REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 68


Voltando à metáfora de Nietzsche da corda estendida sobre o abismo é lícito concluir que a humanidade, como espécie biológica, ainda não concluiu a  travessia sobre o abismo. Fica a pergunta: Será que logrará chegará são e salva na outra margem, ou seu destino é precipitar-se do alto e terminar com sua história truncada no meio da travessia. Na verdade, três são os desfechos possíveis. Ou a evolução termina no super-homem entendido aqui como a realização plena do  “humano no homem”; uma hecatombe fora do comum provocada pelo próprio homem ou por acontecimentos naturais, rompem a corda e a humanidade termina no fundo do abismo; ou a evolução encontra condições para continuar normalmente sua marcha até esgotar todo o seu potencial para avançar, e a biosfera, e com ela, a espécie humana apagam-se  como  uma vela que esgotou a cera que a alimentou. Não faz sentido apostar em um desses desfechos pois, em última análise não interfere na essência da natureza humana e sua relação com a natureza. O próprio super-homem de Nietzsche não seria uma nova espécie de homens, mas a conquista de um novo patamar previsto no curso normal da evolução. Entre essas alternativas, a segunda, uma hecatombe provocada por acidentes naturais ou causada pelo homem, é que merece atenção especial no contexto das nossas reflexões inspiradas na Encíclica. Não a possível colisão de um meteoro gigante como aconteceu no Jurássico, levando à extinção dos dinossauros, mas a espoliação desenfreada dos recursos naturais. Não é necessário insistir de novo no risco de um desequilíbrio irrecuperável, ou só recuperável da biosfera, no decurso de dezenas e centenas de milhares de anos. Esse é o fator que de momento faz balançar a corda estendida sobre o abismo e a humanidade equilibrando-se nela comprometendo seriamente o êxito da travessia.
Vale o  alerta de Edward Wilson que estamos espremidos num gargalo que pode evoluir para um beco sem saída, na suposição de não se tomarem providências para desacelerar significativamente a agressão à natureza.

Nesse processo todo e nas circunstâncias em que ocorre, a espécie humana, apesar dos pesares, não deixa de ser um fenômeno único, poderíamos dizer o “Leitmotiv” da sinfonia que confere sentido e razão de ser à harmonia da natureza. Dobzhansky como cientista aprofundou essa realidade ao definir a singularidade da espécie humana inserido no conjunto da natureza. A  cultura não se transmite pelas células sexuais e, portanto, não pelos genes, mas individualmente adquirida por cada pessoa, pela convivência com pais, irmãos, vizinhos, seu entorno social, a tradição oral e escrita ou perpetuada de qualquer outra forma. A fase decisiva na transmissão da cultura é na infância e, num sentido mais amplo, a socialização começa no nascimento e estende-se até a morte. A transmissão da cultura acontece independente da identidade étnica e, por isso, somos todos, de alguma forma, herdeiros tanto dos personagens proeminentes da história quanto dos protagonistas anônimos das conquistas culturais do remoto paleolítico, até hoje. A cultura evoluiu e continua evoluindo como os genes, porém, acionada não por mecanismos biológicos, mas mecanismos e leis próprias. A evolução biológica e evolução cultural são fenômenos análogos e não homólogos, por isso mesmo um deles não pode ser reduzido ao outro. Esse reducionismo espalhou uma grande confusão entre os cientistas, historiadores, sociólogos e políticos. Transformada em ideologia política, serviu de base para desqualificar raças supostamente inferiores geneticamente e por isso incapazes de ascender em direção ao “super-homem” imaginado por Nietzsche. O exemplo em cultura pura dessa maneira de pensar, foi o nacional-socialismo que elegeu a “raça ariana” como predestinada a realizar essa façanha e desqualificar todas as demais como inferiores de merecedoras de extermínio. De qualquer forma, essa confusão reina em grau mais ou menos acentuado onde quer que se pratica a discriminação argumentando com “a raça”. Essa confusão é um fenômeno que perpassa a história da humanidade no sentido tanto sincrônico quanto diacrônico. Onde quer que tenham convivido raças  humanas de cores, estatura e compleição física diferentes, o racismo esteve e está presente. Seria, portanto um processo homólogo e reducionista que considera a cultura na sua essência condicionada pelo DNA como a cor da pele ou as papilas dos  dedos. Um exemplo óbvio desmentindo essa tese, temos observando nos últimos séculos em todos  os setores da atividade humana.  Chama a atenção ao fato de que “milhões de trabalhadores que na atualidade manejam máquinas complicadas, são filhos e netos de camponeses e lavradores que apenas sabiam cultivar a terra. Para essa mudança, certamente, não foi necessário esperar por mutações genéticas para transformar camponeses em engenheiros. (Cf. Dobzhansky, 1969, p. 154)

