REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 53


Uma reflexão que tem como foco  o acesso aos bens naturais e sua produção não pode deixar de tomar em conta a polêmica questão da propriedade. Tendo como fio condutor, como “Leimotiv” o  direito universal às dádivas da Natureza, o Papa formulou a questão da propriedade com a observação:

Por conseguinte, toda a abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos. O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal e o seu uso é uma “regra de ouro” do comportamento social e o primeiro princípio de toda ordem ético-social. (Laudato si, 93)

O bispo de Mainz, Wilhelm Ketteler definiu, em dois memoráveis sermões pronunciados em novembro e dezembro de 1848, o significado da propriedade, segundo a doutrina do Catolicismo Social. Introduz sua fala afirmando que Deus é o único proprietário de todos os bens. Ele confia os bens aos homens para que eles zelem por eles, os preservem e façam frutificar para suprir as necessidades materiais e espirituais próprias e dos seus semelhantes. Sendo assim a posse da propriedade é relativa. O proprietário responsabiliza-se pela correta administração, a fim de que a propriedade, bem administrada  renda frutos que atendam às suas próprias necessidades e às da coletividade em que se acha inserida.  A posse é garantida por lei, mas com uma destinação social. Chama a atenção que a simples e pura abolição da propriedade leva ao desinteresse, ao descompromisso, à alienação porque priva as pessoas da sadia emulação e da motivação para realizar-se, tanto material quanto espiritualmente. Com essas características a propriedade constitui-se numa via alternativa entre o capitalismo liberal e coletivismo levado às últimas consequências. No sermão de 9 de novembro de 1848 resumiu o direito à propriedade mas limitado pela destinação social dos bens.

A falsa doutrina afirmando o direito irrestrito e exclusivo sobre a propriedade não passa de um pecado contra a natureza, na medida em que não percebe nada de errado em utilizar a propriedade para atender a cobiça sem limites e canaliza-la para satisfazer  sem freios as paixões. Anulando os mais nobres sentimentos humanos estimula a insensibilidade em relação à miséria alheia, negando o alimento e a proteção que Deus destinou a todos os homens, sem exceção. Coloca-se num nível abaixo do animal, na medida em que confunde o mais descarado roubo com a injustiça. Um dos padres da Igreja ensina que não somente  é ladrão aquele que se apodera dos bens alheios, mas também aquele que retém os bens alheios para si. A afirmação de que a propriedade é um roubo, não somente é uma grande mentira,  como também contém uma assustadora  verdade.
A compreensão equivocada do direito  à propriedade chamou o surgimento da doutrina igualmente equivocada do comunismo. Também ela é um pecado contra a natureza. Valendo-se de uma falsa  aparência de fraternidade humana resulta exatamente no contrário. Leva a humanidade à ruína, na medida em que destrói a ordem e a paz na terra, numa guerra de todos contra todos, minando as bases do convívio entre os homens. (von Ketteler, 1848, p. 12)

Os sermões de Wilhelm von Ketteler foram pronunciados na catedral de Mainz no mesmo ano em que Marx publicou  o  “Manifesto Comunista” em meio  a uma atmosfera social muito complicada. Os desajustes e descompassos gerados pela revolução industrial,  colocando em pé de guerra o capital e o trabalho, o individual e o coletivo, os direitos individuais e o bem comum, repercutiram entre intelectuais políticos e empresários, operários e também na Igreja. Os  apologistas da propriedade particular sem restrições, os defensores da eliminação pura e simples da propriedade e  a consequente coletivização  dos meios de produção e dos resultados obtidos, saíram a público com seus arrazoados e manifestos, a fim de reunir o maior número possível de adeptos.

