REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 57


E concluindo o Cap. II da Encíclica o Papa Francisco chama a atenção a mais uma questão de não pouca importância no catolicismo e em outras religiões. Referimo-nos as assim chamadas posturas ascéticas em relação à natureza e suas dádivas. Originou-se toda uma complexa e discutível Teologia Ascética e Moral. Nas bibliotecas especializadas estantes e mais estantes exibem dezenas de compêndios e tratados  de ascética e moral. Dedicam-se a codificar e com isso racionalizar o comportamento das pessoas. Novamente a maldita racionalização imiscuindo-se num terreno que  pertence na sua essência ao coração, melhor talvez a consciência moral do certo e errado somada a liberdade de opção por um ou outro, inata no ser humano e não ao cérebro. A explicação que inúmeras formas de ascese praticadas por indivíduos ou  por agremiações, congregações e  ordens religiosas e apresentadas aos fiéis como caminho para a bem-aventurança, aproximam-se do desumano, para não dizer do sadismo e masoquismo. A sobriedade não pode desandar em demonização das dádivas da natureza que tornam a vida das pessoas prazerosa e gostosa de se viver. Foi essa mensagem que o Papa nos deixa quando  ensina:

Jesus vivia em plena harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: ‘Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?’ (Mt8,27). Não se apresentava como um asceta separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo, declarou: ‘Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: Aí está o glutão e bebedor de vinho’ (Mt11,19). Encontrava-se longe das filosofias que desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo da história, esses dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos, entrando diariamente em contato com a matéria. (Laudato si, 98).

Partindo do nosso pressuposto de que o homem encontra-se existencial ou ontologicamente inserido na natureza, é “Adam, nascido da terra”, Cristo assumindo a condição humana levava a vida como qualquer ser humano normal. Essa realidade fica explícita nas citações do evangelho de S. Mateus acima mencionadas. Cabe aqui uma breve reflexão sobre o lugar  das práticas de penitência comuns no cristianismo e não poucas outras correntes religiosas. Na sua essência podem ser classificadas em várias categorias, entre elas: a abstinência de determinados alimentos,  jejuns periódicos ou ocasionais, a abstenção de certas bebidas, a renúncia aos mais variados prazeres legítimos que a vida oferece, etc. Enquanto se mantiverem em nível que não prejudicam a saúde ou põem em risco a própria vida, nada a opor. Se bem entendidos e devidamente praticados podem ser considerados como louváveis  recursos pedagógicos para disciplinar o corpo e com isso melhorar a vida espiritual no sentido mais amplo. “Mens sana in corpore sano – uma mente sadia num corpo sadio”, ensinam os antigos romanos. Evidentemente uma greve de fome, por ex., pela razão que for, deixando sequelas para o resto da vida ou, em casos extremos levam à morte, não encontram justificativa de natureza alguma, nem moral, nem espiritual, nem ascética, nem política, nem outra qualquer.

Um outro capítulo relacionado com o tratamento do corpo engloba todas as práticas de esporte, disciplinamento, exercícios físicos e tantos outros, que têm como finalidade um corpo sadio que resulta também numa alma sadia, enfim, numa personalidade sadia, com a ressalva  que tudo aconteça dentro dos limites do razoável. Não há necessidade de insistir que o exagero em qualquer modalidade de exercício corporal, pode levar a danos irreversíveis inclusive levar à morte. Até aqui nos ocupamos com formas de lidar com o corpo que partem do princípio de que o corpo que abriga o espírito consiste num pressuposto que é passível de aperfeiçoamento para, desta maneira servir melhor ao espírito.

Acontece, porém, que para não poucas filosofias e teologias ascéticas e/ou morais, explícita ou implicitamente, o corpo é tido como um animal rebelde, uma besta  de carga, que precisa ser domado e mantido sob rédeas curtas, não poupando o chicote e as esporas. Com essa metáfora refiro-me às práticas de penitência que agridem fisicamente o corpo como silícios, flagelos e, em casos extremos, mutilações de órgãos, castração e outras, auto-infligidas ou aplicadas  por terceiros. Neste caso o próprio pressuposto peca pela base. Mascara a ideia de que entre o corpo físico e o  espírito e/ou a alma reina uma dualidade em que o corpo em última análise não passa de “um mal necessário” para que o espírito tenha condições de realizar-se na sua plenitude. Hans Driesch numa tentativa de explicar como funcionam os seres vivos, inclusive o homem, valeu-se da metáfora do navio comandado  por seu capitão. O que de fato importa que o navio não se desgarre do rumo para chegar ao porto pretendido é habilidade do capitão. O navio, o corpo é apenas seu instrumento. Ao capitão cabe a responsabilidade de mantê-lo na rota certa e corrigir os desvios. Num percurso  normal basta a vigilância somada a manobras de correção de rota. Em situações de emergência, porém, é preciso recorrer a intervenções mais drásticas para evitar desvios que impedem o navio chegar ao porto previsto. A proposta e Driesch teve uma aceitação entusiasmada da parte dos criacionistas da primeira metade do século XX. Parecia uma saída honrosa para os cientistas críticos da teoria de Darwin como também para os filósofos mais ligados à cosmologia e os teólogos e todas as suas áreas específicas, acuados  pelo  endurecimento da ortodoxia anti-modernista de Pio X e a consequente vigilância severa das autoridades eclesiásticas. Provavelmente sem querer, Driesch filósofo e cientista leigo e sem compromissos doutrinários, forneceu  combustível para moralistas e ascetas subirem o tom. Meu professor de Cosmologia, ainda na década de 1950, argumentava com Driesch para nos passar essa cosmovisão dualista. Os tempos passaram e hoje a teoria do eminente filósofo e biólogo, foi atropelada e arquivada nos museus do  tempo, de um lado pelo avanço das conquistas científicas e do outro, pela aproximação a partir de Pio XII,  e seus sucessores, das Ciências Naturais e Ciências do Espírito, em  busca de  um consenso que concebe o homem como uma unidade indissolúvel, na qual matéria e espírito se complementam ontologicamente.  Em sendo assim iniciativas e procedimentos que prejudicam ou aperfeiçoam a uma dimensão influem na outra na mesma proporção. E estamos de volta ao princípio da “mente sadia num corpo sadio” e invertendo a afirmação “o corpo sadio pressupõe uma mente sadia” é igualmente correta.

