Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 46 -

A mensagem da natureza e suas criaturas 

Aos bispos do Canadá, do Japão, de João Paulo II e Paul Ricoeur, invocados nesta passagem da Encíclica, podemos somar a manifestação do Presidente Clinton ao anunciar oficialmente a conclusão do mapa genético da espécie humana, já citada em outo momento. Parece que aqui é o lugar oportuno para distinguir entre os diversos níveis em que a mensagem da natureza é recebida. Melhor talvez, a que tipo de pessoas se destina essa mensagem e como elas recebem essa mensagem e seus significados.

O primeiro nível, caracteriza-se por mensagens eminentemente práticas, utilitaristas, primárias e imediatistas. A floresta, os animais, os campos naturais, os rios e os oceanos, chamam a atenção pelo que  oferecem para suprir as demandas básicas da sobrevivência física. Entre os coletores do paleolítico as árvores e arbustos chamavam a atenção e tinham seu valor nos frutos que ofereciam, outros vegetais pelas raízes e tubérculos. Aos  caçadores e pescadores daquele mesmo período, interessavam os animais passíveis de caça que chamavam a atenção. As mensagens das frutas, tubérculos e raízes e animais de caça, ao homem antigo, eram simples, diretas e pragmáticas: estamos aqui para alimentá-lo, tranquilizar o estômago e evitar que morra de fome. Este mesmo nível de mensagem orientou também os agricultores e pastores do neolítico e continua ditando as regras, em proporções geometricamente multiplicadas, na agricultura familiar e no agronegócio de hoje. Se nos dermos o trabalho de seguir a linha mestra da relação homem-natureza, verificamos que é ditada pela motivação do suprimento  da existência material-física da espécie humana. A mensagem de uma árvore coberta de frutas, um pé de inhame ou mandioca, uma castanheira carregada de castanha, um carvalho com bolotas, era simples e direta: “Colhe meus frutos e escava minhas raízes e não morrerás de fome”. A mesma mensagem vale para o  porco selvagem, o antílope, o peixe do arroio e da lagoa. Uma antiga “Oração da Floresta”, de procedência francesa, citada por Hornsmann, dá bem uma noção do que estamos falando.

Homem, eu sou o calor do teu lar nas noites frias de inverno, a sombra protetora  no calor do sol do verão. Sou a armação do telhado da tua casa, a tábua da tua mesa. Sou o leito em que dormes e a madeira com que constróis teus barcos, eu sou o cabo do teu machado e a porta da tua cabana. Sou a madeira do teu berço e as tábuas do teu esquife. Sou o pão da bondade, a flor da beleza. Escuta minha oração e não me destrói. (Hornsmann, 1955, p. 69)

É sobre esta concepção primária e utilitarista que costumam ser conduzidos os encontros e convenções em nível regional, nacional ou internacional, que tem como objeto a conservação e a proteção de meio ambiente.

O segundo nível. Acontece que o ser humano busca muito mais do que alimento e abrigo no seu relacionamento com o habitat natural. O convívio do animal como o meio ambiente termina neste nível. Já o homem dotado de inteligência reflexa sobe para um nível superior nessa relação. Desde o momento em que a centelha da inteligência reflexa do primeiro da nossa espécie, cintilou em alguma savana da África, ou  em qualquer outro local do nosso planeta, consolidou-se uma relação que ultrapassou o nível prosaico do alimentar-se, abrigar-se e cuidar da perpetuação da espécie. Com olhar curioso e inquiridor o homem embrenhava-se  nas florestas, percorria estepes e savanas, adentrava desertos, escalava montanhas, vasculhava florestas, banhava-se nos rios e lagos. Observando, experimentando, comparando, distinguindo, refletindo, foi aprendendo a identificar  e a selecionar o que a natureza lhe oferecia em alimentos, vestuário e abrigo. Sem demora as reflexões levaram esses seres humanos, que denominamos com certo ar de desprezo de “primitivos”, “selvagens” ou “bárbaros”, a equipar as mãos com artefatos, instrumentos e ferramentas que tornava menos trabalhoso e mais rendoso o acesso aos alimentos e as às matérias primas para confeccionar as vestimentas e abrigos, mais segura a defesa e mais eficiente a proteção contra as intempéries.