O individualismo nasceu como contraponto ao Estado ordenador e controlador dos atos dos cidadãos, principalmente no plano político e econômico, exigindo a livre concorrência pela lei da procura e da oferta. Para por em prática essa reviravolta pelas bases da relação do indivíduo com o  Estado, pressupõe-se a concessão da mais ampla e irrestrita liberdade aos cidadãos. Quanto mais longe a presença  ordenadora  do Estado tanto melhor. A lógica do individualismo fundamenta-se, portanto, no princípio de  que cabe ao indivíduo, à individualidade, reger e justificar qualquer  atividade, com destaque para a econômica. E o gozo da liberdade sem restrições  constitui-se no pressuposto para a realização do indivíduo inserido numa  determinada sociedade.  O individualismo “não vê a sociedade como uma unidade real e ético-orgânica, visando a um fim comum (...) Reduz a sociedade a um mera soma dos entes separados, despojando-os do caráter da totalidade orgânica” (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 109). O “homem “livre” e sem restrições fundamenta o ideal do “individualismo liberal”. Na verdade não existe para ele uma sociedade como o conceito é normalmente entendido, isto é, um corpo organizado, mas reduz a sociedade a um mera soma de indivíduos. Em nome da liberdade permite-se, na prática, tudo ao indivíduo. Em princípio tudo que a sociedade oferece ou pode oferecer, deve permitir  aos indivíduos o exercício, sem restrições, da liberdade em todos os sentidos, tanto na esfera política, quanto na religiosa, quanto no relacionamento com as pessoas e, principalmente, na atividade econômica.

Portanto, o indivíduo deve, a) ser plenamente livre, a fim de poder desenvolver as suas capacidades, para interesse próprio; b) ter plena liberdade para concorrência com o outro; c) ter liberdade de locomoção; d) ter liberdade de fazer contratos; e) ter liberdade de usar e explorar a propriedade privada, sem que fatores sociais ponham qualquer obstáculo. Descarta-se, por isso,  a intervenção estatal. (Bohnen-Ullmann. 1993, p. 109).
Como consequência, desencadeou-se  uma cobiça desenfreada, com acúmulo de bens, nas mãos de poucos e crescente miséria na maior parte do povo. É preciso admitir, no entanto. que o liberalismo contribuiu, poderosamente, para a produção de bens materiais, porém, descurou a justa distribuição da riqueza. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 112)

A geração e administração de bens materiais somada à exploração das riquezas levou, fatalmente, à concentração delas nas mãos de uma minoria, enquanto que a grande maioria vegetava na pobreza e na miséria. Não se trata de por em discussão a validade, ou não, da produção de riquezas e bens materiais. O que acontece é que o individualismo peca pela falta ou pela  simples e pura não distribuição deles. O resultado a médio e longo prazo só podia ser um: o distanciamento, a oposição, o choque e, finalmente, o conflito entre os dois extremos, isto é, entre a abundância sem freios de um lado e a carência extrema do outro. A  resposta e a proposta de soluções foram ambas  formuladas e apresentadas, coincidentemente, no mesmo ano – 1848: “O manifesto comunista” e “A doutrina social da Igreja católica”.

O  coletivismo propõe o caminho oposto ao individualismo no que se refere às relações dos cidadãos com o Estado, assim como a concepção do próprio Estado e da coletividade ou sociedade. Em casos extremos priva os indivíduos de toda a liberdade.

Em sentido lato, o coletivismo ou comunismo mitigado resume-se numa estatolatria, erigindo a sociedade em valor supremo com desconhecimento completo dos direitos humanos. A família, a pessoa, a cultura, a arte, a filosofia são instrumentos do Estado com direitos sem limites. A consciência do indivíduo identifica-se com a do Estado, que tudo absorve, especialmente a autonomia da pessoa. O ser humano, produto do coletivo, deve servir à coletividade, na qual está imerso e para a qual vive. Na gigantesca engrenagem do sistema coletivista o ser humano nada mais é do que uma roda, ajudando a movimentar o imenso organismo. Sendo tudo matéria, também a sociedade é-lhe mero  epifenômeno (Erscheinungsform), sem dimensão espiritual nem ética. Ético apresenta-se tudo quanto fomenta a luta de classes, para eliminar da face da terra o monstro do capitalismo. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 117).

