O primeiro nome que se destaca vem a ser Thodosius
Dobzhansky, considerado como um dos pais da genética ao formular com outros geneticistas as bases científicas
e metodológicas dessa especialidade que
vem conquistando cada vez mais importância como área de pesquisa pura e sua
aplicabilidade prática como na medicina, na manipulação genética de plantas e
animais etc. A obra de Dobzhansky que escolhemos como base para ilustrarmos a
forma como ele encara o problema do “porque e do como” fazer ciência, partindo
dos resultados de sua especialidade, leva como título na tradução para o
espanhol: Herencia e Naturaleza del Hombre, publicado em 1969.
No prefácio dessa obra o autor chama a atenção à
gigantesca expansão da atividade científica. O número de cientistas cresce
proporcionalmente mais do que a população mundial. Essa situação leva a uma
série de consequências importantes. Uma delas é a especialização crescente no
mesmo ritmo em que se multiplicam os cientistas. Com isso, abrem-se novas
frentes e sempre mais especializações. Resulta daí que hoje é simplesmente
impossível um cientista só abarcar com alguma
profundidade, sequer os conhecimento gerados em sua área de interesse,
como a botânica, a zoologia, a geologia e as demais. O desmonte dos objetos
chega a extremos tais que já não têm mais interesse e utilidade, a não ser para
o próprio especialista. Um segundo fenômeno que corre paralelo a esse quadro
vem a ser os cientistas avançando na contramão do processo de especialização
levado ao extremo. São aqueles se preocupam encaixar os dados isolados num todo, num
sistema, ou se preferirmos num síntese. À dinâmica centrífuga própria da
especialização pretende-se somar algo de útil ao conhecimento como um todo. Ela
precisa ser temperada com a sua antípoda, a dinâmica centrípeda em direção à
síntese dos resultados das pesquisas. Acontece que, quanto maior for o volume
de informações saídas dos laboratórios, tanto mais trabalhoso será reuni-los
numa síntese. Cientistas especializados e
sintetizadores costumam ser personalidades que, pela própria natureza da
sua postura intelectual, correm o perigo de serem “medíocres” tanto como
cientistas quanto como sintetizadores. No plano ideal, porém, todo cientista
deveria ser um especialista e um sintetizador. Trata-se, entretanto, de uma
façanha pouco comum, mas não impossível. Quem logra subir a esse nível já não é
mais um simples conhecedor, um “Kenner” como diriam os alemães, mas um sábio,
um “Weise”.
O cientista que alcançou esse
patamar corre o sério risco de ser desqualificado como tal. Para os pesquisadores
especializados, o esforço na análise aliada à preocupação pela síntese exige o
recurso a conceitos, a um discurso e, de modo especial, a métodos, que causam
estranheza ao especialista. No plano
metodológico, vale-se da intuição e ou da percepção sensorial, da sabedoria
popular para preencher as lacunas e responder perguntas que os dados objetivos
dos laboratórios, das tabelas estatísticas ou dos modelos matemáticos deixaram em
aberto. Com a singularidade com que constrói a sua concepção integradora,
holística do conhecer as realidades concretas, o “sábio” naturalista vira
poeta, artista e porque não, um místico. A apreciação da harmonia de uma
paisagem, o mistério do silêncio de uma floresta, o épico de uma tempestade, o
assustador de um abismo põem em ebulição as emoções mais profundas da alma num linguajar bem diverso daquele, por
exemplo, que é próprio de uma descrição taxonômica de plantas e animais. Em
todos os autênticos “sábios” (Weise) nota-se
essa peculiaridade independente da sua especialidade como cientista. Por se
valerem de recursos literários que fogem do padrão enxuto, despido e
esquelético ao descrever espécies e gêneros, montar tabelas estatísticas ou descrever processos físicos,
não raro são desqualificados por seus pares que apostam todas as fichas no
rigor dos métodos científicos e apresentam os resultados numa linguagem que se
aproxima de um código secreto, decifrável
somente por iniciados. Para eles, um Balduino Rambo, depois de coletar
durante um dia todo amostras de fanerógamos, descansando na boca do canyon do
Fortaleza ou do Taimbezinho,
intuindo que “Alguém mora nesses
abismos e Alguém vigia nessas torres de observação”, não passa de um romântico
alienado. Para seus críticos, a ciência que faz não oferece a
credibilidade dos dados objetivos
comprovados “preto no branco”, pelos métodos e as ferramentas da análise empírica.
A obra de Francis Collins, “A Linguagem de Deus”, e a de Edward Wilson, “A
Criação – como salvar a vida na terra”, são textos que alternam ou até mesclam dados científicos com
divagações épicas, românticas, líricas e
até místicas. A grandiosa unidade na complexidade da Natureza e do Homem, de
Teilhard de Chardin, segue a mesma linha
e sofre a mesma restrição imputada a seu irmão de ordem religiosa, há pouco
citado.
O que é permitido concluir do que se acaba de
referir? Dobzhansky oferece uma resposta a partir da sua especialidade de
geneticista, válida, na sua essência,
para os cientistas de qualquer uma das áreas das Ciências Naturais. Ao
fazer a apresentação do seu livro “A Herança e a Natureza Humana” chama a
atenção ao fato de que a obra é fruto da série “Holiday Science Lektures”,
patrocinada pela “Sociedade Americana para o
Progresso da Ciência” nos anos de 1963 e 1964. O objetivo da série de
estudos e reflexões foi assim resumido: “Ampliar os horizontes científicos do
público e compartilhar com ele uma parte da emoção e inspiração do esforço
científico”.
