Uma
reflexão que tem como foco o acesso aos
bens naturais e sua produção não pode deixar de tomar em conta a polêmica
questão da propriedade. Tendo como fio condutor, como “Leimotiv” o direito universal às dádivas da Natureza, o
Papa formulou a questão da propriedade com a observação:
Por conseguinte, toda a
abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os
direitos fundamentais dos mais desfavorecidos. O princípio da subordinação da
propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o
direito universal e o seu uso é uma “regra de ouro” do comportamento social e o
primeiro princípio de toda ordem ético-social. (Laudato si, 93)
O
bispo de Mainz, Wilhelm Ketteler definiu, em dois memoráveis sermões
pronunciados em novembro e dezembro de 1848, o significado da propriedade,
segundo a doutrina do Catolicismo Social. Introduz sua fala afirmando que Deus
é o único proprietário de todos os bens. Ele confia os bens aos homens para que
eles zelem por eles, os preservem e façam frutificar para suprir as
necessidades materiais e espirituais próprias e dos seus semelhantes. Sendo
assim a posse da propriedade é relativa. O proprietário responsabiliza-se pela
correta administração, a fim de que a propriedade, bem administrada renda frutos que atendam às suas próprias
necessidades e às da coletividade em que se acha inserida. A posse é garantida por lei, mas com uma
destinação social. Chama a atenção que a simples e pura abolição da propriedade
leva ao desinteresse, ao descompromisso, à alienação porque priva as pessoas da
sadia emulação e da motivação para realizar-se, tanto material quanto
espiritualmente. Com essas características a propriedade constitui-se numa via
alternativa entre o capitalismo liberal e coletivismo levado às últimas
consequências. No sermão de 9 de novembro de 1848 resumiu o direito à
propriedade mas limitado pela destinação social dos bens.
A falsa doutrina afirmando
o direito irrestrito e exclusivo sobre a propriedade não passa de um pecado
contra a natureza, na medida em que não percebe nada de errado em utilizar a
propriedade para atender a cobiça sem limites e canaliza-la para
satisfazer sem freios as paixões.
Anulando os mais nobres sentimentos humanos estimula a insensibilidade em
relação à miséria alheia, negando o alimento e a proteção que Deus destinou a
todos os homens, sem exceção. Coloca-se num nível abaixo do animal, na medida
em que confunde o mais descarado roubo com a injustiça. Um dos padres da Igreja
ensina que não somente é ladrão aquele
que se apodera dos bens alheios, mas também aquele que retém os bens alheios
para si. A afirmação de que a propriedade é um roubo, não somente é uma grande
mentira, como também contém uma
assustadora verdade.
A compreensão equivocada do
direito à propriedade chamou o
surgimento da doutrina igualmente equivocada do comunismo. Também ela é um
pecado contra a natureza. Valendo-se de uma falsa aparência de fraternidade humana resulta
exatamente no contrário. Leva a humanidade à ruína, na medida em que destrói a
ordem e a paz na terra, numa guerra de todos contra todos, minando as bases do
convívio entre os homens. (von Ketteler, 1848, p. 12)
Os
sermões de Wilhelm von Ketteler foram pronunciados na catedral de Mainz no
mesmo ano em que Marx publicou o “Manifesto Comunista” em meio a uma atmosfera social muito complicada. Os
desajustes e descompassos gerados pela revolução industrial, colocando em pé de guerra o capital e o
trabalho, o individual e o coletivo, os direitos individuais e o bem comum,
repercutiram entre intelectuais políticos e empresários, operários e também na
Igreja. Os apologistas da propriedade
particular sem restrições, os defensores da eliminação pura e simples da
propriedade e a consequente
coletivização dos meios de produção e
dos resultados obtidos, saíram a público com seus arrazoados e manifestos, a
fim de reunir o maior número possível de adeptos.
O
individualismo nasceu como contraponto ao Estado ordenador e controlador dos
atos dos cidadãos, principalmente no plano político e econômico, exigindo a
livre concorrência pela lei da procura e da oferta. Para por em prática essa
reviravolta pelas bases da relação do indivíduo com o Estado, pressupõe-se a concessão da mais ampla
e irrestrita liberdade aos cidadãos. Quanto mais longe a presença ordenadora
do Estado tanto melhor. A lógica do individualismo fundamenta-se,
portanto, no princípio de que cabe ao
indivíduo, à individualidade, reger e justificar qualquer atividade, com destaque para a econômica. E o
gozo da liberdade sem restrições
constitui-se no pressuposto para a realização do indivíduo inserido numa determinada sociedade. O individualismo “não vê a sociedade como uma
unidade real e ético-orgânica, visando a um fim comum (...) Reduz a sociedade a
um mera soma dos entes separados, despojando-os do caráter da totalidade
orgânica” (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 109). O “homem “livre” e sem restrições
fundamenta o ideal do “individualismo liberal”. Na verdade não existe para ele
uma sociedade como o conceito é normalmente entendido, isto é, um corpo
organizado, mas reduz a sociedade a um mera soma de indivíduos. Em nome da
liberdade permite-se, na prática, tudo ao indivíduo. Em princípio tudo que a
sociedade oferece ou pode oferecer, deve permitir aos indivíduos o exercício, sem restrições,
da liberdade em todos os sentidos, tanto na esfera política, quanto na
religiosa, quanto no relacionamento com as pessoas e, principalmente, na
atividade econômica.