E, assim, estavam postas as premissas para começar, lentamente, numa dinâmica autoalimentada e num ritmo sempre mais acelerado, a simbiose entre o homem e suas florestas, rios, montanhas, estepes, desertos savanas. trópicos e climas temperados e frios. Neste conviver íntimo e diuturno com o habitat despertou e cresceu a curiosidade pelo sentido  que se escondia atrás dos fatos e fenômenos da natureza, as incógnitas e os mistérios com que  se deparava no quotidiano. O nascer, o viver e morrer do homem e dos animais, os ciclos da natureza, a alternância das estações do ano, o curso diário do sol, as fases da lua, o nascer, crescer e fenecer das plantas, o amadurecer das frutas, tudo desafiava a curiosidade e a compreensão. E na procura de respostas tomou formato um corpo de conhecimentos, simbologias, crenças e mitologias que terminariam por compor a cosmovisão peculiar de  cada espaço geográfico individual.

Desde  logo o ato de alimentar-se, vital para a sobrevivência física, ultrapassaria o nível do instintivo e compulsório fazendo-se acompanhar de procedimentos natureza cultural como hábitos, etiquetas, boas maneiras, proibições, tabus, etc. O ato de alimentar-se vai assumindo entre todas culturas as características de um ritual. Mais. Os próprios alimentos passaram a fazer parte integrante das culturas como sagrados, dotados de poderes mágicos, milagrosos, maléficos, impuros, ou simplesmente prejudiciais à saúde.

O convívio do homem com a natureza ensinou-lhe caminhos e formas de como conviver melhor com ela e consolidar com ela uma parceria e torná-la uma aliada sempre presente na construção e consolidação das culturas.

A relação imediata, íntima  e diuturna com que a natureza despertou no homem a percepção de fazer existencialmente parte dela. Além de dela depender para a vida e a morte, a sua vida se desenrola na mesma cadência e nos mesmos ciclos. E, neste conviver simbiótico a humanidade constrói  suas culturas, sua história, suas simbologias, mitologias, crenças, religiões, seus rituais, seus sistemas enfim, sua cosmovisão. Tudo em sua volta, por assim dizer, se animava, se personalizava de acordo com o significado material somado ao imaginário que as diversas culturas lhe acrescentavam. Consolidou-se desta maneira um espelhar-se mútuo entre o homem  e seu habitat. E, no andar desse processo de interação, as culturas foram desenhando seus contornos, a identidade individual e coletiva  definindo suas características e a História traçando o seu rumo.

Deus escreveu um livro estupendo, cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presente no universo. ( ... ) podemos afirmar que, ao lado da revelação propriamente dita nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina no despontar do sol, no cair da noite. Prestando atenção a esta manifestação o ser humano aprende  a reconhecer a si mesmo na revelação com as outras criaturas. (Laudato si, 85).

A  reflexões que  nos conduziram até aqui, tendo como linha orientadora a Encíclica Laudato si, desdobram diante de nós um cenário de novas e fascinantes perspectivas. A história da humanidade com suas múltiplas culturas vem a ser o resultado dos ensinamentos da leitura e  interpretação do monumental “Livro” que vem a ser a natureza. É compreensível que em cada momento dessa história se tenha feito uma  interpretação singular dos códigos secretos escondidos nos fenômenos físicos, nas plantas,  animais e no próprio homem.

Dispensam-se teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a história, a fim de nos convencermos do acerto dessa afirmação. Entre os povos agricultores, o sol e a lua, imprimindo com seus ciclos regulares, a cadência da natureza, tornaram-se referência da própria dinâmica da história. Em torno do nascer e do por dos sol, da alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o homem foi elaborando e construindo todo um universo simbólico, todo um universo de costumes, de hábitos, valores, crenças, cultos e rituais. O sol define  os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento, o florescimento, a maturação dos frutos e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo do germinar, nascer, crescer, amadurecer, declinar  e morrer, fenômenos pela sua natureza biológicos, climáticos, geográficos, astronômicos, cosmológicos, transformaram-se em fatores causais  de fundamental importância na consolidação da identidade dos povos e suas culturas. A primavera veio  a simbolizar o desabrochar da vida; o verão o vigor e a plenitude da vida; o outono a colheita dos bons ou maus frutos; o inverno, o declínio e finalmente a morte para, em seguida germinar nova vida e recomeçar o interminável ir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e dos ciclos da vida confundem-se simbolicamente numa única e mesma dinâmica. Fala-se em primavera da vida e a idade é contada em primaveras. Pela sua importância em não poucas culturas, o sol é cultivado como uma divindade e a lua uma deusa.

No mesmo sentido vai toda uma compreensão de outras realidades naturais. Cito apenas algumas mais. A água indispensável para a vida figura como objeto de veneração na história. Água e vida tornaram-se sinônimos. Como a água que dá vida é, por excelência,  aquela que se bebe nas fontes, à água brotando da rocha ou das entranhas da terra, atribuem-se às próprias fontes propriedades curativas especiais, efeitos mágicos, milagrosos, regeneradores. Banhar-se, por ex., no primeiro dia do ano num fonte promete vida longa e saudável.

