O
primeiro equívoco, resume-se no fato de que a espécie humana é considerada como
a coroação dos potenciais da evolução e como tal ocupa uma posição privilegiada
e especial na natureza. Como já foi insistido mais acima, o homem é dotado de
inteligência reflexa, de consciência moral capaz de distinguir o bem do mal e,
ao mesmo tempo, é dotado de liberdade para escolher o bem ou o mal. Não há
dúvida de que essa visão, se bem entendida, goza de toda a legitimidade.
Acontece, porém, que esses dotes exclusivos, se mal avaliados podem levar, como
levam, a uma auto estima indevida que faz o homem assumir-se como senhor da natureza e dos seus recursos. A
consequência prática dessa cosmovisão levada ao extremo resulta na prática na
dicotomia em que homem e natureza são duas realidades pela sua própria natureza
ontologicamente distintas. Nessa perspectiva a espécie humana deixa de ser
“Adam”, isto é, “o nascido da terra”, ou deixa de fazer sentido a advertência
que acompanha a liturgia na aplicação das cinzas na quarta-feira da semana em
que começa a quaresma: “Lembra-te mortal que és pó e ao pó retornarás”. Os que
adotam esse princípio como baliza para a vida prática lidam com os recursos
naturais e agem como se fossem seus senhores ou seus donos. Assim fica livre a
aplicação do princípio darwinista da seleção natural como regra mestra a reger
as relações humanas em todos os seus níveis, também, e principalmente, no
acesso e uso fruto dos recursos naturais. Identificamos assim uma das causas
determinantes do nível de degradação da “nossa casa”, da “nossa mãe e pátria”,
que nos abriga e nos sustenta. Os mais espertos, ignoram que os recursos naturais são um bem comum pelo fato
de serem uma condição sem a qual, não só a vida em si, mas uma mínimo de
dignidade no viver, depende do acesso a esses bens numa quantidade e qualidade
decente. Os grandes vilões da degradação ambiental em todos os seus níveis e
formas podem ser encontrados nas cúpulas dos poderes políticos, nos escritórios
dos poderosos da economia e dos formuladores de estratégias no plano geopolítico,
geoeconômico e geoestratégico. Como seus objetivos resumem-se em poder e
posses, são apátridas por natureza. Podem ser encontrados com o mesmo espírito
predatório e ambição sem freios, tanto no mundo “capitalista”, quanto no
“socialista”. No primeiro caso a responsabilidade maior pesa sobre os empreendimentos privados
e a livre competição entre os cidadãos. No segundo caso a responsabilidade fica
por conta dos governos centralizadores sustentados por ditadores e suas
nomenclaturas que se refestelam até a saciedade dos recursos disponíveis e
deixam à mingua povos inteiros. Stalin já declarava que a forma mais eficaz
para controlar o povo é pela fome
subtraindo-lhe os alimentos e de cobro
ainda agradece pelas migalhas que lhe deixamos. Aplicou na prática esse
principio e o resultado foi um genocídio
de entre 4 a 5 milhões de ucranianos mortos de fome. Propostas como a privatização dos mananciais
de água por parte de megaempresários e/ou políticos, não passam de sinais
alarmantes da concentração sob o arbítrio de poucos de um bem que significa a
própria viabilidade da vida. Que se pague um preço justo pelo tratamento da
água, nada a opor, mas transformar os mananciais naturais em mercadoria e
instrumentos de poder geoeconômico, geopolítico político ou estratégico,
ultrapassa os limites justificáveis e toleráveis da prepotência de uma
mentalidade que ignora os princípios éticos mais elementares da convivência
humana. Até agora não se falou, mas o que não parece impossível nesse panorama,
seriam propostas e projetos de privatização do ar que respiramos.
Deixamos de notar que alguns se arrastam numa miséria
degradante sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem
sequer o que fazer ao que tem, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade
e deixam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível
de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na
prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que outros,
como se tivessem nascido com maiores direitos. (Laudato si, 90)
Em
segundo lugar, a inegável superioridade
da espécie humana em relação às demais pelas características acima
apontadas: inteligência reflexa, consciência moral do que é certo e errado e
liberdade para seguir ou não seguir o que a consciência aponta como certo ou
errado. Essa constatação faz com que a espécie humana represente uma grande comunidade na
diversidade de suas raças, cores, tradições culturais, crenças religiosas,
capacidade de perceber não só a utilidade da natureza que a cerca, como também
os estímulos emocionais, a harmonia de suas paisagens, o belo de suas
manifestações e a busca da harmonia e perfeição pessoal e coletiva sugeridas
pela criação.