Com essa colocação o nosso cientista ensina que a ciência somente então tem sentido quando ajuda o homem a compreender-se a si mesmo. E esse compreender-se não implica apenas na compreensão da sua identidade como espécie taxonômica, mas em resposta para todas dimensões da natureza humana. Para a primeira parte da questão podemos aceitar tranquilamente que a ciência tem respostas, senão definitivas, pelo menos satisfatórias. Enumeram-se na linha daquelas que explicam a origem e evolução das espécies. Mas, no caso do homem, ficam em aberto perguntas para as quais o potencial das ferramentas científicas é insuficiente embora indispensável. Em outros momentos já refletimos sobre essas intrigantes perguntas. Rambo resumiu num conceito o tamanho do desafio posto para as ciências naturais e demais áreas do conhecimento, isto é, explicar e entender em toda sua dimensão “o humano no homem” – “die Menschlichkeit”, como ele a resumiu numa única palavra. A pergunta a ser respondida, portanto, resume-se em dar uma resposta satisfatória para o que significa o “humano no homem”.

Pelos dados de que dispomos, a natureza humana manteve-se inalterada desde que o homem se fez homem e com ela o “humano – die Menschlichkeit”. Ela se expressa nos mesmos medos, nos mesmos temores,  nas mesmas esperanças, nas mesmas alegrias, nas mesmas perguntas existenciais, ao pedir  respostas pelo sentido da própria existência: donde viemos, porque estamos aqui e porque somos assim e para onde vamos? Somam-se a elas os questionamentos pelo como funciona  natureza e porque ela é assim, a razão de ser do universo, da existência ou não de vida depois da morte, do lugar ou não lugar de Deus, das divindades, dos bons e maus espíritos, que permeiam a concepção, melhor, a cosmovisão de todos os povos e culturas. Esses elementos por comporem o “humano”, vem intrigando os homens de todos os tempos e de todas as culturas e civilizações. Com essa matéria prima, cada povo e cada indivíduo procuraram e procuram resposta nos seu mundo ambiente singular, responderem às questões a que nos acabamos de referir. Não é uma tarefa fácil. A complexidade do desafio é de tal ordem que a sua solução só é possível quando enfrentado com métodos e instrumentos capazes de identificar as notas e os acordes dessa peça e, principalmente, como interagem para resultar numa sinfonia harmônica. Parece evidente que os métodos convencionais, o analítico indutivo e o o sintético dedutivo, não conseguem dar conta para identificar e explicar o que é “o humano” – “die Menschlichkeit”. Segundo a opinião de Alfonso Borrero, esses métodos são chamados para conferir mais segurança e maior credibilidade para o conhecimento baseado na intuição e na percepção sensorial, numa fase da história como a atual na qual, por assim dizer, exige-se o “preto no branco”, como selo de validade para que algo possa ser chamado de científico e/ou racionalmente aceitável.

