Não
há dúvida de que essas reflexões terminam por nos enfrentarmos com uma
problemática que merece atenção: a Ascese e a Moral. Trata-se de um desafio que
de um lado afeta os indivíduos e da outra organizações religiosas como ordens e
congregações, seitas, filosofias de vida, e por aí vai. Entram nessa linha os
extremos de iniciativa individual dos anacoretas que passavam isolados em
cavernas no deserto, em montanhas inacessíveis ou outros tipos de negação do
mundo, jejuando, rezando e impondo-se todo o tipo de mortificações corporais.
Não é nossa intenção fazer um juízo de valor sobre tais atitudes e modos de
passar a existência tratando seus corpos como se fossem bestas de carga que
precisam ser mantidas sob um regime de
negação daquilo para que a própria natureza os destinou.
O
capítulo mais complexo de avaliar refere-se ao emaranhado cipoal de regras,
diretrizes, filosofias e teologias, consolidadas em códigos, manuais, tratados
e outras formas de racionalização do comportamento das pessoas. Fique claro que
não estamos fustigando uma orientação sadia, um mostrar caminhos, fazer o papel
de guia sem violar ou anular a liberdade de optar. Uma orientação, seja no
plano material, seja no espiritual, nunca deveria esquecer que o que faz com que um humano seja
humano é a consciência do que é certo ou errado e, ao mesmo tempo, gozar da
liberdade de optar pelo certo ou o errado. Em outras palavras. Qualquer doutrina ou qualquer orientação que não tomar
em consideração esse pressuposto, agride o que distingue os humanos dos outros
seres vivos. Vale a pena relembrar a afirmação de Kant: “As duas coisas que
mais me impressionam são o firmamento estrelado lá fora e a lei moral cá
dentro”. E o filósofo da esperança, Ernst Bloch acrescenta: “Onde há liberdade
há possibilidades, onde existem possibilidades há esperança e onde há esperança
a harmonia na natureza é possível”. O Pe. Balduino Rambo resumiu com grande
precisão essa discussão numa reflexão anotada no diário escrito na visita a
Marburg, no dia 10 de julho de 1960.
A Ciência que tem como
objeto a Fé, chamada Teologia, e a doutrina que se ocupa com a piedade,
conhecida como nome de Ascese. Ambas espalharam uma interminável confusão entre
os homens e seu Deus. Sempre de novo percebe-se a tentativa de impor leis
gerais e fórmulas indecifráveis, onde a
natureza da coisa é a ausência de leis. Não estou contestando simplesmente toda
e qualquer legislação que se opõe à essência do divino, mas a rejeição das leis
racionalistas impostas pelo homem. Respeitemos essas leis e as entendamos até
certo ponto. Nenhuma mente, nem todas elas reunidas são capazes de abarcar todo
o seu sentido. Aproxima-se da fronteira com o Hybris[1]
no momento em que se pretende regulamentar com leis o relacionamento com Deus.
Apesar de dois mil anos de Revelação e apesar das elucubrações do homem, desde
que a terra existe, é sempre o mesmo e toda a soma do conhecimento humano,
mostrou-se um vaso pequeno demais para conter a incomensurável grandeza do
sentido contido no Mistério de Deus.
Enquanto a Ascese não
for uma expressão singela do dogma, da
lei moral e da razoabilidade, não passa de mais um conhecimento humano falível
e cheio de falhas. Também nos dias de hoje a tirania das opiniões é poderosa o
suficiente para torturar até a morte pessoas de sentimentos apurados e provocar
a revolta dos que não concordam. O tempo para as ordens religiosas na forma
atual, um dia terá passado. Não o heroísmo no serviço de Deus, mas o tempo em
que esse heroísmo era medido com a régua dos donos da piedade.
Deus é o eterno vivo. O
homem tende a transformar Deus num fóssil. Ele projeta a sua pequenez e
estreiteza de coração sobre a percepção que faz de Deus e se diverte como uma
criança quando essa representação corresponde de alguma forma à imagem que tem
de si próprio. Quem ousaria desencadear essa revolução que há muito está
madura.
Salvo
melhor juízo essa reflexão do Pe. Rambo abre o caminho para entender a “lógica”
de como lidar com o humano, com a
“Menschlikeit”, na sua autenticidade ontológica e as consequências quando
ocorrem distorções mais ou menos sérias e profundas na sua interpretação. A
sina da racionalização como critério maior para regulamentar a vida das pessoas
é a deformação das personalidades das pessoas ao ponto de reduzi-las a escravas
de códigos, manuais, rituais, prescrições
legais, etc., etc. Não passam de caricaturas de seres humanos condenados a formar
autênticos rebanhos, que impedem o livre desabrochar das potencialidades do
coração ou, se preferirmos, da alma. Em tais situações a pregação sobre a
liberdade dos filhos de Deus, não passa de um engodo. No momento em que se
engessa o comportamento com teses teológicas herméticas para garantir a
“ortodoxia da fé” e com cânones e regras que disciplinam e categorizam até as ultimas minúcias o quotidiano das
pessoas, violenta-se o que há de mais sagrado no ser humano: a liberdade de
optar pelo que lhe parece melhor para viver como “livre filho de Deus”,
orientado pela consciência do “certo e
errado” definido pela Lei Moral. Que
fique bem claro que não estamos propondo uma sociedade sem leis e regulamentos,
nem no plano religioso nem no civil. Qualquer tipo e qualquer tamanho de organização
requer regulamentação pois, o ser humano é um ente social por natureza e, por
isso tem compromisso com seus semelhantes.
