não seria uma nova espécie de homens, mas a
conquista de um novo patamar previsto no curso normal da evolução. Entre essas
alternativas, a segunda, uma hecatombe provocada por acidentes naturais ou
causada pelo homem, é que merece atenção especial no contexto das nossas
reflexões inspiradas na Encíclica. Não a possível colisão de um meteoro gigante
como aconteceu no Jurássico, levando à extinção dos dinossauros, mas a
espoliação desenfreada dos recursos naturais. Não é necessário insistir de novo
no risco de um desequilíbrio irrecuperável, ou só recuperável da biosfera, no
decurso de dezenas e centenas de milhares de anos. Esse é o fator que de
momento faz balançar a corda estendida sobre o abismo e a humanidade
equilibrando-se nela comprometendo seriamente o êxito da travessia.
Vale o alerta de Edward Wilson que estamos espremidos
num gargalo que pode evoluir para um beco sem saída, na suposição de não se
tomarem providências para desacelerar significativamente a agressão à natureza.
Nesse processo todo e nas circunstâncias em que
ocorre, a espécie humana, apesar dos pesares, não deixa de ser um fenômeno
único, poderíamos dizer o “Leitmotiv” da sinfonia que confere sentido e razão
de ser à harmonia da natureza. Dobzhansky como cientista aprofundou essa
realidade ao definir a singularidade da espécie humana inserido no conjunto da
natureza. A cultura não se transmite
pelas células sexuais e, portanto, não pelos genes, mas individualmente adquirida
por cada pessoa, pela convivência com pais, irmãos, vizinhos, seu entorno
social, a tradição oral e escrita ou perpetuada de qualquer outra forma. A fase
decisiva na transmissão da cultura é na infância e, num sentido mais amplo, a
socialização começa no nascimento e estende-se até a morte. A transmissão da
cultura acontece independente da identidade étnica e, por isso, somos todos, de
alguma forma, herdeiros tanto dos personagens proeminentes da história quanto
dos protagonistas anônimos das conquistas culturais do remoto paleolítico, até
hoje. A cultura evoluiu e continua evoluindo como os genes, porém, acionada não
por mecanismos biológicos, mas mecanismos e leis próprias. A evolução biológica
e evolução cultural são fenômenos análogos e não homólogos, por isso mesmo um
deles não pode ser reduzido ao outro. Esse reducionismo espalhou uma grande
confusão entre os cientistas, historiadores, sociólogos e políticos.
Transformada em ideologia política, serviu de base para desqualificar raças
supostamente inferiores geneticamente e por isso incapazes de ascender em direção
ao “super-homem” imaginado por Nietzsche. O exemplo em cultura pura dessa maneira
de pensar, foi o nacional-socialismo que elegeu a “raça ariana” como predestinada
a realizar essa façanha e desqualificar todas as demais como inferiores de
merecedoras de extermínio. De qualquer forma, essa confusão reina em grau mais
ou menos acentuado onde quer que se pratica a discriminação argumentando com “a
raça”. Essa confusão é um fenômeno que perpassa a história da humanidade no
sentido tanto sincrônico quanto diacrônico. Onde quer que tenham convivido
raças humanas de cores, estatura e
compleição física diferentes, o racismo esteve e está presente. Seria, portanto
um processo homólogo e reducionista que considera a cultura na sua essência
condicionada pelo DNA como a cor da pele ou as papilas dos dedos. Um exemplo óbvio desmentindo essa tese,
temos observando nos últimos séculos em todos
os setores da atividade humana. Chama
a atenção ao fato de que “milhões de trabalhadores que na atualidade manejam
máquinas complicadas, são filhos e netos de camponeses e lavradores que apenas
sabiam cultivar a terra. Para essa mudança, certamente, não foi necessário
esperar por mutações genéticas para transformar camponeses em engenheiros. (Cf.
Dobzhansky, 1969, p. 154)
Com essa colocação o nosso cientista ensina que a
ciência somente então tem sentido quando ajuda o homem a compreender-se a si
mesmo. E esse compreender-se não implica apenas na compreensão da sua
identidade como espécie taxonômica, mas em resposta para todas dimensões da
natureza humana. Para a primeira parte da questão podemos aceitar
tranquilamente que a ciência tem respostas, senão definitivas, pelo menos
satisfatórias. Enumeram-se na linha daquelas que explicam a origem e evolução
das espécies. Mas, no caso do homem, ficam em aberto perguntas para as quais o
potencial das ferramentas científicas é insuficiente embora indispensável. Em
outros momentos já refletimos sobre essas intrigantes perguntas. Rambo resumiu
num conceito o tamanho do desafio posto para as ciências naturais e demais
áreas do conhecimento, isto é, explicar e entender em toda sua dimensão “o
humano no homem” – “die Menschlichkeit”, como ele a resumiu numa única palavra.
A pergunta a ser respondida, portanto, resume-se em dar uma resposta
satisfatória para o que significa o “humano no homem”.