A ciência apenas possui então valor quando cultivar quando o cientista tem de humano (Menschlichkeit), quando compreendida e praticada a partir do todo. Pressupõe isso um treinamento escolar geral voltado para o todo – coisa que foge  à grande maioria dos pesquisadores atuais. A ciência praticada como deve ser  é uma recriação do mundo, semelhante a de Deus, dando assim em culto divino. (Rambo, 1994)

Sem entrar em maiores detalhes, esses parecem ser, em grandes linhas, os  elementos que fazem com que o humano no homem seja de fato “humano” – “Menschlich”. Partindo desse pressuposto, é também nesses cenário que uma reflexão interdisciplinar isenta, honesta e séria tem condições de frutificar. Deixando de lado preconceitos, idiossincracias, radicalizações, egoísmos e outras atitudes que impedem o diálogo, fica o convite para um encontro, uma confraternização de todas as áreas do conhecimento no cenário de interesse comum: o homem, a sua identidade, a sua razão de ser e a sua missão como figura central da Criação como o concebeu Wilson na sua perspectiva de “humanista secular”, de um lado, e  Balduino Rambo que parte do pressuposto que a natureza foi de alguma forma criada por Deus. Tanto para o primeiro, quanto para o segundo, quanto para Francis Collins, Theodosius Dobzhansky e tantos outros, a compreensão do universo e da natureza só então faz sentido, quando, direta ou indiretamente, cria as condições para que a espécie humana se  conheça  a si mesmo, se aperfeiçoe e se realize sempre mais,  corporal e espiritualmente.

Tirando as conclusões lógicas do que pretendemos entender com as afirmações que acabamos de fazer, parece indiscutível que a realização das potencialidades físicas e espirituais do homem é diretamente proporcional à qualidade ou a degradação do meio ambiente em que vive. Sendo assim, os recursos naturais devem estar, em primeiro lugar disponíveis a todos indistintamente; o equilíbrio climático é uma questão que interessa a todos; a destruição dos ecossistemas naturais vem a ser uma ameaça de extinção de milhares de espécies de animais e vegetais; o desperdício  da água potável, o uso irracional do solo, de produtos químicos, pesticidas e outros artifícios, comprometem a médio e longo prazo, a sobrevivência de povos inteiros, não descartando a da espécie humana na sua totalidade. Resumindo: as ciências naturais, as ciências do espírito, as ciências humanas, as letras e artes, têm a sua razão de ser como caminhos, aproximações, cada uma à sua maneira, para a compreensão, a promoção e a realização do “Humano no Homem” – “Die Menschlichkeit”. Sendo assim os diversos campos do conhecimento encontram-se em território comum e têm a sua justificativa ao se nortearem pela “ética natural”.  Parafraseando Kant, duas realidades deixam os cientistas, os filósofos, os humanistas, os artistas e, de modo especial, as pessoas comuns, admirados, pensativos e perplexos: o mundo lá fora que lhes garante o alimento para o corpo e o espírito e a lei moral cá dentro que os faz  distinguir  o bem do mal, o que é certo e errado e, ao mesmo tempo, a liberdade de escolher entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Ou ainda a sentença de Einstein: A Religião sem a Ciência é cega e a Ciência sem a Religião é manca.




REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 67

O primeiro nome que se destaca vem a ser Thodosius Dobzhansky, considerado como um dos pais da genética ao formular  com outros geneticistas as bases científicas e metodológicas dessa  especialidade que vem conquistando cada vez mais importância como área de pesquisa pura e sua aplicabilidade prática como na medicina, na manipulação genética de plantas e animais etc. A obra de Dobzhansky que escolhemos como base para ilustrarmos a forma como ele encara o problema do “porque e do como” fazer ciência, partindo dos resultados de sua especialidade, leva como título na tradução para o espanhol: Herencia e Naturaleza del Hombre, publicado em 1969.

