REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 51

O primeiro equívoco, resume-se no fato de que a espécie humana é considerada como a coroação dos potenciais da evolução e como tal ocupa uma posição privilegiada e especial na natureza. Como já foi insistido mais acima, o homem é dotado de inteligência reflexa, de consciência moral capaz de distinguir o bem do mal e, ao mesmo tempo, é dotado de liberdade para escolher o bem ou o mal. Não há dúvida de que essa visão, se bem entendida, goza de toda a legitimidade. Acontece, porém, que esses dotes exclusivos, se mal avaliados podem levar, como levam, a uma auto estima indevida que faz o homem  assumir-se como  senhor da natureza e dos seus recursos. A consequência prática dessa cosmovisão levada ao extremo resulta na prática na dicotomia em que homem e natureza são duas realidades pela sua própria natureza ontologicamente distintas. Nessa perspectiva a espécie humana deixa de ser “Adam”, isto é, “o nascido da terra”, ou deixa de fazer sentido a advertência que acompanha a liturgia na aplicação das cinzas na quarta-feira da semana em que começa a quaresma: “Lembra-te mortal que és pó e ao pó retornarás”. Os que adotam esse princípio como baliza para a vida prática lidam com os recursos naturais e agem como se fossem seus senhores ou seus donos. Assim fica livre a aplicação do princípio darwinista da seleção natural como regra mestra a reger as relações humanas em todos os seus níveis, também, e principalmente, no acesso e uso fruto dos recursos naturais. Identificamos assim uma das causas determinantes do nível de degradação da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”, que nos abriga e nos sustenta. Os mais espertos, ignoram que os  recursos naturais são um bem comum pelo fato de serem uma condição sem a qual, não só a vida em si, mas uma mínimo de dignidade no viver, depende do acesso a esses bens numa quantidade e qualidade decente. Os grandes vilões da degradação ambiental em todos os seus níveis e formas podem ser encontrados nas cúpulas dos poderes políticos, nos escritórios dos poderosos da economia e dos formuladores de estratégias no plano geopolítico, geoeconômico e geoestratégico. Como seus objetivos resumem-se em poder e posses, são apátridas por natureza. Podem ser encontrados com o mesmo espírito predatório e ambição sem freios, tanto no mundo “capitalista”, quanto no “socialista”. No primeiro caso a responsabilidade  maior pesa sobre os empreendimentos privados e a livre competição entre os cidadãos. No segundo caso a responsabilidade fica por conta dos governos centralizadores sustentados por ditadores e suas nomenclaturas que se refestelam até a saciedade dos recursos disponíveis e deixam à mingua povos inteiros. Stalin já declarava que a forma mais eficaz para  controlar o povo é pela fome subtraindo-lhe os alimentos  e de cobro ainda agradece pelas migalhas que lhe deixamos. Aplicou na prática esse principio e o resultado foi  um genocídio de entre 4 a 5 milhões de ucranianos mortos de fome.  Propostas como a privatização dos mananciais de água por parte de megaempresários e/ou políticos, não passam de sinais alarmantes da concentração sob o arbítrio de poucos de um bem que significa a própria viabilidade da vida. Que se pague um preço justo pelo tratamento da água, nada a opor, mas transformar os mananciais naturais em mercadoria e instrumentos de poder geoeconômico, geopolítico político ou estratégico, ultrapassa os limites justificáveis e toleráveis da prepotência de uma mentalidade que ignora os princípios éticos mais elementares da convivência humana. Até agora não se falou, mas o que não parece impossível nesse panorama, seriam propostas e projetos de privatização do ar que respiramos.

Deixamos de notar  que alguns se arrastam numa miséria degradante sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer o que fazer ao que tem, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos. (Laudato si, 90)

Em segundo lugar, a inegável superioridade  da espécie humana em relação às demais pelas características acima apontadas: inteligência reflexa, consciência moral do que é certo e errado e liberdade para seguir ou não seguir o que a consciência aponta como certo ou errado. Essa constatação faz com que a espécie humana  represente uma grande comunidade na diversidade de suas raças, cores, tradições culturais, crenças religiosas, capacidade de perceber não só a utilidade da natureza que a cerca, como também os estímulos emocionais, a harmonia de suas paisagens, o belo de suas manifestações e a busca da harmonia e perfeição pessoal e coletiva sugeridas pela criação.