Posto isso, o coletivismo é passível de classificação em várias categorias, tomando como referência  os valores cultivados, melhor talvez, cultuados em cada uma das suas versões. A forma menos extremada sãos os “fascismos” venerando como valor maior a nação. Assim, por exemplo, a latinidade, a romanidade, a italianidade, a lusitaneidade, a brasilidade, etc., ocupam a posição de referência maior. Essa categoria de coletivismo foi o paradigma dos estados autoritários ou fascitas da primeira metade do século XX na Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Argentina, não esquecendo o Estado Novo de Vargas. O marxismo-Leninismo é a forma de coletivismo mais longeva e mais decantada. Evidentemente, assume características próprias, versões mais ou menos radicais, de acordo com as peculiaridades dos países e sociedades em que foi implantado. Parte do princípio de que o valor maior de coletividade é o proletariado ao qual cabe  a tarefa de buscar e concretizar o ideal utópico de uma sociedade sem classes. As versões desse tipo de coletivismo têm em comum a anulação da pessoa, da individualidade, da personalidade dos indivíduos, com todas as suas consequências. Em outras palavras, as pessoas como indivíduos são sacrificados no altar da utopia socialista.

A história mostrou que, o coletivismo na forma comunista ou marxista-leninista não resistiu ao contraditório entre o ideal utópico  e a realidade do caminho para chegar até ele. Em outras palavras, o coletivismo real, nessa forma destrói qualquer ilusão de que o seu ideal utópico se possa realizar como uma solução para a guerra declarada contra o individualismo, há mais de um século e meio. Os países que o adotaram, na sua forma mais radical, experimentaram a desilusão na sua modalidade mais cruel. Um a um assistiram ao colapso dos seus modelos políticos e à ruína dos seus projetos econômicos. “Nomenclaturas de todos os matizes de autênticos déspotas apossaram-se  das riquezas, que, segundo o discurso utópico prometia, destinavam-se ao bem comum. A promessa de o bem comum permitir uma vida  digna, a realização das pessoas e garantir o atendimento às suas necessidades básicas, não passou de um engodo. O Leviatan da burocracia do Estado, dos aparelhos de repressão, da hipertrofia militar e da ineficiência e do sucateamento da produção de bens, causada pela desmotivação das pessoas sem identidade e sem dignidade, feitas peças de uma gigantesca máquina, engoliu tudo. Não obstante a falência do socialismo real, a ideologia utópica e messiânica pregada  por Marx, continua a povoar a mente das pessoas de todos os níveis sociais. Na tese de doutorado do Pe, Aloísio Bohnen publicada em forma de livro com o título: “O Solidarismo” em parceria com o prof. Reinholdo Ullmann. fica claro o equívoco sobre o qual se fundamenta essa utopia. Vale a pena reproduzi-la no original.

Segundo o marxismo, a harmonia natureza-sociedade foi destruída por uma desgraça histórica, isto é, pelo pecado da propriedade privada, a qual é o fator de separação e desunião entre os homens. Pela propriedade privada o trabalho perdeu o sentido, por ter levado o homem à alienação. De que forma? O produto do trabalho, no qual o operário põe algo de si, pertence a  outrem – ao capitalista, ao patrão. O produto do labor figura-se ao proletário algo estranho. Para o autor de “O Capital”, o proletariado é espoliado por causa da mais valia. Assim, em vez de humanizar o ser humano, o trabalha o desumaniza.

Superar a alienação  e reintegrar o homem na sociedade, possibilitando-lhe, desse modo, auto-realização – eis o objetivo do marxismo-leninismo. Para alcançar essa meta, é preciso eliminar a diferença de classes, mediante a luta a qual se desenrolaria, inexoravelmente, na marcha dialética da tese, antítese e síntese. Na síntese, a história socialista (comunista) atingiria o seu alvo, não mais existindo propriedade privada nem luta de classes. Teria, então, raiado a almejada idade de ouro. Essa é a moldura do messianismo securalizado; essa é a escatologia pregado por Marx, com liberdade e igualdade total, com bem-estar  e felicidade para o trabalhador, outrora escravizado pelo capitalismo. (Bohnen-Ullmann, 1993, p. 119-120)