No prefácio dessa obra o autor chama a atenção à gigantesca expansão da atividade científica. O número de cientistas cresce proporcionalmente mais do que a população mundial. Essa situação leva a uma série de consequências importantes. Uma delas é a especialização crescente no mesmo ritmo em que se multiplicam os cientistas. Com isso, abrem-se novas frentes e sempre mais especializações. Resulta daí que hoje é simplesmente impossível um cientista só abarcar com alguma  profundidade, sequer os conhecimento gerados em sua área de interesse, como a botânica, a zoologia, a geologia e as demais. O desmonte dos objetos chega a extremos tais que já não têm mais interesse e utilidade, a não ser para o próprio especialista. Um segundo fenômeno que corre paralelo a esse quadro vem a ser os cientistas avançando na contramão do processo de especialização levado ao extremo. São aqueles se preocupam  encaixar os dados isolados num todo, num sistema, ou se preferirmos num síntese. À dinâmica centrífuga própria da especialização pretende-se somar algo de útil ao conhecimento como um todo. Ela precisa ser temperada com a sua antípoda, a dinâmica centrípeda em direção à síntese dos resultados das pesquisas. Acontece que, quanto maior for o volume de informações saídas dos laboratórios, tanto mais trabalhoso será reuni-los numa síntese. Cientistas especializados e   sintetizadores costumam ser personalidades que, pela própria natureza da sua postura intelectual, correm o perigo de serem “medíocres” tanto como cientistas quanto como sintetizadores. No plano ideal, porém, todo cientista deveria ser um especialista e um sintetizador. Trata-se, entretanto, de uma façanha pouco comum, mas não impossível. Quem logra subir a esse nível já não é mais um simples conhecedor, um “Kenner” como diriam os alemães, mas um sábio, um “Weise”.

O cientista que alcançou  esse  patamar corre o sério risco de ser desqualificado como tal. Para os pesquisadores especializados, o esforço na análise aliada à preocupação pela síntese exige o recurso a conceitos, a um discurso e, de modo especial, a métodos, que causam estranheza  ao especialista. No plano metodológico, vale-se da intuição e ou da percepção sensorial, da sabedoria popular para preencher as lacunas e responder perguntas que os dados objetivos dos laboratórios, das tabelas estatísticas ou dos modelos matemáticos deixaram em aberto. Com a singularidade com que constrói a sua concepção integradora, holística do conhecer as realidades concretas, o “sábio” naturalista vira poeta, artista e porque não, um místico. A apreciação da harmonia de uma paisagem, o mistério do silêncio de uma floresta, o épico de uma tempestade, o assustador de um abismo põem em ebulição as emoções mais profundas da alma  num linguajar bem diverso daquele, por exemplo, que é próprio de uma descrição taxonômica de plantas e animais. Em todos  os autênticos “sábios” (Weise) nota-se essa peculiaridade independente da sua especialidade como cientista. Por se valerem de recursos literários que fogem do padrão enxuto, despido e esquelético ao descrever espécies e gêneros, montar tabelas  estatísticas ou descrever processos físicos, não raro são desqualificados por seus pares que apostam todas as fichas no rigor dos métodos científicos e apresentam os resultados numa linguagem que se aproxima de um código secreto, decifrável  somente por iniciados. Para eles, um Balduino Rambo, depois de coletar durante um dia todo amostras de fanerógamos, descansando na boca do canyon do Fortaleza ou do Taimbezinho,  intuindo  que “Alguém mora nesses abismos e Alguém vigia nessas torres de observação”, não passa de um romântico alienado. Para seus críticos, a ciência que faz não oferece a credibilidade  dos dados objetivos comprovados “preto no branco”, pelos métodos e as ferramentas da análise empírica. A obra de Francis Collins, “A Linguagem de Deus”, e a de Edward Wilson, “A Criação – como salvar a vida na terra”, são textos que alternam  ou até mesclam dados científicos com divagações  épicas, românticas, líricas e até místicas. A grandiosa unidade na complexidade da Natureza e do Homem, de Teilhard de Chardin, segue  a mesma linha e sofre a mesma restrição imputada a seu irmão de ordem religiosa, há pouco citado.