Pelos dados de que dispomos, a natureza humana
manteve-se inalterada desde que o homem se fez homem e com ela o “humano – die
Menschlichkeit”. Ela se expressa nos mesmos medos, nos mesmos temores, nas mesmas esperanças, nas mesmas alegrias,
nas mesmas perguntas existenciais, ao pedir
respostas pelo sentido da própria existência: donde viemos, porque
estamos aqui e porque somos assim e para onde vamos? Somam-se a elas os
questionamentos pelo como funciona
natureza e porque ela é assim, a razão de ser do universo, da existência
ou não de vida depois da morte, do lugar ou não lugar de Deus, das divindades,
dos bons e maus espíritos, que permeiam a concepção, melhor, a cosmovisão de
todos os povos e culturas. Esses elementos por comporem o “humano”, vem
intrigando os homens de todos os tempos e de todas as culturas e civilizações.
Com essa matéria prima, cada povo e cada indivíduo procuraram e procuram resposta
nos seu mundo ambiente singular, responderem às questões a que nos acabamos de
referir. Não é uma tarefa fácil. A complexidade do desafio é de tal ordem que a
sua solução só é possível quando enfrentado com métodos e instrumentos capazes
de identificar as notas e os acordes dessa peça e, principalmente, como
interagem para resultar numa sinfonia harmônica. Parece evidente que os métodos
convencionais, o analítico indutivo e o o sintético dedutivo, não conseguem dar
conta para identificar e explicar o que é “o humano” – “die Menschlichkeit”.
Segundo a opinião de Alfonso Borrero, esses métodos são chamados para conferir
mais segurança e maior credibilidade para o conhecimento baseado na intuição e
na percepção sensorial, numa fase da história como a atual na qual, por assim
dizer, exige-se o “preto no branco”, como selo de validade para que algo possa
ser chamado de científico e/ou racionalmente aceitável.
A ciência apenas possui
então valor quando cultivar quando o cientista tem de humano (Menschlichkeit),
quando compreendida e praticada a partir do todo. Pressupõe isso um treinamento
escolar geral voltado para o todo – coisa que foge à grande maioria dos pesquisadores atuais. A
ciência praticada como deve ser é uma recriação
do mundo, semelhante a de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo, 1994)
Sem entrar em maiores detalhes, esses parecem ser,
em grandes linhas, os elementos que
fazem com que o humano no homem seja de fato “humano” – “Menschlich”. Partindo
desse pressuposto, é também nesses cenário que uma reflexão interdisciplinar
isenta, honesta e séria tem condições de frutificar. Deixando de lado
preconceitos, idiossincracias, radicalizações, egoísmos e outras atitudes que
impedem o diálogo, fica o convite para um encontro, uma confraternização de
todas as áreas do conhecimento no cenário de interesse comum: o homem, a sua
identidade, a sua razão de ser e a sua missão como figura central da Criação
como o concebeu Wilson na sua perspectiva de “humanista secular”, de um lado,
e Balduino Rambo que parte do
pressuposto que a natureza foi de alguma forma criada por Deus. Tanto para o
primeiro, quanto para o segundo, quanto para Francis Collins, Theodosius
Dobzhansky e tantos outros, a compreensão do universo e da natureza só então faz
sentido, quando, direta ou indiretamente, cria as condições para que a espécie
humana se conheça a si mesmo, se aperfeiçoe e se realize sempre
mais, corporal e espiritualmente.
Tirando as conclusões lógicas do que pretendemos
entender com as afirmações que acabamos de fazer, parece indiscutível que a
realização das potencialidades físicas e espirituais do homem é diretamente
proporcional à qualidade ou a degradação do meio ambiente em que vive. Sendo
assim, os recursos naturais devem estar, em primeiro lugar disponíveis a todos
indistintamente; o equilíbrio climático é uma questão que interessa a todos; a
destruição dos ecossistemas naturais vem a ser uma ameaça de extinção de
milhares de espécies de animais e vegetais; o desperdício da água potável, o uso irracional do solo, de
produtos químicos, pesticidas e outros artifícios, comprometem a médio e longo
prazo, a sobrevivência de povos inteiros, não descartando a da espécie humana
na sua totalidade. Resumindo: as ciências naturais, as ciências do espírito, as
ciências humanas, as letras e artes, têm a sua razão de ser como caminhos,
aproximações, cada uma à sua maneira, para a compreensão, a promoção e a
realização do “Humano no Homem” – “Die Menschlichkeit”. Sendo assim os diversos
campos do conhecimento encontram-se em território comum e têm a sua
justificativa ao se nortearem pela “ética natural”. Parafraseando Kant, duas realidades deixam os
cientistas, os filósofos, os humanistas, os artistas e, de modo especial, as
pessoas comuns, admirados, pensativos e perplexos: o mundo lá fora que lhes
garante o alimento para o corpo e o espírito e a lei moral cá dentro que os faz
distinguir o bem do mal, o que é certo e errado e, ao
mesmo tempo, a liberdade de escolher entre o certo e o errado, entre o bem e o
mal. Ou ainda a sentença de Einstein: A Religião sem a Ciência é cega e a
Ciência sem a Religião é manca.