Objetivamente falando, esse cenário de utopia, à primeira vista sedutor, sinaliza para a superação dos males que afligem o proletariado explorado, espoliado e sem perspectivas. Acena, e isso é verdadeiro,  como já admitia von Ketteler ao afirmar que “Ela (a Igreja) louva no comunismo a intenção de destinar o fruto da propriedade em favor do bem comum” (von Ketteler, 1848, p. 13). O direito natural reclama para as pessoas as condições mínimas de  se realizarem material e espiritualmente. Essa realização, entretanto, encontra dificuldades insuperáveis pela via coletivista comunista. Começa por aí que o caminho escolhido para torna-lo realidade é imposto à força de cima para baixo e o ateísmo transformado em “religião” oficial. Neste regime já não há  mais lugar para a liberdade individual, nem para a propriedade dos meios de produção, nem dos bens produzidos, incluindo a produção científica, artística, literária e outras, nem a prática de qualquer modalidade de religião. Ora, o livre acesso a todos esses bens, e a livre escolha do caminho a seguir e os instrumentos a serem utilizados para administrá-los, são o fundamento  sem o qual a realização pessoal torna-se impossível. Dessa forma, a via marxista-leninista continha o fracasso na sua própria essência. O desfecho é conhecido por todos, mas por muitos ainda não foi aceito e assimilado. Perplexos procuram uma resposta em fatores externos, quando ele  se esconde na própria  essência contraditória do modelo e as estratégias utilizadas na sua concretização.

Pela sucinta caracterização que acabamos de apresentar, fica claro que, tanto o “individualismo liberal” quanto o “coletivismo”  na sua versão radical, resolvem apenas questões epidérmicas da complexidade dos problemas sociais. Ambos oferecem evidentemente aspectos   positivos, mas não atingem o cerne dos desafios. De um lado a realização integral das pessoas torna-se inviável, pois a liberdade sem freios e sem limites, autoriza os indivíduos a sacrificar o próximo em nome da própria liberdade. É o império do “homo homini lúpus – das pessoas se matando mutuamente como lobos”, situação definida já pelos antigos romanos. Do outro lado, o coletivismo levado à sua forma extrema reduz a individualidade a simples peça da gigantesca máquina e a sociedade transformada no Moloc que  devora e aniquila qualquer esperança de realização pessoal. Pergunta-se. E há uma saída? Com toda a convicção afirmamos que sim. A alternativa para o “individualismo” e o “coletivismo “ é o “Solidarismo”.


REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 52


Não perdendo de vista o fundamento que  sustenta e legitima a batalha pela proteção à Natureza, isto é, o postulado ético e moral ditado pelo direito natural que deveria garantir a todo e qualquer ser humano o acesso aos recursos naturais, assegurando-lhe uma existência minimamente digna, o Papa lembra mais uma condição para que a cruzada para salvação da “nossa casa” tenha resultados consistentes.  Em vários momentos dessas reflexões  já apontamos  para o fato de que a Natureza como um todo  formam uma gigantesca síntese. Os minerais, os nano e micro organismos, os vegetais,  os animais e o homem, cada categoria à sua maneira, acha-se ontologicamente  comprometida com o equilíbrio e a saúde do todo. Em outros momentos  já aprofundamos essa questão. A Encíclica valendo-se desse pressuposto define a Natureza como uma “comunhão” universal da qual, de uma forma ou outra, todos participam: a Natureza  viva e não viva, incluindo o homem. Nesta perspectiva, até os seres aparentemente mais insignificantes “comungam” com todas as demais  categorias. Para um autêntico defensor da Natureza pressupõe-se que em seu peito pulse um coração aberto para essa realidade. Parece que foi isso que o Papa entendeu quando alertou: “Além disso, quando o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade”, (Laudato si, 92).

Posta nesses  termos a questão da relação do homem com a Natureza somos colocados diante de dois desafios que merecem atenção. Em primeiro lugar, no contexto da mentalidade predatória que em larga escala marca o compasso da exploração dos recursos naturais não tem o “coração verdadeiramente aberto” ao ponto de viver uma verdadeira fraternidade com os seres vivos de todas as categorias que com ele compartilham o mesmo meio geográfico. A atmosfera viciada pelo egoísmo e imediatismo é avessa e refratária a qualquer tipo de relação que no fundo não seja materialmente utilitária. Impede que o espírito e o coração cultivem e pratiquem ações, motivadas fora dessa perspectiva. Por isso, as políticas e as iniciativas formuladas em documentos de abrangência internacional, nacional, regional e mesmo local, estagnam, nas sua grande maioria, no nível da letra morta. Os resultados concretos não passam de “parto de montanha”. Mas desse aspecto já nos ocupamos em reflexões anteriores. Uma virada radical da nossa civilização no que diz respeito à exploração e destino dos recursos naturais defronta-se com a  visão predatória das ideologias, levem o nome que quiserem, que lidam com o meio ambiente sem a mínima preocupação com as gerações futuras.