Pelo mistério natural que costuma envolver montanhas, lagos, mares e oceanos, eles terminaram por personificar figuras mitológicas ou representar lugares sagrados, que passaram para o imaginário dos povos na forma de crenças, mitos, tabus, etc. Os deuses e deusas do universo mitológico grego no monte Olimpo, distantes dos homens, entregavam-se às suas intrigas e pouco se importavam  com o que acontecia no quotidiano dos mortais. Uma atitude olímpica tornou-se sinônimo de postura sobranceira, distante, alienada e desprezadora da realidade, acima do bem e do mal. O vulcão Fuji simboliza a história do povo japonês. Espíritos que não tolera a presença do homem povoavam lagos como ode Lhanguhe no Chile, fazendo com as proximidades permanecessem despovoadas até a chegada dos imigrantes alemães em meados do século XIX.

Poderíamos continuar enumerando ao indefinido os vínculos e as relações das culturas e identidades com o entorno físico-geográfico.

No decorrer do Mesolítico, período de transição entre o Paleolítico e o Neolítico, coletores de caçadores  deram um passo revolucionário na busca do controle do suprimento de suas necessidades básicas de sobrevivência. Darcy Ribeiro chamou essa conquista de “Revolução dos Alimentos” e Edward Wilson de a “Primeira Traição à Natureza”. Como já analisamos em outra ocasião, ambos têm razão, do ponto de vista peculiar que cada qual entendeu o fenômeno. O convívio com os animais, a observação dos seus hábitos, deixaram claro que havia uma grande diferença entre as muitas espécies que partilhavam o mesmo espaço geográfico com o homem. Uns agrediam, outros evitavam a presença do homem, outros ainda ariscos fugiam da proximidade dos humanos. Havia-os também que se acostumaram com a presença dos acampamentos  dos caçadores e coletores e, com o tempo, com os próprios humanos. E neste convívio, de observação em observação, de tentativa em tentativa, algumas espécies sob os mais diversos aspectos passaram a fazer parte do quotidiano e da rotina diária. Foi mais do que natural que neste relacionamento o homem fosse identificando as melhores formas de lidar com as diversas espécies, experimentasse influir nos seu comportamento, induzisse novas formas de conduta e assim amoldá-las aos seus propósitos.  Deve ter sido assim que o acúmulo de experiências e a soma de resultados, levou à domesticação de espécies fornecedoras de alimentos e abrigo como ovinos, bovinos suínos, espécies auxiliares  nas atividades diárias  como o cão de guarda e espécies empregadas no transporte de carga, tração e montaria. Essa transição evidentemente não aconteceu de um dia para o outro. Foram necessários séculos e milênios para que aos caçadores nômades sucedessem os pastores e criadores. Essa passagem  representou um passo gigantesco para o homem em direção à libertação da imposição da natureza e assumir gradativamente o controle sobre os recursos indispensáveis à sobrevivência.

Ao mesmo tempo em que a domesticação e consequentemente o manejo de animais domésticos consolidou uma base  confiável e controlável para a subsistência, aconteceu uma revolução semelhante e de repercussão não menos significativa no suprimento dos recursos de origem vegetal. A observação, a experiência acumulada com a coleta de frutas, raízes e tubérculos, levaram ao cultivo das espécies úteis. Essa domesticação de plantas resultou no aperfeiçoamento gradativo das técnicas de como lidar com as espécies úteis e, ao mesmo tempo, acrescentar sempre mais novas espécies e variedades cultivadas.