Essa constatação não  anula o pressuposto que defendemos, isto é, que a espécie humana encontra-se existencialmente, melhor, ontologicamente  inserida na natureza, tanto no que lhe é comum com seus componentes anorgânicos e orgânicos, quanto os nano e micro organismos e todas formas de vida vegetal e animal. O pertencimento como um dos seus elementos, e por sinal, o mais  completo e perfeito, encontra o seu argumento mais sutil na própria realização daquilo que em outras ocasiões chamamos de “o humano” no homem– “Die Menschlichkeit”. A percepção da harmonia, das belezas naturais, das emoções em todos os seus matizes, são captados pelos cinco sentidos e transformados em vivências existenciais não pela racionalidade indutiva da Ciência nem da dedutiva da Filosofia que tem a sua sede no cérebro. Esse tipo de conhecimento da Natureza tem como fonte e explicação a capacidade intuitiva que tem como sede o coração.  Para tanto não se pressupõe um nível de treinamento formal e  sofisticado nem uma inteligência mais apurada. Tanto uma criança, quanto uma pessoa “iletrada”, um camponês, um operário  ou um cientista, filósofo ou teólogo de alto nível acadêmico, portador de distinções tipo prêmio Nobel, percebem a beleza de uma flor, a harmonia de uma paisagem, o encanto de um sabiá cantando, a majestade de uma montanha coberta de neve, o mistério que se esconde na penumbra de uma floresta, o belo assustador de uma tempestade de verão. A conclusão parece óbvia. É nesse nível que acontece o viver e conviver da espécie humana ontologicamente inserida na natureza como todos os demais seres vivos. De outra parte não se pode esquecer que no decorrer  de no mínimo 90% da sua história, a humanidade dispôs apenas dessas ferramentas para relacionar-se com seu entorno geográfico, para suprir as necessidades de sua sobrevivência e perpetuar-se como espécie. Ao mesmo tempo, porém, com essas mesmas ferramentas alimentou a curiosidade de entender o ser e o acontecer do mundo, “sua casa”, e  dar vasão ao potencial sem fim de o coração usufruir e degustar  com o que a “mãe e pátria” o presenteia. É oportuno chamar a atenção que os métodos e ferramentas da investigação científica, as escolas filosófica e teológicas que lidam racionalmente com a natureza foram formuladas e postas em prática no máximo nos últimos 5% da história da humanidade. O ritmo da racionalização da natureza foi-se acelerando na medida que se aperfeiçoaram essas ferramentas. Chegamos a um ponto em que só merece ser considerado conhecimento aquele que resulta, “preto no branco”, do emprego de métodos e instrumentos científicos ou de silogismos irretocáveis. Admitir que o conhecimento via intuição, via percepção sensorial é pelo menos tão legítimo quanto o gerado pela racionalidade científica ou filosófica, causa arrepios, desperta menosprezo e estufa o peito dos integrantes da nata dos círculos científicos e escolas filosóficas em moda. Como seria salutar que se levasse a sério a advertência de Teilhard de Chardin quando afirma que as teorias não costumam “durar mais que uma manhã de verão”, para serem substituídas  por outras não menos fugazes. Cabe ao conhecimento intuitivo o papel de “melodia subliminar”, no entender do Pe. Rambo,  que confere continuidade, solidez e razão de ser às mais diversas forma de lidar com a natureza e perceber a mega síntese  na pluralidade de sua manifestações e tentar entender  “como funciona”, “donde vem”,  “o porque ela é assim” e “para onde vai”. Vai nesse sentido a advertência do Papa.

Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima  com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se pelos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio ambiente. ( ... ) Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida a um sincero amor pelos seres humanos e um compromisso constante com os problemas da sociedade. (Laudato si, 91)

A citação  extraída da Encíclica  com que encerramos a reflexão anterior abre caminho para mais uma. Na verdade trata-se do aprofundamento das consequências quando o posicionamento de alguém fundamenta  o relacionamento com o seu entorno natural numa concepção holística, ontologicamente unitária da Natureza e a humanidade fazendo parte dela, ou rebaixa o mundo que o cerca  a uma fonte de recursos que podem ser explorados até a exaustão. Infelizmente, esta é a sombra que vem perturbando as nossas reflexões e paira como uma incógnita incômoda  sobre o possível retorno da humanidade a uma relação sustentável, mais ainda, uma relação de fraternidade com “sua mãe e pátria” e repensando a “sua casa” como um lugar onde é possível oferecer condições reais e plenas para o que de humano tem nas pessoas.  O Papa resumiu  essa questão na Encíclica sobre o meio ambiente quando  alertou:

Além disso, quando  o coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença ou  crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. (Laudato si, 92)


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