Dos numerosos avanços da
ciência, a ciência da hereditariedade é dos mais impressionantes. Evidentemente
a genética não inventou uma nova superbomba, nem consegue competir com a
sensação romântica proporcionada pelas viagens interplanetárias. O interesse e
a importância são definidos por outras
razões. Há mais de dois milênios os sábios gregos descobriram que “o
conhecer-se a si mesmo” é a base de toda a sabedoria. Talvez a principal finalidade da genética, biologia e da ciência
em geral – ou pelo menos um deles – consiste em ajudar o homem a compreender-se
a si mesmo e tomar consciência do seu
lugar no universo. (Dobzhansky, 1969, p. 11)
Os seres humanos além de formar uma espécie
taxonômica com as características comuns que permitem sua classificação nessa
categoria zoológica, como as demais apresenta, ao mesmo tempo uma variedade
individual que vai ao extremo. Não há
duas pessoas idênticas. Desde que foi constatado que as impressões digitais são
provas de identificação, até hoje não há notícia da coincidência no desenho das
papilas entre duas pessoas, tanto assim que continuam sendo usadas como prova
conclusiva da identidade. Nem mesmo os gêmeos idênticos são de fato idênticos,
são, isso sim, menos diferentes. Dobzhansky chama a atenção ao fato de que por
mais parecidos que pareçam entre si os indivíduos de uma espécie, uma
observação mais atenta mostra que também entre os animais e plantas, há traços
que os identificam como indivíduos. A resposta deve ser procurada na combinação
dos efeitos da herança genética e a influência do meio ambiente em que alguém se encontra. “Uma pessoa
qualquer, com todas as suas características físicas, mentais e culturais é
produto da interação entre a natureza e alimentação, hereditariedade e
ambiente”. (Dobzhansky, 1969, p. 14). Sendo assim, tanto o determinismo
genético quanto o determinismo ambiental, levados ao exagero, distorcem o que
de fato acontece com o homem e, por extensão, com os animais e as plantas. No
caso do homem, soma-se à base genética e à influência do meio geográfico, as
características culturais com todos os seus desdobramentos. Conclui-se daí que
as incontáveis modalidades das condições ambientais e as condições culturais
colaboram com outras tantas modificações
nos indivíduos, ressalvado o potencial genético de cada integrante de
uma determinada espécie. “Para onde vai
a humanidade” – este é o título do último capítulo do livro de Dobzhansky,
oferece a seguinte reflexão:
A ciência tem que ser
antropocêntrica, o que significa ter o homem como referência. Algumas vezes
define-se a ciência básica, fundamental e teórica, como método para compreender
o mundo. A ciência prática ou a
tecnologia é um método para transformar o mundo em função da vontade e as aspirações do homem. É
perfeitamente razoável que o conhecimento do mundo seja útil, melhor
indispensável, quais as mudanças a serem efetuadas, como fazê-las, para que beneficiem a
humanidade. Não há dúvida de que a inter-relação e a ciência básica deve ser
interpretada de modo amplo. O conhecimento das partículas inter-atômicas dos
átomos e moléculas, organismos inferiores e superiores, das montanhas e
oceanos, das planícies, sóis e galáxias, ajuda ao ser humano no seu esforço de
compreender-se a si mesmo e o seu lugar
no universo. Quem é o homem, donde vem e para onde vai? É questionável que a
ciência por si só esteja em condições de responder definitivamente essas
interrogações; certamente as melhores inteligências seriam impotentes diante
delas sem dispor de conhecimentos científicos. (Dozhansky, 1969, p. 150)
A essa reflexão o cientista acrescentou os versos
do poeta Omar Khayyam que viveu há 8 séculos passados e concentrou em poucas
palavras a problemática em questão: “Chegamos a este mundo sem saber porque;
nem de onde, queiras ou não, como a água flui; e partimos dele como o vento do
deserto, para onde não sei, queiras ou não”. (cf. Dobzhansky, 1969, p. 151). Ao
poeta faz sentido acrescentar a opinião do filósofo Nietzsche sobre o “enigma
humano”. “O ser humano é uma corda estendida entre os animais e o super-homem,
uma corda estendida sobre um abismo” (cf. Dozhansky, 1969, p. 151). Não consta que Darwin, assim como muitos
outros cientistas, presumivelmente a maioria, tivesse conhecimento do poeta árabe, muito menos nele
se inspirado. O fato é que a ciência e
os cientistas estão direta ou indiretamente comprometidos em achar respostas
para as perguntas formuladas por Omar Khayyam.
Sem dívida, nos últimos dois séculos progrediu-se muito nessa direção.
Nos laboratórios, nas pesquisas de campo, observando o acontecer da natureza na
sua prodigiosa complexidade, abriram milhares de caminhos e trilhas, sonhando
em contribuir para sempre mais novas e atualizadas respostas, para as eternas e
velhas perguntas sobre “o como”, “o porque” – “o para que” – e “o para onde”,
da existência do homem e a natureza da qual faz parte ontológica.