Tanto a domesticação de animais, quanto a “domesticação” de plantas resultou numa completa revolução na relação do homem com seu ambiente natural. É difícil saber quais foram as primeiras espécies de animais domesticados. As evidências que vestígios de ovelhas, cabras, jumentos, bovinos, além de cães, aparecem como dos mais antigos. Mas não são tanto as espécies em si que fizeram a diferença  nessa mudança de relação com o habitat natural, Os pastores e criadores foram em busca de pastagens nas quais seus rebanhos se pudessem multiplicar e garantir um retorno abundante de carne, leite,  lã, peles, chifres e ossos. Os criadores começaram a viver em acampamentos seminômades. Deslocavam-se por territórios variáveis de acordo com a disponibilidade de pastagens. O quotidiano desses pastores consumia-se em função dos rebanhos e uma cultura toda  voltada para o pastoreio começou a povoar as savanas  da África, as estepes semiáridas, na periferia dos desertos do Oriente Médio e Próximo e nas estepes da Euro-Ásia. Não há necessidade de insistir que a cultura desses povos nômades ou seminômades assumisse contornos com marcas diferenciais inconfundíveis. Sem falar na cultura material, consolidou-se um tipo de organização social com flagrante predominância do patriarcado. O imaginário, as crenças, os cultos buscaram a inspiração na dinâmica dos rebanhos, na dinâmica da vida nos acampamentos e, não em último lugar, nos fenômenos naturais sempre presentes. Fatos do quotidiano como nascer, crescer, viver e morrer inspiravam poetas, cantores e músicos. Aos astros coube um significado todo especial na vida desses povos. O ir e voltar do sol responsável pela alternância dos dias e noites, as fases da lua, a alternância das estações do ano, transformaram o sol e  lua em personalidades mitológicas, reverenciadas como entidades sobrenaturais, merecendo senão exigindo cultos e rituais. A vida em tendas e acampamentos móveis, as vigílias noturnas junto aos rebanhos induziram uma relação toda própria entre os pastores e o firmamento estrelado. Não tardou que notassem que esse universo nada tinha de estático. Os astros movimentavam-se  numa coreografia disciplinada, percorrendo roteiros traçados por leis imutáveis. De tempos em tempos essa dança sofria intromissões de fenômenos estranhos. O sol e lua passavam por eclipses, clarões estranhos iluminavam as noites escuras ou algum astro peregrino emergia do desconhecido, passava pelo firmamento para, em seguida submergir de novo no desconhecido. O inusitado e o mistério que acompanhavam a passagem de cometas, queda de meteoros, devem  ter impressionado os pastores em suas noites de vigília e mexido com seu imaginário. E, observando a galáxia em  noites sem nuvens, os conjuntos de estrelas e as constelações, foram assumindo contornos de figuras de animais familiares como o cão, o capricórnio, a ursa, os peixes, o touro, o leão e outros mais. O firmamento acima de suas cabeças foi-se povoando de criaturas imaginárias, réplicas daquelas com as quais convivia na realidade concreta do quotidiano.

Não é de se admirar que as raízes da astrologia e os mais antigos conhecimentos de astronomia devem ser procurados entre  os pastores de ovelhas e caras do Neolítico. A relação real ou imaginária que se consolidou, a partir daí, entre o curso, a configuração e a posição dos astros e a sorte e o destino do homem, não parou de aprofundar. Mesmo hoje em que o progresso científico desvendou em grande parte os mistérios do universo, o interesse pelo horóscopo não perdeu nem público nem popularidade incluindo um número nada desprezível entre as camadas mais cultas e ilustradas. Os fenômenos cósmicos e demais realidades que integravam o habitat, “a casa”, em que se consumia a existência dos pastores do Neolítico, incorporados no quotidiano de suas culturas, são uma prova de que o homem se vê existencialmente inserido como uma realidade superior no seu universo. Se levássemos avante e aprofundássemos mais essas reflexões  desembocaríamos com certeza em discussões filosóficas do tipo que levaram Espinosa a formular a concepção panteísta do mundo, Teilhard de Chardin a formular a sua grandiosa unidade universal, Ludwig von Bertalanffy apresentar a unidade organísmica e  sistêmica da natureza, Nicolau de Cusa ensinar que as partes refletem o todo. Entretanto não é  aqui nem o momento nem o lugar para aprofundar a reflexão nessa perspectiva.

Simultaneamente, no espaço e no tempo, aconteceu a “Revolução Agrícola”. Evoluiu paralela à “Revolução Pastoril” e disputando territórios com ela. O manejo controlado das plantas  teve, ao lado do potencial incalculável das novas perspectivas de prover as necessidades básicas da sobrevivência, uma profunda revolução  na relação do homem com seu entorno físico-geográfico. Da condição de total dependente das vicissitudes naturais os povos agricultores passaram  a se valer de mais e melhores tecnologias, melhorando os métodos de plantio, identificando mais espécies de plantas passíveis de manejo e, desde muito cedo, manipulando pela seleção e cruzamento diversas variedades nativas, obtendo híbridos mais produtivos. O homem e a natureza construíram, por assim dizer, uma aliança e solidificaram uma relação de mutualidade que serviu de trampolim para um salto de qualidade sem precedentes. Foi a largada para a consolidação da simbiose entre o habitat natural e as culturas. O resultado dessa parceria entre o homem agricultor e seu chão fizeram-se sentir de muitas maneiras. Sem privilegiar uma ou outra, apontemos as que parecem mais importantes.