Essa
constatação não anula o pressuposto que defendemos,
isto é, que a espécie humana encontra-se existencialmente, melhor,
ontologicamente inserida na natureza,
tanto no que lhe é comum com seus componentes anorgânicos e orgânicos, quanto
os nano e micro organismos e todas formas de vida vegetal e animal. O
pertencimento como um dos seus elementos, e por sinal, o mais completo e perfeito, encontra o seu argumento
mais sutil na própria realização daquilo que em outras ocasiões chamamos de “o
humano” no homem– “Die Menschlichkeit”. A percepção da harmonia, das belezas
naturais, das emoções em todos os seus matizes, são captados pelos cinco
sentidos e transformados em vivências existenciais não pela racionalidade
indutiva da Ciência nem da dedutiva da Filosofia que tem a sua sede no cérebro.
Esse tipo de conhecimento da Natureza tem como fonte e explicação a capacidade
intuitiva que tem como sede o coração.
Para tanto não se pressupõe um nível de treinamento formal e sofisticado nem uma inteligência mais
apurada. Tanto uma criança, quanto uma pessoa “iletrada”, um camponês, um
operário ou um cientista, filósofo ou
teólogo de alto nível acadêmico, portador de distinções tipo prêmio Nobel,
percebem a beleza de uma flor, a harmonia de uma paisagem, o encanto de um sabiá
cantando, a majestade de uma montanha coberta de neve, o mistério que se
esconde na penumbra de uma floresta, o belo assustador de uma tempestade de
verão. A conclusão parece óbvia. É nesse nível que acontece o viver e conviver
da espécie humana ontologicamente inserida na natureza como todos os demais
seres vivos. De outra parte não se pode esquecer que no decorrer de no mínimo 90% da sua história, a
humanidade dispôs apenas dessas ferramentas para relacionar-se com seu entorno
geográfico, para suprir as necessidades de sua sobrevivência e perpetuar-se
como espécie. Ao mesmo tempo, porém, com essas mesmas ferramentas alimentou a
curiosidade de entender o ser e o acontecer do mundo, “sua casa”, e dar vasão ao potencial sem fim de o coração
usufruir e degustar com o que a “mãe e
pátria” o presenteia. É oportuno chamar a atenção que os métodos e ferramentas
da investigação científica, as escolas filosófica e teológicas que lidam
racionalmente com a natureza foram formuladas e postas em prática no máximo nos
últimos 5% da história da humanidade. O ritmo da racionalização da natureza
foi-se acelerando na medida que se aperfeiçoaram essas ferramentas. Chegamos a
um ponto em que só merece ser considerado conhecimento aquele que resulta,
“preto no branco”, do emprego de métodos e instrumentos científicos ou de
silogismos irretocáveis. Admitir que o conhecimento via intuição, via percepção
sensorial é pelo menos tão legítimo quanto o gerado pela racionalidade
científica ou filosófica, causa arrepios, desperta menosprezo e estufa o peito
dos integrantes da nata dos círculos científicos e escolas filosóficas em moda.
Como seria salutar que se levasse a sério a advertência de Teilhard de Chardin
quando afirma que as teorias não costumam “durar mais que uma manhã de verão”,
para serem substituídas por outras não
menos fugazes. Cabe ao conhecimento intuitivo o papel de “melodia subliminar”,
no entender do Pe. Rambo, que confere
continuidade, solidez e razão de ser às mais diversas forma de lidar com a
natureza e perceber a mega síntese na
pluralidade de sua manifestações e tentar entender “como funciona”, “donde vem”, “o porque ela é assim” e “para onde vai”. Vai
nesse sentido a advertência do Papa.
Não pode ser autêntico um
sentimento de união íntima com os outros
seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e
preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o
tráfico de animais em risco de extinção, mas fica completamente indiferente
perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se pelos pobres ou procura destruir
outro ser humano de que não gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio
ambiente. ( ... ) Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação
pelo meio ambiente, unida a um sincero amor pelos seres humanos e um compromisso
constante com os problemas da sociedade. (Laudato si, 91)
A
citação extraída da Encíclica com que encerramos a reflexão anterior abre
caminho para mais uma. Na verdade trata-se do aprofundamento das consequências
quando o posicionamento de alguém fundamenta
o relacionamento com o seu entorno natural numa concepção holística,
ontologicamente unitária da Natureza e a humanidade fazendo parte dela, ou
rebaixa o mundo que o cerca a uma fonte
de recursos que podem ser explorados até a exaustão. Infelizmente, esta é a
sombra que vem perturbando as nossas reflexões e paira como uma incógnita
incômoda sobre o possível retorno da
humanidade a uma relação sustentável, mais ainda, uma relação de fraternidade
com “sua mãe e pátria” e repensando a “sua casa” como um lugar onde é possível
oferecer condições reais e plenas para o que de humano tem nas pessoas. O Papa resumiu essa questão na Encíclica sobre o meio
ambiente quando alertou:
Além disso, quando o coração está verdadeiramente aberto a uma
comunhão universal, nada e ninguém fica excluído desta fraternidade. Portanto,
é verdade também que a indiferença ou
crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma
forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos.
O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda
a manifestar-se na relação com as outras pessoas. (Laudato si, 92)