Portanto, o indivíduo deve,
a) ser plenamente livre, a fim de poder desenvolver as suas capacidades, para
interesse próprio; b) ter plena liberdade para concorrência com o outro; c) ter
liberdade de locomoção; d) ter liberdade de fazer contratos; e) ter liberdade
de usar e explorar a propriedade privada, sem que fatores sociais ponham
qualquer obstáculo. Descarta-se, por isso,
a intervenção estatal. (Bohnen-Ullmann. 1993, p. 109).
Como consequência,
desencadeou-se uma cobiça desenfreada,
com acúmulo de bens, nas mãos de poucos e crescente miséria na maior parte do
povo. É preciso admitir, no entanto. que o liberalismo contribuiu,
poderosamente, para a produção de bens materiais, porém, descurou a justa
distribuição da riqueza. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 112)
A
geração e administração de bens materiais somada à exploração das riquezas
levou, fatalmente, à concentração delas nas mãos de uma minoria, enquanto que a
grande maioria vegetava na pobreza e na miséria. Não se trata de por em
discussão a validade, ou não, da produção de riquezas e bens materiais. O que
acontece é que o individualismo peca pela falta ou pela simples e pura não distribuição deles. O
resultado a médio e longo prazo só podia ser um: o distanciamento, a oposição,
o choque e, finalmente, o conflito entre os dois extremos, isto é, entre a
abundância sem freios de um lado e a carência extrema do outro. A resposta e a proposta de soluções foram ambas formuladas e apresentadas, coincidentemente,
no mesmo ano – 1848: “O manifesto comunista” e “A doutrina social da Igreja
católica”.
O coletivismo propõe o caminho oposto ao
individualismo no que se refere às relações dos cidadãos com o Estado, assim
como a concepção do próprio Estado e da coletividade ou sociedade. Em casos
extremos priva os indivíduos de toda a liberdade.
Em sentido lato, o
coletivismo ou comunismo mitigado resume-se numa estatolatria, erigindo a
sociedade em valor supremo com desconhecimento completo dos direitos humanos. A
família, a pessoa, a cultura, a arte, a filosofia são instrumentos do Estado
com direitos sem limites. A consciência do indivíduo identifica-se com a do
Estado, que tudo absorve, especialmente a autonomia da pessoa. O ser humano,
produto do coletivo, deve servir à coletividade, na qual está imerso e para a
qual vive. Na gigantesca engrenagem do sistema coletivista o ser humano nada
mais é do que uma roda, ajudando a movimentar o imenso organismo. Sendo tudo
matéria, também a sociedade é-lhe mero
epifenômeno (Erscheinungsform), sem dimensão espiritual nem ética. Ético
apresenta-se tudo quanto fomenta a luta de classes, para eliminar da face da
terra o monstro do capitalismo. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 117).
Posto
isso, o coletivismo é passível de classificação em várias categorias, tomando
como referência os valores cultivados,
melhor talvez, cultuados em cada uma das suas versões. A forma menos extremada
sãos os “fascismos” venerando como valor maior a nação. Assim, por exemplo, a
latinidade, a romanidade, a italianidade, a lusitaneidade, a brasilidade, etc.,
ocupam a posição de referência maior. Essa categoria de coletivismo foi o
paradigma dos estados autoritários ou fascitas da primeira metade do século XX
na Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Argentina, não esquecendo o Estado Novo
de Vargas. O marxismo-Leninismo é a forma de coletivismo mais longeva e mais
decantada. Evidentemente, assume características próprias, versões mais ou
menos radicais, de acordo com as peculiaridades dos países e sociedades em que
foi implantado. Parte do princípio de que o valor maior de coletividade é o
proletariado ao qual cabe a tarefa de
buscar e concretizar o ideal utópico de uma sociedade sem classes. As versões
desse tipo de coletivismo têm em comum a anulação da pessoa, da individualidade,
da personalidade dos indivíduos, com todas as suas consequências. Em outras
palavras, as pessoas como indivíduos são sacrificados no altar da utopia
socialista.
A
história mostrou que, o coletivismo na forma comunista ou marxista-leninista
não resistiu ao contraditório entre o ideal utópico e a realidade do caminho para chegar até ele.
Em outras palavras, o coletivismo real, nessa forma destrói qualquer ilusão de
que o seu ideal utópico se possa realizar como uma solução para a guerra
declarada contra o individualismo, há mais de um século e meio. Os países que o
adotaram, na sua forma mais radical, experimentaram a desilusão na sua
modalidade mais cruel. Um a um assistiram ao colapso dos seus modelos políticos
e à ruína dos seus projetos econômicos. “Nomenclaturas de todos os matizes de
autênticos déspotas apossaram-se das
riquezas, que, segundo o discurso utópico prometia, destinavam-se ao bem comum.