Se essa de fato é a preocupante realidade, a advertência da Encíclica parece soar como um sonho remoto ou uma utopia impossível

Portanto, é verdade também que  a indiferença ou crueldade com as outras criaturas  deste mundo sempre acabam de alguma forma por  repercutir-se  no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda  a manifestar-se  na relação com as pessoas. Todo encarniçamento contra qualquer criatura é contrário à dignidade humana. (Luadato si, 92)

Sugiro apostar num “futuro talvez distante” e não numa “utopia impossível”. Parece de todo improvável que a curto e médio prazo a geração que hoje decide sobre o destino da humanidade tenha condições mínimas para redirecionar  as diretrizes políticas, econômicas e estratégicas, em favor de um relacionamento mais saudável com “a nossa casa” e “os nossos irmãos, os animais e   plantas como diria São Francisco de Assis . Será uma tarefa penosa  que começa  com a educação das novas gerações que vem vindo, desde a educação infantil, passando pela fundamental, média e superior. A educação formal não pode dispensar o reforço da conscientização das pessoas em geral, recorrendo a todos os meios e caminhos disponíveis. E, graças a Deus, não é só o Papa na sua Encíclica que chama a atenção para a urgência de começar o caminho de volta da reconciliação com a Natureza via mudança da mentalidade pela educação. Autoridades científicas como o especialista em ecossistemas naturais e humanizados Edward Wilson e o geneticista Francis Collins, entre outros, nossos já conhecidos, oferecem caminhos viáveis nessa direção. Das obras de referência desses dois cientistas de renome, o primeiro um “humanista secular” e o segundo um convicto crente em Deus, é lícito concluir que nem tudo está perdido.  O Papa resume como ideal a ser alcançado

Que, tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma de suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra. (Laudati si, 92)

Nas entrelinhas do que vínhamos refletindo põe-se um outro questionamento de difícil resposta. Se  tudo está relacionado, plantas, animais e o homem, numa comunidade que deveria comungar  fraternalmente os bens da terra, como harmonizar com esse ideal o abate de milhões de animais para cobrir as demandas da humanidade do consumo de carne e derivados?. O homem é omnívoro por natureza e por isso mesmo uma alimentação básica inclui proteínas de origem animal o que pressupõe a pesca, a caça e o abate industrializado. Uma resposta satisfatória para essa polêmica fica, por enquanto, aberta.

De qualquer maneira, como em muitas outras questões que tem a ver com o relacionamento do homem com a Natureza, escutam-se as vozes que defendem posições extremas assim como todas as tonalidades intermediárias. Não faltam  os adeptos do regime vegetariano radical. Para estes toda e qualquer dieta que não seja exclusivamente de procedência vegetal deve ser banida. No meio termo situam-se aqueles que se recusam consumir carnes vermelhas e seus derivados, enquanto não fazem restrições ao peixe e aos frutos do mar. No estremo oposto estão adeptos ao consume de carnes vermelhas em todas as sua modalidade de preparo.




REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 51

O primeiro equívoco, resume-se no fato de que a espécie humana é considerada como a coroação dos potenciais da evolução e como tal ocupa uma posição privilegiada e especial na natureza. Como já foi insistido mais acima, o homem é dotado de inteligência reflexa, de consciência moral capaz de distinguir o bem do mal e, ao mesmo tempo, é dotado de liberdade para escolher o bem ou o mal. Não há dúvida de que essa visão, se bem entendida, goza de toda a legitimidade. Acontece, porém, que esses dotes exclusivos, se mal avaliados podem levar, como levam, a uma auto estima indevida que faz o homem  assumir-se como  senhor da natureza e dos seus recursos. A consequência prática dessa cosmovisão levada ao extremo resulta na prática na dicotomia em que homem e natureza são duas realidades pela sua própria natureza ontologicamente distintas. Nessa perspectiva a espécie humana deixa de ser “Adam”, isto é, “o nascido da terra”, ou deixa de fazer sentido a advertência que acompanha a liturgia na aplicação das cinzas na quarta-feira da semana em que começa a quaresma: “Lembra-te mortal que és pó e ao pó retornarás”. Os que adotam esse princípio como baliza para a vida prática lidam com os recursos naturais e agem como se fossem seus senhores ou seus donos. Assim fica livre a aplicação do princípio darwinista da seleção natural como regra mestra a reger as relações humanas em todos os seus níveis, também, e principalmente, no acesso e uso fruto dos recursos naturais. Identificamos assim uma das causas determinantes do nível de degradação da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”, que nos abriga e nos sustenta. Os mais espertos, ignoram que os  recursos naturais são um bem comum pelo fato de serem uma condição sem a qual, não só a vida em si, mas uma mínimo de dignidade no viver, depende do acesso a esses bens numa quantidade e qualidade decente. Os grandes vilões da degradação ambiental em todos os seus níveis e formas podem ser encontrados nas cúpulas dos poderes políticos, nos escritórios dos poderosos da economia e dos formuladores de estratégias no plano geopolítico, geoeconômico e geoestratégico. Como seus objetivos resumem-se em poder e posses, são apátridas por natureza. Podem ser encontrados com o mesmo espírito predatório e ambição sem freios, tanto no mundo “capitalista”, quanto no “socialista”. No primeiro caso a responsabilidade  maior pesa sobre os empreendimentos privados e a livre competição entre os cidadãos. No segundo caso a responsabilidade fica por conta dos governos centralizadores sustentados por ditadores e suas nomenclaturas que se refestelam até a saciedade dos recursos disponíveis e deixam à mingua povos inteiros. Stalin já declarava que a forma mais eficaz para  controlar o povo é pela fome subtraindo-lhe os alimentos  e de cobro ainda agradece pelas migalhas que lhe deixamos. Aplicou na prática esse principio e o resultado foi  um genocídio de entre 4 a 5 milhões de ucranianos mortos de fome.  Propostas como a privatização dos mananciais de água por parte de megaempresários e/ou políticos, não passam de sinais alarmantes da concentração sob o arbítrio de poucos de um bem que significa a própria viabilidade da vida. Que se pague um preço justo pelo tratamento da água, nada a opor, mas transformar os mananciais naturais em mercadoria e instrumentos de poder geoeconômico, geopolítico político ou estratégico, ultrapassa os limites justificáveis e toleráveis da prepotência de uma mentalidade que ignora os princípios éticos mais elementares da convivência humana. Até agora não se falou, mas o que não parece impossível nesse panorama, seriam propostas e projetos de privatização do ar que respiramos.

Deixamos de notar  que alguns se arrastam numa miséria degradante sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer o que fazer ao que tem, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos. (Laudato si, 90)

Em segundo lugar, a inegável superioridade  da espécie humana em relação às demais pelas características acima apontadas: inteligência reflexa, consciência moral do que é certo e errado e liberdade para seguir ou não seguir o que a consciência aponta como certo ou errado. Essa constatação faz com que a espécie humana  represente uma grande comunidade na diversidade de suas raças, cores, tradições culturais, crenças religiosas, capacidade de perceber não só a utilidade da natureza que a cerca, como também os estímulos emocionais, a harmonia de suas paisagens, o belo de suas manifestações e a busca da harmonia e perfeição pessoal e coletiva sugeridas pela criação.