O que é permitido concluir do que se acaba de referir? Dobzhansky oferece uma resposta a partir da sua especialidade de geneticista, válida, na sua essência,  para os cientistas de qualquer uma das áreas das Ciências Naturais. Ao fazer a apresentação do seu livro “A Herança e a Natureza Humana” chama a atenção ao fato de que a obra é fruto da série “Holiday Science Lektures”, patrocinada pela “Sociedade Americana para o  Progresso da Ciência” nos anos de 1963 e 1964. O objetivo da série de estudos e reflexões foi assim resumido: “Ampliar os horizontes científicos do público e compartilhar com ele uma parte da emoção e inspiração do esforço científico”.

Dos numerosos avanços da ciência, a ciência da hereditariedade é dos mais impressionantes. Evidentemente a genética não inventou uma nova superbomba, nem consegue competir com a sensação romântica proporcionada pelas viagens interplanetárias. O interesse e a importância são definidos  por outras razões. Há mais de dois milênios os sábios gregos descobriram que “o conhecer-se a si mesmo” é a base de toda a sabedoria. Talvez a principal  finalidade da genética, biologia e da ciência em geral – ou pelo menos um deles – consiste em ajudar o homem a compreender-se a si mesmo e tomar consciência  do seu lugar no universo. (Dobzhansky, 1969, p. 11)

Os seres humanos além de formar uma espécie taxonômica com as características comuns que permitem sua classificação nessa categoria zoológica, como as demais apresenta, ao mesmo tempo uma variedade individual que vai  ao extremo. Não há duas pessoas idênticas. Desde que foi constatado que as impressões digitais são provas de identificação, até hoje não há notícia da coincidência no desenho das papilas entre duas pessoas, tanto assim que continuam sendo usadas como prova conclusiva da identidade. Nem mesmo os gêmeos idênticos são de fato idênticos, são, isso sim, menos diferentes. Dobzhansky chama a atenção ao fato de que por mais parecidos que pareçam entre si os indivíduos de uma espécie, uma observação mais atenta mostra que também entre os animais e plantas, há traços que os identificam como indivíduos. A resposta deve ser procurada na combinação dos efeitos da herança genética e a influência do meio ambiente  em que alguém se encontra. “Uma pessoa qualquer, com todas as suas características físicas, mentais e culturais é produto da interação entre a natureza e alimentação, hereditariedade e ambiente”. (Dobzhansky, 1969, p. 14). Sendo assim, tanto o determinismo genético quanto o determinismo ambiental, levados ao exagero, distorcem o que de fato acontece com o homem e, por extensão, com os animais e as plantas. No caso do homem, soma-se à base genética e à influência do meio geográfico, as características culturais com todos os seus desdobramentos. Conclui-se daí que as incontáveis modalidades das condições ambientais e as condições culturais colaboram com outras tantas modificações  nos indivíduos, ressalvado o potencial genético de cada integrante de uma determinada espécie.  “Para onde vai a humanidade” – este é o título do último capítulo do livro de Dobzhansky, oferece a seguinte reflexão:

A ciência tem que ser antropocêntrica, o que significa ter o homem como referência. Algumas vezes define-se a ciência básica, fundamental e teórica, como método para compreender o  mundo. A ciência prática ou a tecnologia é um método para transformar o mundo em função  da vontade e as aspirações do homem. É perfeitamente razoável que o conhecimento do mundo seja útil, melhor indispensável, quais as mudanças a serem efetuadas,  como fazê-las, para que beneficiem a humanidade. Não há dúvida de que a inter-relação e a ciência básica deve ser interpretada de modo amplo. O conhecimento das partículas inter-atômicas dos átomos e moléculas, organismos inferiores e superiores, das montanhas e oceanos, das planícies, sóis e galáxias, ajuda ao ser humano no seu esforço de compreender-se a si mesmo  e o seu lugar no universo. Quem é o homem, donde vem e para onde vai? É questionável que a ciência por si só esteja em condições de responder definitivamente essas interrogações; certamente as melhores inteligências seriam impotentes diante delas sem dispor de conhecimentos científicos. (Dozhansky, 1969, p. 150)

