REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 58


Não há dúvida de que essas reflexões terminam por nos enfrentarmos com uma problemática que merece atenção: a Ascese e a Moral. Trata-se de um desafio que de um lado afeta os indivíduos e da outra organizações religiosas como ordens e congregações, seitas, filosofias de vida, e por aí vai. Entram nessa linha os extremos de iniciativa individual dos anacoretas que passavam isolados em cavernas no deserto, em montanhas inacessíveis ou outros tipos de negação do mundo, jejuando, rezando e impondo-se todo o tipo de mortificações corporais. Não é nossa intenção fazer um juízo de valor sobre tais atitudes e modos de passar a existência tratando seus corpos como se fossem bestas de carga que precisam ser mantidas sob um regime de  negação daquilo para que a própria natureza os destinou.

O capítulo mais complexo de avaliar refere-se ao emaranhado cipoal de regras, diretrizes, filosofias e teologias, consolidadas em códigos, manuais, tratados e outras formas de racionalização do comportamento das pessoas. Fique claro que não estamos fustigando uma orientação sadia, um mostrar caminhos, fazer o papel de guia sem violar ou anular a liberdade de optar. Uma orientação, seja no plano material, seja no espiritual, nunca deveria  esquecer que o que faz com que um humano seja humano é a consciência do que é certo ou errado e, ao mesmo tempo, gozar da liberdade de optar pelo certo ou o errado. Em outras palavras. Qualquer  doutrina ou qualquer orientação que não tomar em consideração esse pressuposto, agride o que distingue os humanos dos outros seres vivos. Vale a pena relembrar a afirmação de Kant: “As duas coisas que mais me impressionam são o firmamento estrelado lá fora e a lei moral cá dentro”. E o filósofo da esperança, Ernst Bloch acrescenta: “Onde há liberdade há possibilidades, onde existem possibilidades há esperança e onde há esperança a harmonia na natureza é possível”. O Pe. Balduino Rambo resumiu com grande precisão essa discussão numa reflexão anotada no diário escrito na visita a Marburg, no dia 10 de julho de 1960.

A Ciência que tem como objeto a Fé, chamada Teologia, e a doutrina que se ocupa com a piedade, conhecida como nome de Ascese. Ambas espalharam uma interminável confusão entre os homens e seu Deus. Sempre de novo percebe-se a tentativa de impor leis gerais e fórmulas  indecifráveis, onde a natureza da coisa é a ausência de leis. Não estou contestando simplesmente toda e qualquer legislação que se opõe à essência do divino, mas a rejeição das leis racionalistas impostas pelo homem. Respeitemos essas leis e as entendamos até certo ponto. Nenhuma mente, nem todas elas reunidas são capazes de abarcar todo o seu sentido. Aproxima-se da fronteira com o Hybris[1] no momento em que se pretende regulamentar com leis o relacionamento com Deus. Apesar de dois mil anos de Revelação e apesar das elucubrações do homem, desde que a terra existe, é sempre o mesmo e toda a soma do conhecimento humano, mostrou-se um vaso pequeno demais para conter a incomensurável grandeza do sentido contido no Mistério de Deus.
Enquanto a Ascese não for  uma expressão singela do dogma, da lei moral e da razoabilidade, não passa de mais um conhecimento humano falível e cheio de falhas. Também nos dias de hoje a tirania das opiniões é poderosa o suficiente para torturar até a morte pessoas de sentimentos apurados e provocar a revolta dos que não concordam. O tempo para as ordens religiosas na forma atual, um dia terá passado. Não o heroísmo no serviço de Deus, mas o tempo em que esse heroísmo era medido com a régua dos donos da piedade.
Deus é o eterno vivo. O homem tende a transformar Deus num fóssil. Ele projeta a sua pequenez e estreiteza de coração sobre a percepção que faz de Deus e se diverte como uma criança quando essa representação corresponde de alguma forma à imagem que tem de si próprio. Quem ousaria desencadear essa revolução que há muito está madura.

