REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 68


Voltando à metáfora de Nietzsche da corda estendida sobre o abismo é lícito concluir que a humanidade, como espécie biológica, ainda não concluiu a  travessia sobre o abismo. Fica a pergunta: Será que logrará chegará são e salva na outra margem, ou seu destino é precipitar-se do alto e terminar com sua história truncada no meio da travessia. Na verdade, três são os desfechos possíveis. Ou a evolução termina no super-homem entendido aqui como a realização plena do  “humano no homem”; uma hecatombe fora do comum provocada pelo próprio homem ou por acontecimentos naturais, rompem a corda e a humanidade termina no fundo do abismo; ou a evolução encontra condições para continuar normalmente sua marcha até esgotar todo o seu potencial para avançar, e a biosfera, e com ela, a espécie humana apagam-se  como  uma vela que esgotou a cera que a alimentou. Não faz sentido apostar em um desses desfechos pois, em última análise não interfere na essência da natureza humana e sua relação com a natureza. O próprio super-homem de Nietzsche não seria uma nova espécie de homens, mas a conquista de um novo patamar previsto no curso normal da evolução. Entre essas alternativas, a segunda, uma hecatombe provocada por acidentes naturais ou causada pelo homem, é que merece atenção especial no contexto das nossas reflexões inspiradas na Encíclica. Não a possível colisão de um meteoro gigante como aconteceu no Jurássico, levando à extinção dos dinossauros, mas a espoliação desenfreada dos recursos naturais. Não é necessário insistir de novo no risco de um desequilíbrio irrecuperável, ou só recuperável da biosfera, no decurso de dezenas e centenas de milhares de anos. Esse é o fator que de momento faz balançar a corda estendida sobre o abismo e a humanidade equilibrando-se nela comprometendo seriamente o êxito da travessia.
Vale o  alerta de Edward Wilson que estamos espremidos num gargalo que pode evoluir para um beco sem saída, na suposição de não se tomarem providências para desacelerar significativamente a agressão à natureza.

Nesse processo todo e nas circunstâncias em que ocorre, a espécie humana, apesar dos pesares, não deixa de ser um fenômeno único, poderíamos dizer o “Leitmotiv” da sinfonia que confere sentido e razão de ser à harmonia da natureza. Dobzhansky como cientista aprofundou essa realidade ao definir a singularidade da espécie humana inserido no conjunto da natureza. A  cultura não se transmite pelas células sexuais e, portanto, não pelos genes, mas individualmente adquirida por cada pessoa, pela convivência com pais, irmãos, vizinhos, seu entorno social, a tradição oral e escrita ou perpetuada de qualquer outra forma. A fase decisiva na transmissão da cultura é na infância e, num sentido mais amplo, a socialização começa no nascimento e estende-se até a morte. A transmissão da cultura acontece independente da identidade étnica e, por isso, somos todos, de alguma forma, herdeiros tanto dos personagens proeminentes da história quanto dos protagonistas anônimos das conquistas culturais do remoto paleolítico, até hoje. A cultura evoluiu e continua evoluindo como os genes, porém, acionada não por mecanismos biológicos, mas mecanismos e leis próprias. A evolução biológica e evolução cultural são fenômenos análogos e não homólogos, por isso mesmo um deles não pode ser reduzido ao outro. Esse reducionismo espalhou uma grande confusão entre os cientistas, historiadores, sociólogos e políticos. Transformada em ideologia política, serviu de base para desqualificar raças supostamente inferiores geneticamente e por isso incapazes de ascender em direção ao “super-homem” imaginado por Nietzsche. O exemplo em cultura pura dessa maneira de pensar, foi o nacional-socialismo que elegeu a “raça ariana” como predestinada a realizar essa façanha e desqualificar todas as demais como inferiores de merecedoras de extermínio. De qualquer forma, essa confusão reina em grau mais ou menos acentuado onde quer que se pratica a discriminação argumentando com “a raça”. Essa confusão é um fenômeno que perpassa a história da humanidade no sentido tanto sincrônico quanto diacrônico. Onde quer que tenham convivido raças  humanas de cores, estatura e compleição física diferentes, o racismo esteve e está presente. Seria, portanto um processo homólogo e reducionista que considera a cultura na sua essência condicionada pelo DNA como a cor da pele ou as papilas dos  dedos. Um exemplo óbvio desmentindo essa tese, temos observando nos últimos séculos em todos  os setores da atividade humana.  Chama a atenção ao fato de que “milhões de trabalhadores que na atualidade manejam máquinas complicadas, são filhos e netos de camponeses e lavradores que apenas sabiam cultivar a terra. Para essa mudança, certamente, não foi necessário esperar por mutações genéticas para transformar camponeses em engenheiros. (Cf. Dobzhansky, 1969, p. 154)

Com essa colocação o nosso cientista ensina que a ciência somente então tem sentido quando ajuda o homem a compreender-se a si mesmo. E esse compreender-se não implica apenas na compreensão da sua identidade como espécie taxonômica, mas em resposta para todas dimensões da natureza humana. Para a primeira parte da questão podemos aceitar tranquilamente que a ciência tem respostas, senão definitivas, pelo menos satisfatórias. Enumeram-se na linha daquelas que explicam a origem e evolução das espécies. Mas, no caso do homem, ficam em aberto perguntas para as quais o potencial das ferramentas científicas é insuficiente embora indispensável. Em outros momentos já refletimos sobre essas intrigantes perguntas. Rambo resumiu num conceito o tamanho do desafio posto para as ciências naturais e demais áreas do conhecimento, isto é, explicar e entender em toda sua dimensão “o humano no homem” – “die Menschlichkeit”, como ele a resumiu numa única palavra. A pergunta a ser respondida, portanto, resume-se em dar uma resposta satisfatória para o que significa o “humano no homem”.