A essa reflexão o cientista acrescentou os versos do poeta Omar Khayyam que viveu há 8 séculos passados e concentrou em poucas palavras a problemática em questão: “Chegamos a este mundo sem saber porque; nem de onde, queiras ou não, como a água flui; e partimos dele como o vento do deserto, para onde não sei, queiras ou não”. (cf. Dobzhansky, 1969, p. 151). Ao poeta faz sentido acrescentar a opinião do filósofo Nietzsche sobre o “enigma humano”. “O ser humano é uma corda estendida entre os animais e o super-homem, uma corda estendida sobre um abismo” (cf. Dozhansky, 1969, p. 151).  Não consta que Darwin, assim como muitos outros cientistas, presumivelmente a maioria, tivesse  conhecimento do poeta árabe, muito menos nele se inspirado. O fato é que  a ciência e os cientistas estão direta ou indiretamente comprometidos em achar respostas para as perguntas formuladas por Omar Khayyam.  Sem dívida, nos últimos dois séculos progrediu-se muito nessa direção. Nos laboratórios, nas pesquisas de campo, observando o acontecer da natureza na sua prodigiosa complexidade, abriram milhares de caminhos e trilhas, sonhando em contribuir para sempre mais novas e atualizadas respostas, para as eternas e velhas perguntas sobre “o como”, “o porque” – “o para que” – e “o para onde”, da existência do homem e a natureza da qual faz parte ontológica.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 66

Nas páginas que encerram o capítulo III a vai às raízes mais profundas da questão ou, se preferirmos, da crise ecológica em que a humanidade se debate nesse começo do terceiro milênio. Começa apontando como a causa das causas dessa situação a forma como a humanidade nos últimos três séculos consolidou um paradigma de relacionamento do homem com a Natureza, “a casa” em que passa a sua existência individual e da espécie como um todo. Mais acima insistimos no fato de a espécie humana está inserida ontologicamente no universo e na natureza. Também já foi refletido sobre o que significa isso e em que implica essa relação do homem com sua “mãe e pátria”. Não custa chamar mais uma vez a  atenção ao fato de que, em sendo esse pressuposto verdadeiro, o homem depende dos recursos naturais, para viver, sobreviver ou perecer, condicionado pela abundância, penúria e acesso aos mesmos. Portanto, a relação do homem com o meio ambiente, a exploração dos seus recursos e sua justa disponibilização a todos os seres humanos indistintamente, tem a sua razão de ser  num postulado ético. Como o homem, porém, dispõe de liberdade para optar por um outro modelo de lidar com a Natureza, ele dispõe de autonomia para escolher paradigmas compatíveis com os postulados éticos que deveriam orientar o aproveitamento dos recursos naturais, ou optar por um que os ignora e/ou viola flagrantemente. O documento pontifício chama a atenção que o modelo que, com o avanço da Ciência e Tecnologia delineou e impôs como hegemônico um paradigma comandado por razões geopolíticas, geoeconômicas e geoestratégicas. Considerações de ordem ética pouco ou nada decidem. O que importa são outros parâmetros que terminam configurando um panorama comandado por interesses os mais variados. Todos eles têm na sua base e motivação alguma forma de poder. Instala-se assim uma antiética em que os fins justificam os meios. Referindo-se a essa realidade a Encíclica caracterizou essa realidade.

O   problema fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. (Laudato si, 106)

O que acontece, portanto, é que com o avanço da Ciência e Tecnologia, a humanidade foi-se municiando com ferramentas cada vez mais eficientes e diversificadas para lidar com o meio ambiente e apropriar-se dos recursos que oferece. As consequências desse poder que o avanço tecnológico põe nas mãos de quem o detém, são muitas e o poder de transformação da cosmovisão que se tem da natureza, são profundos e de alcance universal. Seus benefícios e/ou malefícios, socializados pelos meios de comunicação, repercutem nos grotões mais mais distantes e isolados do planeta. O motor que impulsiona todo esse processo de inversão da cosmovisão vem a ser a sensação de um poder crescente implícito na própria natureza das ferramentas das quais o homem vai se apropriando. O poder vem acompanhado da consciência de superioridade associada à convicção de que a natureza não passa de um objeto a ser explorado. “É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação”. (Laudato si, 106). Perde-se a noção de que a espécie humana faz parte ontológica da própria natureza e como tal esta lhe garante a existência, a prosperidade ou o fracasso. Sendo assim a natureza não pode ser tratada como um objeto a ser simplesmente explorado, mas como uma parceira que oferece o alimento para suprir as necessidades materiais e os estímulos para desenvolver as potencialidades que fazem do ser humano um “humano” e não um antropoide mais ou menos evoluído.