Essa constatação não  anula o pressuposto que defendemos, isto é, que a espécie humana encontra-se existencialmente, melhor, ontologicamente  inserida na natureza, tanto no que lhe é comum com seus componentes anorgânicos e orgânicos, quanto os nano e micro organismos e todas formas de vida vegetal e animal. O pertencimento como um dos seus elementos, e por sinal, o mais  completo e perfeito, encontra o seu argumento mais sutil na própria realização daquilo que em outras ocasiões chamamos de “o humano” no homem– “Die Menschlichkeit”. A percepção da harmonia, das belezas naturais, das emoções em todos os seus matizes, são captados pelos cinco sentidos e transformados em vivências existenciais não pela racionalidade indutiva da Ciência nem da dedutiva da Filosofia que tem a sua sede no cérebro. Esse tipo de conhecimento da Natureza tem como fonte e explicação a capacidade intuitiva que tem como sede o coração.  Para tanto não se pressupõe um nível de treinamento formal e  sofisticado nem uma inteligência mais apurada. Tanto uma criança, quanto uma pessoa “iletrada”, um camponês, um operário  ou um cientista, filósofo ou teólogo de alto nível acadêmico, portador de distinções tipo prêmio Nobel, percebem a beleza de uma flor, a harmonia de uma paisagem, o encanto de um sabiá cantando, a majestade de uma montanha coberta de neve, o mistério que se esconde na penumbra de uma floresta, o belo assustador de uma tempestade de verão. A conclusão parece óbvia. É nesse nível que acontece o viver e conviver da espécie humana ontologicamente inserida na natureza como todos os demais seres vivos. De outra parte não se pode esquecer que no decorrer  de no mínimo 90% da sua história, a humanidade dispôs apenas dessas ferramentas para relacionar-se com seu entorno geográfico, para suprir as necessidades de sua sobrevivência e perpetuar-se como espécie. Ao mesmo tempo, porém, com essas mesmas ferramentas alimentou a curiosidade de entender o ser e o acontecer do mundo, “sua casa”, e  dar vasão ao potencial sem fim de o coração usufruir e degustar  com o que a “mãe e pátria” o presenteia. É oportuno chamar a atenção que os métodos e ferramentas da investigação científica, as escolas filosófica e teológicas que lidam racionalmente com a natureza foram formuladas e postas em prática no máximo nos últimos 5% da história da humanidade. O ritmo da racionalização da natureza foi-se acelerando na medida que se aperfeiçoaram essas ferramentas. Chegamos a um ponto em que só merece ser considerado conhecimento aquele que resulta, “preto no branco”, do emprego de métodos e instrumentos científicos ou de silogismos irretocáveis. Admitir que o conhecimento via intuição, via percepção sensorial é pelo menos tão legítimo quanto o gerado pela racionalidade científica ou filosófica, causa arrepios, desperta menosprezo e estufa o peito dos integrantes da nata dos círculos científicos e escolas filosóficas em moda. Como seria salutar que se levasse a sério a advertência de Teilhard de Chardin quando afirma que as teorias não costumam “durar mais que uma manhã de verão”, para serem substituídas  por outras não menos fugazes. Cabe ao conhecimento intuitivo o papel de “melodia subliminar”, no entender do Pe. Rambo,  que confere continuidade, solidez e razão de ser às mais diversas forma de lidar com a natureza e perceber a mega síntese  na pluralidade de sua manifestações e tentar entender  “como funciona”, “donde vem”,  “o porque ela é assim” e “para onde vai”. Vai nesse sentido a advertência do Papa.

Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima  com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se pelos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio ambiente. ( ... ) Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida a um sincero amor pelos seres humanos e um compromisso constante com os problemas da sociedade. (Laudato si, 91)

A citação  extraída da Encíclica  com que encerramos a reflexão anterior abre caminho para mais uma. Na verdade trata-se do aprofundamento das consequências quando o posicionamento de alguém fundamenta  o relacionamento com o seu entorno natural numa concepção holística, ontologicamente unitária da Natureza e a humanidade fazendo parte dela, ou rebaixa o mundo que o cerca  a uma fonte de recursos que podem ser explorados até a exaustão. Infelizmente, esta é a sombra que vem perturbando as nossas reflexões e paira como uma incógnita incômoda  sobre o possível retorno da humanidade a uma relação sustentável, mais ainda, uma relação de fraternidade com “sua mãe e pátria” e repensando a “sua casa” como um lugar onde é possível oferecer condições reais e plenas para o que de humano tem nas pessoas.  O Papa resumiu  essa questão na Encíclica sobre o meio ambiente quando  alertou:

Além disso, quando  o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença ou  crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. (Laudato si, 92)