As considerações que acabamos de fazer levam a uma série de conclusões. Entre elas privilegiamos em primeiro lugar a total legitimidade, quando não obrigatoriedade, de usufruir as dádivas da natureza quando e enquanto são indispensáveis para a saúde física e mental e úteis para um relacionamento construtivo entre as pessoas. É neste particular que o Papa insiste na citação que registramos um pouco mais acima, fundamentada no evangelho de São Mateus. Entre muitas outras passagens dos evangelhos que registram o quotidiano de Jesus nas sua pregação da Boa Nova, lembramos ainda uma das reflexões da Encíclica.

Ele próprio vivia em contato permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra detinha-Se a contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a individuarerm, nas coisas, uma mensagem divina: “Levantai os olhos e vede os campos que estão doirados para a ceifa” (Jo 4, 35)
            
Da mesma forma como fazia suas pregações em contato com a natureza preparou seus discípulos caminhando pelas estradas e veredas da Terra Santa, ilustrando sua doutrina com metáforas inspiradas em plantas, animais e nas pessoas que moravam perto das veredas por que passava. O cenário escolhido para o Pai revela-lo como Seu Filho aos apóstolos mais chegados, não foi uma sinagoga ou templo em Jerusalém, mas o cume do Monte Tabor, rodeado pelo encanto e as belezas naturais próprias desse tipo de paisagem. Poderíamos enumerar outras muitas situações em que a natureza pura foi o cenário de suas mensagens., como a multiplicação dos pães, a pesca milagrosa, os 40 dias no deserto e outros. Tudo isso demonstra que os ensinamentos que formam os fundamentos do cristianismo foram anunciados em contato íntimo com a natureza e tornados compreensíveis aos ouvintes pelas mensagens que plantas, animais e paisagens naturais inspiravam.

Uma outra faceta que Jesus não foi um alienado excêntrico fica claro pelas relações diretas, senão íntimas, que cultivava com pessoas especiais que se tornaram paradigmáticas para demonstrar o “Seu Humano” em todos os momentos da sua vida. Convidado com Sua mãe para as bodas de Caná, não hesitou em aceitar o convite. Não se limitou em estar apenas presente, mas com a mãe Maria participou do banquete e quando a ela Lhe chamou a atenção que o vinho estava acabando, o que resultaria em constrangimento para o noivo, não hesitou em usar o seu poder divino e transformar água em vinho, e da melhor qualidade como observaram os outros convivas. Mais um exemplo. Como qualquer mortal cultivou amizades especiais com amigos e amigas escolhidas a dedo. Destacamos apenas o relacionamento com Lázaro e suas irmãs Marta e Madalena. Chorou como qualquer mortal quando a morte levou o amigo especial. Mas, compadecendo-se das irmãs, não teve dúvidas em recorrer ao poder divino de que dispunha, ressuscitou Lázaro, falecido e sepultado há três dias. Não se esquivou quando Madalena lhe lavou os pés e os secou com próprio cabelo além de passar bálsamo. Ouvindo Marta reclamar a ajuda de Madalena nas lides da casa aproveitou para mais um ensinamento. Não se deve exagerar no cuidado com as coisas terrenas para não negligenciar  as celestes. O inverso também é válido. O exagero nas coisas  espirituais prejudica, ou  até impede, o desempenho saudável do corpo que, por sua vez afeta a atividade espiritual. Por isso, “a mente  sadia num corpo também sadio”, deve ser a regra áurea que deveria orientar a atitude que qualquer pessoa deveria assumir perante “as coisas terrestres e as celestes” ou, se preferirmos, entre as preocupações materiais e as espirituais. Essa perspectiva deveria orientar o proceder das pessoas ao procurarem uma harmonia, a mais perfeita possível, entre a dimensão material e espiritual de suas personalidades individuais e inseridas num contexto coletivo.



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