Nada a opor, pelo contrário, são benvindas, senão indispensáveis para que o “motor” do progresso seja cada vez mais eficiente e abrangente. É preciso, porém, chamar a atenção para os riscos  e falácias que acompanham uma aposta cega na Ciência e Tecnologia. Mais acima já falamos sobre a advertência de Teilhard de Chardin ao ocupar-se com esse tema. Afirmando que todo o progresso dos últimos séculos deve ser creditado à Ciência e Tecnologia, conclui, porém, que é preciso não esquecer o lado negativo que ela carrega no seu bojo quando é mal entendida,  sua importância levada ao exagero e sua aplicação distorcida. Corre-se o risco de perder de vista ou de não dar a devida importância de que, penetrando cada vez mais fundo nos arcanos da Natureza, o desmonte de suas partes até as última minúcias, perde-se a noção do todo. Os cientistas desmontam a matéria até seus últimos componentes e muitos deles não se dão conta do significado e da importância das suas descobertas para o todo dos sistemas em que se encontram funcionalmente inseridos. Traduzindo para uma linguagem compreensível a qualquer pessoa, o cientista calcula exatamente quantas miligramas de gordura contem uma coxa de mosquito,  mas não tem a menor noção do que esse teor de gordura significa para  mosquito como ser vivo. Desmontam-se as realidades naturais como se se fossem máquinas e, ao terminar o trabalho flagra-se diante de uma pilha de peças não mais se dando conta que integravam um sistema no qual cada uma desempenhava uma função específica e complementar às muitas outras, garantindo o perfeito funcionamento da máquina como um todo.

Depois de chamar a atenção que o método científico e a grande maioria dos assim chamados “especialistas”, não se dão  conta de que o seu empenho em descobrir nos mínimos detalhes a estrutura e o funcionamento da Natureza, convence-os de que são seus senhores e donos. Pelo fato de suas descobertas e as tecnologias de que dispõem para tanto, abrem os caminhos e oferecem as ferramentas para o progresso, tratam as dádivas da natureza como objetos de pesquisa e fontes de matérias primas para os seus projetos. A distância entre eles e a natureza assim como o compromisso de explorá-la sem comprometer seu equilíbrio, aumenta na mesma proporção em que os cientistas aprofundam suas investigações. O sujeito distancia-se de tal forma do         do mundo que o rodeia que já não percebe mais que se acha inserido existencialmente nele e sua origem e evolução tem a mesma raiz ontológica. A Encíclica resumiu toda essa problemática ao caracterizá-la como segue.

É como que se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza, mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as possibilidades oferecidas pelas próprias coisas.; tratava-se de receber o que a realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão, tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a “espremê-lo” até o limite e para além do mesmo. Trata-se do falso pressuposto de que “existe uma quantidade ilimitada de energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente absorvidos. (Laudato si, 106)   


O panorama pintado pela Encíclica sugere uma série de reflexões sobre o real papel da Ciência e Tecnologia. Entre outras coloca-nos diante do desafio fundamental de dar uma resposta satisfatória para “0 porque e o para que” fazer Ciência e desenvolver Tecnologias cada mais mais abrangentes e eficientes? Seria impossível e o espaço não permite que aqui detalhemos como responderam e continuam respondendo a esse questionamento cientistas de referência mundial cada qual na sua especialidade.