Pelos dados de que dispomos, a natureza humana manteve-se inalterada desde que o homem se fez homem e com ela o “humano – die Menschlichkeit”. Ela se expressa nos mesmos medos, nos mesmos temores,  nas mesmas esperanças, nas mesmas alegrias, nas mesmas perguntas existenciais, ao pedir  respostas pelo sentido da própria existência: donde viemos, porque estamos aqui e porque somos assim e para onde vamos? Somam-se a elas os questionamentos pelo como funciona  natureza e porque ela é assim, a razão de ser do universo, da existência ou não de vida depois da morte, do lugar ou não lugar de Deus, das divindades, dos bons e maus espíritos, que permeiam a concepção, melhor, a cosmovisão de todos os povos e culturas. Esses elementos por comporem o “humano”, vem intrigando os homens de todos os tempos e de todas as culturas e civilizações. Com essa matéria prima, cada povo e cada indivíduo procuraram e procuram resposta nos seu mundo ambiente singular, responderem às questões a que nos acabamos de referir. Não é uma tarefa fácil. A complexidade do desafio é de tal ordem que a sua solução só é possível quando enfrentado com métodos e instrumentos capazes de identificar as notas e os acordes dessa peça e, principalmente, como interagem para resultar numa sinfonia harmônica. Parece evidente que os métodos convencionais, o analítico indutivo e o o sintético dedutivo, não conseguem dar conta para identificar e explicar o que é “o humano” – “die Menschlichkeit”. Segundo a opinião de Alfonso Borrero, esses métodos são chamados para conferir mais segurança e maior credibilidade para o conhecimento baseado na intuição e na percepção sensorial, numa fase da história como a atual na qual, por assim dizer, exige-se o “preto no branco”, como selo de validade para que algo possa ser chamado de científico e/ou racionalmente aceitável.

A ciência apenas possui então valor quando cultivar quando o cientista tem de humano (Menschlichkeit), quando compreendida e praticada a partir do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge  à grande maioria dos pesquisadores atuais. A ciência praticada como deve ser  é uma recriação do mundo, semelhante a de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo, 1994)

Sem entrar em maiores detalhes, esses parecem ser, em grandes linhas, os  elementos que fazem com que o humano no homem seja de fato “humano” – “Menschlich”. Partindo desse pressuposto, é também nesses cenário que uma reflexão interdisciplinar isenta, honesta e séria tem condições de frutificar. Deixando de lado preconceitos, idiossincracias, radicalizações, egoísmos e outras atitudes que impedem o diálogo, fica o convite para um encontro, uma confraternização de todas as áreas do conhecimento no cenário de interesse comum: o homem, a sua identidade, a sua razão de ser e a sua missão como figura central da Criação como o concebeu Wilson na sua perspectiva de “humanista secular”, de um lado, e  Balduino Rambo que parte do pressuposto que a natureza foi de alguma forma criada por Deus. Tanto para o primeiro, quanto para o segundo, quanto para Francis Collins, Theodosius Dobzhansky e tantos outros, a compreensão do universo e da natureza só então faz sentido, quando, direta ou indiretamente, cria as condições para que a espécie humana se  conheça  a si mesmo, se aperfeiçoe e se realize sempre mais,  corporal e espiritualmente.

Tirando as conclusões lógicas do que pretendemos entender com as afirmações que acabamos de fazer, parece indiscutível que a realização das potencialidades físicas e espirituais do homem é diretamente proporcional à qualidade ou a degradação do meio ambiente em que vive. Sendo assim, os recursos naturais devem estar, em primeiro lugar disponíveis a todos indistintamente; o equilíbrio climático é uma questão que interessa a todos; a destruição dos ecossistemas naturais vem a ser uma ameaça de extinção de milhares de espécies de animais e vegetais; o desperdício  da água potável, o uso irracional do solo, de produtos químicos, pesticidas e outros artifícios, comprometem a médio e longo prazo, a sobrevivência de povos inteiros, não descartando a da espécie humana na sua totalidade. Resumindo: as ciências naturais, as ciências do espírito, as ciências humanas, as letras e artes, têm a sua razão de ser como caminhos, aproximações, cada uma à sua maneira, para a compreensão, a promoção e a realização do “Humano no Homem” – “Die Menschlichkeit”. Sendo assim os diversos campos do conhecimento encontram-se em território comum e têm a sua justificativa ao se nortearem pela “ética natural”.  Parafraseando Kant, duas realidades deixam os cientistas, os filósofos, os humanistas, os artistas e, de modo especial, as pessoas comuns, admirados, pensativos e perplexos: o mundo lá fora que lhes garante o alimento para o corpo e o espírito e a lei moral cá dentro que os faz  distinguir  o bem do mal, o que é certo e errado e, ao mesmo tempo, a liberdade de escolher entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Ou ainda a sentença de Einstein: A Religião sem a Ciência é cega e a Ciência sem a Religião é manca.




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