Nas páginas que encerram o capítulo III a vai às
raízes mais profundas da questão ou, se preferirmos, da crise ecológica em que
a humanidade se debate nesse começo do terceiro milênio. Começa apontando como
a causa das causas dessa situação a forma como a humanidade nos últimos três
séculos consolidou um paradigma de relacionamento do homem com a Natureza, “a
casa” em que passa a sua existência individual e da espécie como um todo. Mais
acima insistimos no fato de a espécie humana está inserida ontologicamente no
universo e na natureza. Também já foi refletido sobre o que significa isso e em
que implica essa relação do homem com sua “mãe e pátria”. Não custa chamar mais
uma vez a atenção ao fato de que, em
sendo esse pressuposto verdadeiro, o homem depende dos recursos naturais, para
viver, sobreviver ou perecer, condicionado pela abundância, penúria e acesso
aos mesmos. Portanto, a relação do homem com o meio ambiente, a exploração dos
seus recursos e sua justa disponibilização a todos os seres humanos
indistintamente, tem a sua razão de ser
num postulado ético. Como o homem, porém, dispõe de liberdade para optar
por um outro modelo de lidar com a Natureza, ele dispõe de autonomia para escolher
paradigmas compatíveis com os postulados éticos que deveriam orientar o
aproveitamento dos recursos naturais, ou optar por um que os ignora e/ou viola
flagrantemente. O documento pontifício chama a atenção que o modelo que, com o
avanço da Ciência e Tecnologia delineou e impôs como hegemônico um paradigma
comandado por razões geopolíticas, geoeconômicas e geoestratégicas.
Considerações de ordem ética pouco ou nada decidem. O que importa são outros
parâmetros que terminam configurando um panorama comandado por interesses os
mais variados. Todos eles têm na sua base e motivação alguma forma de poder.
Instala-se assim uma antiética em que os fins justificam os meios. Referindo-se
a essa realidade a Encíclica caracterizou essa realidade.
O problema fundamental é outro e ainda mais
profundo: o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu
desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste
paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente no processo
lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora.
Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua
experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e
transformação. (Laudato si, 106)
O que acontece, portanto, é que com o avanço da
Ciência e Tecnologia, a humanidade foi-se municiando com ferramentas cada vez
mais eficientes e diversificadas para lidar com o meio ambiente e apropriar-se
dos recursos que oferece. As consequências desse poder que o avanço tecnológico
põe nas mãos de quem o detém, são muitas e o poder de transformação da
cosmovisão que se tem da natureza, são profundos e de alcance universal. Seus
benefícios e/ou malefícios, socializados pelos meios de comunicação, repercutem
nos grotões mais mais distantes e isolados do planeta. O motor que impulsiona
todo esse processo de inversão da cosmovisão vem a ser a sensação de um poder
crescente implícito na própria natureza das ferramentas das quais o homem vai
se apropriando. O poder vem acompanhado da consciência de superioridade
associada à convicção de que a natureza não passa de um objeto a ser explorado.
“É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente
disponível para a manipulação”. (Laudato si, 106). Perde-se a noção de que a
espécie humana faz parte ontológica da própria natureza e como tal esta lhe
garante a existência, a prosperidade ou o fracasso. Sendo assim a natureza não pode
ser tratada como um objeto a ser simplesmente explorado, mas como uma parceira
que oferece o alimento para suprir as necessidades materiais e os estímulos
para desenvolver as potencialidades que fazem do ser humano um “humano” e não um
antropoide mais ou menos evoluído.
Nada a opor, pelo contrário, são benvindas, senão
indispensáveis para que o “motor” do progresso seja cada vez mais eficiente e
abrangente. É preciso, porém, chamar a atenção para os riscos e falácias que acompanham uma aposta cega na
Ciência e Tecnologia. Mais acima já falamos sobre a advertência de Teilhard de
Chardin ao ocupar-se com esse tema. Afirmando que todo o progresso dos últimos
séculos deve ser creditado à Ciência e Tecnologia, conclui, porém, que é preciso
não esquecer o lado negativo que ela carrega no seu bojo quando é mal entendida,
sua importância levada ao exagero e sua
aplicação distorcida. Corre-se o risco de perder de vista ou de não dar a
devida importância de que, penetrando cada vez mais fundo nos arcanos da
Natureza, o desmonte de suas partes até as última minúcias, perde-se a noção do
todo. Os cientistas desmontam a matéria até seus últimos componentes e muitos
deles não se dão conta do significado e da importância das suas descobertas
para o todo dos sistemas em que se encontram funcionalmente inseridos.
Traduzindo para uma linguagem compreensível a qualquer pessoa, o cientista
calcula exatamente quantas miligramas de gordura contem uma coxa de
mosquito, mas não tem a menor noção do
que esse teor de gordura significa para
mosquito como ser vivo. Desmontam-se as realidades naturais como se se
fossem máquinas e, ao terminar o trabalho flagra-se diante de uma pilha de
peças não mais se dando conta que integravam um sistema no qual cada uma desempenhava
uma função específica e complementar às muitas outras, garantindo o perfeito
funcionamento da máquina como um todo.
Depois de chamar a atenção que o método científico
e a grande maioria dos assim chamados “especialistas”, não se dão conta de que o seu empenho em descobrir nos
mínimos detalhes a estrutura e o funcionamento da Natureza, convence-os de que
são seus senhores e donos. Pelo fato de suas descobertas e as tecnologias de
que dispõem para tanto, abrem os caminhos e oferecem as ferramentas para o
progresso, tratam as dádivas da natureza como objetos de pesquisa e fontes de
matérias primas para os seus projetos. A distância entre eles e a natureza
assim como o compromisso de explorá-la sem comprometer seu equilíbrio, aumenta
na mesma proporção em que os cientistas aprofundam suas investigações. O
sujeito distancia-se de tal forma do do
mundo que o rodeia que já não percebe mais que se acha inserido
existencialmente nele e sua origem e evolução tem a mesma raiz ontológica. A
Encíclica resumiu toda essa problemática ao caracterizá-la como segue.
É como que se o sujeito
tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a
manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza,
mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as
possibilidades oferecidas pelas próprias coisas.; tratava-se de receber o que a
realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que
interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana,
que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente.
Por isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão,
tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito
ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e
tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do
planeta, que leva a “espremê-lo” até o limite e para além do mesmo. Trata-se do
falso pressuposto de que “existe uma quantidade ilimitada de energia e de
recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de imediato e que
os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser facilmente
absorvidos. (Laudato si, 106)
O panorama pintado pela Encíclica sugere uma série
de reflexões sobre o real papel da Ciência e Tecnologia. Entre outras
coloca-nos diante do desafio fundamental de dar uma resposta satisfatória para “0 porque
e o para que” fazer Ciência e desenvolver Tecnologias cada mais mais
abrangentes e eficientes? Seria impossível e o espaço não permite que aqui detalhemos
como responderam e continuam respondendo a esse questionamento cientistas de
referência mundial cada qual na sua especialidade.