Quando, porém, o disciplinamento, pela ascese no plano espiritual e
pelas leis e regulamentos no plano civil não permitem mais o espaço mínimo
indispensável para a autonomia das pessoas, deixam de ser instrumentos para se
tornarem fins. Em vez de servirem de instrumento de aperfeiçoamento dos
indivíduos e suas relações com os demais violam a liberdade das pessoas e
engessam o convívio humano. Numa situação dessas não sobra espaço para uma autêntica piedade, um usufruir pleno dos
bens oferecidos pela natureza, nem tão
pouco deliciar-se com a arte e emocionar-se com o belo inerente aos fenômenos
naturais, às paisagens e às criaturas mais “insignificantes” que as
habitam. Há mais de um século Nietzche
alertou para o lado perverso da tirania das leis, ao se referir ao Estado. Vale
também para as organizações religiosas. “Antigamente havia povos e rebanhos, não entre nós, irmãos. Entre
nós temos o Estado. Estado? O que vem a ser? Vamos lá. Abram bem os ouvidos
para escutar o que penso da morte dos povos. O Estado é o mais gélido de todos
os monstros. Mente com frieza. A mentira flui da sua boca: Eu, o Estado sou o
povo”. (Nietzsche, 1913, p. 61). No plano religioso, de modo especial no que
diz respeito à Ascese o excesso de regulamentação, codificação, estatística de
boas ações, contagem e medição de orações, vem acompanhado de outro fator de
risco. Os mecanismos de controle implícitos na regulamentação conferem poder
aos que os dominam e controlam. Sem
entrar em particularidades ou individualizações, este é um fenômeno mais ou menos explícito presente em
toda e qualquer organização, também no contexto das organizações religiosas, independente
da visão confessional que defendem. E é mais uma vez Nietzsche que alerta: “No
momento em que se chamam a si próprios de ‘bons e justos’, lembrem-se que não
lhes falta nada, a não ser o poder, para serem fariseus”. Nietzsche, 1913, p.
140). Um pouco mais adiante o filósofo insiste: “Não quero ser igualado e misturado com esses pregadores da
igualdade pois, os homens não são iguais”. (Nietzsche, 1913, p. 146)
Dando
mais um passo, essas reflexões nos levam a um outro efeito calamitoso da
tirania que mede tudo com a régua da racionalidade no plano civil e/ou
religioso ou pelas idiosincracias dos pregadores que se julgam donos da
verdade. Poderíamos classifica-lo como “efeito rebanho” resultado das pregações
da igualdade entre os seres humanos que pela sua própria natureza são
diferentes. Cada ser humano é uma individualidade única, não repetida e não
repetível. O provérbio da sabedoria popular que afirma que “depois de criar um
ser humano, Deus quebra imediatamente a
fôrma, para evitar uma réplica no futuro”, continua válido no sentido mais rigoroso do termo. Pelos
critérios aceitos para a classificação taxonômica clássica, todos os seres
humanos pertencem à mesma espécie, subdividida em numeráveis raças de cor,
estatura, e traços fisionômicos diversos, Mas, no fundo no fundo, as papilas
dos dedos e o DNA, por ex., demonstram a identidade dos vivos, dos mortos e
mesmo de restos fósseis de milhares de anos passados, que não se constatou até
hoje, uma perfeita identidade entre dois seres humanos contemporâneos ou de
períodos diferentes da história. É por esse motivo que a identificação pelas papilas digitais, onde
ainda é possível e hoje, principalmente, pelo DNA, são aceitos legalmente como
provas de identificação.
Como
no plano biológico a individualidade, a unicidade de cada ser humano,
verifica-se também na dimensão psicológica e espiritual. E é neste plano que
que os pregadores das doutrinas e ideologias que procuram degradar as pessoas a
mais uma ovelha do rebanho, ou mais um lobo da alcateia, cometem os crimes mais
deploráveis, privando o indivíduo da possibilidade desenvolver a dignidade na
sua unicidade. Este é, segundo Nietzsche
o crime cometido pelos pregadores da igualdade, entre os homens que não
são iguais. A essa filosofia política
subjaz a proposta de “sociedade sem classes” do marxismo, da sociedade dominada
pela “filosofia ou ideologia hegemônica” de Gramsci, a “mentira em cascata” de Goebels, a “Teoria
Crítica” da Escola de Frankfurt e por aí vai.
[1] Hybris
No seu conceito original grego significa tudo que passa da medida. – orgulho
exagerado – presunção – arrogância. O oposto da virtude.