Salvo melhor juízo essa reflexão do Pe. Rambo abre o caminho para entender a “lógica” de como lidar com o  humano, com a “Menschlikeit”, na sua autenticidade ontológica e as consequências quando ocorrem distorções mais ou menos sérias e profundas na sua interpretação. A sina da racionalização como critério maior para regulamentar a vida das pessoas é a deformação das personalidades das pessoas ao ponto de reduzi-las a escravas de códigos, manuais, rituais, prescrições  legais, etc., etc. Não passam de caricaturas  de seres humanos condenados a formar autênticos rebanhos, que impedem o livre desabrochar das potencialidades do coração ou, se preferirmos, da alma. Em tais situações a pregação sobre a liberdade dos filhos de Deus, não passa de um engodo. No momento em que se engessa o comportamento com teses teológicas herméticas para garantir a “ortodoxia da fé” e com cânones e regras que disciplinam e categorizam  até as ultimas minúcias o quotidiano das pessoas, violenta-se o que há de mais sagrado no ser humano: a liberdade de optar pelo que lhe parece melhor para viver como “livre filho de Deus”, orientado pela  consciência do “certo e errado”  definido pela Lei Moral. Que fique bem claro que não estamos propondo uma sociedade sem leis e regulamentos, nem no plano religioso nem no civil. Qualquer tipo e qualquer tamanho de organização requer regulamentação pois, o ser humano é um ente social por natureza e, por isso tem compromisso com seus semelhantes.  Quando, porém, o disciplinamento, pela ascese no plano espiritual e pelas leis e regulamentos no plano civil não permitem mais o espaço mínimo indispensável para a autonomia das pessoas, deixam de ser instrumentos para se tornarem fins. Em vez de servirem de instrumento de aperfeiçoamento dos indivíduos e suas relações com os demais violam a liberdade das pessoas e engessam o convívio humano. Numa situação dessas não sobra espaço para  uma autêntica piedade, um usufruir pleno dos bens  oferecidos pela natureza, nem tão pouco deliciar-se com a arte e emocionar-se com o belo inerente aos fenômenos naturais, às paisagens e às criaturas mais “insignificantes” que as habitam.  Há mais de um século Nietzche alertou para o lado perverso da tirania das leis, ao se referir ao Estado. Vale também para as organizações religiosas. “Antigamente havia  povos e rebanhos, não entre nós, irmãos. Entre nós temos o Estado. Estado? O que vem a ser? Vamos lá. Abram bem os ouvidos para escutar o que penso da morte dos povos. O Estado é o mais gélido de todos os monstros. Mente com frieza. A mentira flui da sua boca: Eu, o Estado sou o povo”. (Nietzsche, 1913, p. 61). No plano religioso, de modo especial no que diz respeito à Ascese o excesso de regulamentação, codificação, estatística de boas ações, contagem e medição de orações, vem acompanhado de outro fator de risco. Os mecanismos de controle implícitos na regulamentação conferem poder aos que os dominam  e controlam. Sem entrar em particularidades ou individualizações, este é um  fenômeno mais ou menos explícito presente em toda e qualquer organização, também no contexto das organizações religiosas, independente da visão confessional que defendem. E é mais uma vez Nietzsche que alerta: “No momento em que se chamam a si próprios de ‘bons e justos’, lembrem-se que não lhes falta nada, a não ser o poder, para serem fariseus”. Nietzsche, 1913, p. 140). Um pouco mais adiante o filósofo insiste: “Não quero ser  igualado e misturado com esses pregadores da igualdade pois, os homens não são iguais”. (Nietzsche, 1913, p. 146)

Dando mais um passo, essas reflexões nos levam a um outro efeito calamitoso da tirania que mede tudo com a régua da racionalidade no plano civil e/ou religioso ou pelas idiosincracias dos pregadores que se julgam donos da verdade. Poderíamos classifica-lo como “efeito rebanho” resultado das pregações da igualdade entre os seres humanos que pela sua própria natureza são diferentes. Cada ser humano é uma individualidade única, não repetida e não repetível. O provérbio da sabedoria popular que afirma que “depois de criar um ser humano, Deus  quebra imediatamente a fôrma, para evitar uma réplica no futuro”, continua válido no  sentido mais rigoroso do termo. Pelos critérios aceitos para a classificação taxonômica clássica, todos os seres humanos pertencem à mesma espécie, subdividida em numeráveis raças de cor, estatura, e traços fisionômicos diversos, Mas, no fundo no fundo, as papilas dos dedos e o DNA, por ex., demonstram a identidade dos vivos, dos mortos e mesmo de restos fósseis de milhares de anos passados, que não se constatou até hoje, uma perfeita identidade entre dois seres humanos contemporâneos ou de períodos diferentes da história. É por esse motivo que  a identificação pelas papilas digitais, onde ainda é possível e hoje, principalmente, pelo DNA, são aceitos legalmente como provas de identificação.

Como no plano biológico a individualidade, a unicidade de cada ser humano, verifica-se também na dimensão psicológica e espiritual. E é neste plano que que os pregadores das doutrinas e ideologias que procuram degradar as pessoas a mais uma ovelha do rebanho, ou mais um lobo da alcateia, cometem os crimes mais deploráveis, privando o indivíduo da possibilidade desenvolver a dignidade na sua unicidade. Este é, segundo Nietzsche  o crime cometido pelos pregadores da igualdade, entre os homens que não são  iguais. A essa filosofia política subjaz a proposta de “sociedade sem classes” do marxismo, da sociedade dominada pela “filosofia ou ideologia hegemônica” de Gramsci,  a “mentira em cascata” de Goebels, a “Teoria Crítica” da Escola de Frankfurt e por aí vai.



[1] Hybris No seu conceito original grego significa tudo que passa da medida. – orgulho exagerado – presunção – arrogância. O oposto da virtude.

This entry was posted on segunda-feira, 5 de março de 2018. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.