A promessa de o bem comum permitir uma vida
digna, a realização das pessoas e garantir o atendimento às suas
necessidades básicas, não passou de um engodo. O Leviatan da burocracia do
Estado, dos aparelhos de repressão, da hipertrofia militar e da ineficiência e
do sucateamento da produção de bens, causada pela desmotivação das pessoas sem
identidade e sem dignidade, feitas peças de uma gigantesca máquina, engoliu
tudo. Não obstante a falência do socialismo real, a ideologia utópica e
messiânica pregada por Marx, continua a
povoar a mente das pessoas de todos os níveis sociais. Na tese de doutorado do
Pe, Aloísio Bohnen publicada em forma de livro com o título: “O Solidarismo” em
parceria com o prof. Reinholdo Ullmann. fica claro o equívoco sobre o qual se
fundamenta essa utopia. Vale a pena reproduzi-la no original.
Segundo o marxismo, a
harmonia natureza-sociedade foi destruída por uma desgraça histórica, isto é,
pelo pecado da propriedade privada, a qual é o fator de separação e desunião
entre os homens. Pela propriedade privada o trabalho perdeu o sentido, por ter
levado o homem à alienação. De que forma? O produto do trabalho, no qual o
operário põe algo de si, pertence a
outrem – ao capitalista, ao patrão. O produto do labor figura-se ao
proletário algo estranho. Para o autor de “O Capital”, o proletariado é espoliado
por causa da mais valia. Assim, em vez de humanizar o ser humano, o trabalha o
desumaniza.
Superar a alienação e reintegrar o homem na sociedade,
possibilitando-lhe, desse modo, auto-realização – eis o objetivo do
marxismo-leninismo. Para alcançar essa meta, é preciso eliminar a diferença de
classes, mediante a luta a qual se desenrolaria, inexoravelmente, na marcha
dialética da tese, antítese e síntese. Na síntese, a história socialista
(comunista) atingiria o seu alvo, não mais existindo propriedade privada nem
luta de classes. Teria, então, raiado a almejada idade de ouro. Essa é a
moldura do messianismo securalizado; essa é a escatologia pregado por Marx, com
liberdade e igualdade total, com bem-estar
e felicidade para o trabalhador, outrora escravizado pelo capitalismo.
(Bohnen-Ullmann, 1993, p. 119-120)
Objetivamente
falando, esse cenário de utopia, à primeira vista sedutor, sinaliza para a
superação dos males que afligem o proletariado explorado, espoliado e sem
perspectivas. Acena, e isso é verdadeiro,
como já admitia von Ketteler ao afirmar que “Ela (a Igreja) louva no
comunismo a intenção de destinar o fruto da propriedade em favor do bem comum”
(von Ketteler, 1848, p. 13). O direito natural reclama para as pessoas as
condições mínimas de se realizarem
material e espiritualmente. Essa realização, entretanto, encontra dificuldades
insuperáveis pela via coletivista comunista. Começa por aí que o caminho
escolhido para torna-lo realidade é imposto à força de cima para baixo e o
ateísmo transformado em “religião” oficial. Neste regime já não há mais lugar para a liberdade individual, nem
para a propriedade dos meios de produção, nem dos bens produzidos, incluindo a
produção científica, artística, literária e outras, nem a prática de qualquer
modalidade de religião. Ora, o livre acesso a todos esses bens, e a livre
escolha do caminho a seguir e os instrumentos a serem utilizados para
administrá-los, são o fundamento sem o
qual a realização pessoal torna-se impossível. Dessa forma, a via marxista-leninista
continha o fracasso na sua própria essência. O desfecho é conhecido por todos,
mas por muitos ainda não foi aceito e assimilado. Perplexos procuram uma
resposta em fatores externos, quando ele
se esconde na própria essência
contraditória do modelo e as estratégias utilizadas na sua concretização.
Pela
sucinta caracterização que acabamos de apresentar, fica claro que, tanto o
“individualismo liberal” quanto o “coletivismo”
na sua versão radical, resolvem apenas questões epidérmicas da
complexidade dos problemas sociais. Ambos oferecem evidentemente aspectos positivos, mas não atingem o cerne dos
desafios. De um lado a realização integral das pessoas torna-se inviável, pois
a liberdade sem freios e sem limites, autoriza os indivíduos a sacrificar o
próximo em nome da própria liberdade. É o império do “homo homini lúpus – das
pessoas se matando mutuamente como lobos”, situação definida já pelos antigos
romanos. Do outro lado, o coletivismo levado à sua forma extrema reduz a
individualidade a simples peça da gigantesca máquina e a sociedade transformada
no Moloc que devora e aniquila qualquer
esperança de realização pessoal. Pergunta-se. E há uma saída? Com toda a
convicção afirmamos que sim. A alternativa para o “individualismo” e o
“coletivismo “ é o “Solidarismo”.