O preparo da terra, a semeadura, o cuidado com o desenvolvimento das plantas, a colheita e o recomeço de um novo ciclo agrícola, selaram o fim da vida itinerante exigida pela coleta. Os agricultores abandonaram a vida errante e instalaram as moradias em aldeias definitivas. O chão preferido pelos povos agrícolas foram as terras planas ao longo dos grandes rios na África, Oriente Médio e Próximo, Índia e China. Assim, a partir do momento em que dispomos de dados históricos  mais precisos, encontramos o vale do Nilo, do Eufrates e Tigre, do Indo e Ganges, do Yangze, Amur e Hoango e muitos outros vales de rios, cobertos por um mosaico de terras cultivadas e pontilhadas por inúmeras aldeias. Em pontos estratégicos, centros urbanos polarizavam as atividades de regiões maiores. O gigantesco potencial de progresso desse processo de humanização da paisagem que se desencadeou a partir da “domesticação” das primeiras plantas úteis, ainda não está esgotado. Das várzeas dos rios a agricultura avançou obre as encostas de montanhas, tomou o lugar das florestas, transformou em grande parte estepes, savanas, pradarias e campos naturais, impulsionada por sempre novas tecnologias de manejo dos solos e espécies de plantas. Em regiões inteiras reduziu as sobras da vegetação original em curiosidades ecológicas. Acontece que as necessidades básicas do homem de 15000 anos passados e do começo do terceiro milênio, continuam as mesmas. E quem fornece os alimentos, são ainda hoje os criadores  de animais e os agricultores, munidos pelas descobertas científicas e o aperfeiçoamento das tecnologias de produção. Com isso o processo de humanização acelera-se num ritmo geométrico, avançando sobre as últimas paisagens naturais. Em não poucos casos os métodos empregados e a ausência  de critérios, tornam evidente que se chegou a um limite crítico. Continuando nessa direção corre-se o sério risco da quebra do equilíbrio na simbiose entre cultura e meio ambiente.

Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 45 -

O destino dos bens da Natureza

Um número crescente de cientistas e filósofos da Natureza, vão concluindo com convicção cada vez maior, de que o universo do qual fazemos parte e do  habitat imediato em que passamos a nossa existência, forma uma gigantesca unidade e um sistema finamente calibrado e de alta resolução. A pluralidade sem fim de fatos, fenômenos e formas de vida têm a sua explicação e razão de ser nesta unidade. Mais acima já aprofundamos essa questão. O que interessa a esta altura das reflexões à margem da Encíclica, é o significado do pertencimento do homem ao meio natural em comunhão com os demais seres vivos. Novamente, para relembrar, o homem é uma das muitas realizações dos potenciais da natureza e, por isso mesmo, sua existência na origem, na perpetuação e no seu destino é por ela condicionada.

Este dado filosoficamente correto e cientificamente comprovado, nos fez afirmar tantas vezes que a natureza e seus recursos são um bem comum. Deles depende o existir e o continuar a existir  da vida na terra. Essa compreensão faz parte do senso comum, pois para  “crentes e não crentes a terra  é, essencialmente uma herança comum, cujos frutos devem beneficiar a todos”. (Laudato si, 93). Sendo assim os bens não podem ser objeto de propriedade privada sem limites. “A propriedade privada está subordinada ao destino universal dos bens.  Assim, a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto e intocável  o direito à propriedade privada e, salientou a função social de qualquer  forma de propriedade privada”. (Laudato si, 93). Supostos estes limites a Igreja defende a propriedade privada.

Faz parte da própria natureza do homem sentir-se dono de bens materiais, terra, imóveis, empresas etc., dando-lhe segurança, realização, estímulo e compromisso. Foram exatamente esses fatores que levaram Wilhelm Ketteler, bispo  de Mainz a defender a propriedade privada, nos famosos sermões proferidos na catedral daquela cidade em 1848, coincidentemente no mesmo ano em Marx publicou seu “Manifesto”.  Mas, ao defender o direito à propriedade chamou também a atenção aos limites impostos pela dimensão social da posse e do seu uso. Heinrich Pesch, teórico do Solidarismo resumiu  essa relação na sentença: “O que importa não é a socialização da propriedade privada, mas a socialização da mente dos proprietários”. Em outras palavras. De um lado a propriedade é um direito natural das  pessoas como fator de estímulo e realização pessoal. Do outro, porém, as  demais pessoas gozam do mesmo direito. A convivência e o acesso aos recursos não pode ocorrer por meio de um “pacto” acertado entre as partes pelo qual se garante total autonomia sobre a exploração e uso fruto dos bens. Neste cenário de competição e livre concorrência, não passa de ilusão imaginar que as “mentes dos proprietários se socializem” e como tal  respeitem a dimensão social das sua propriedade. A livre disputa irá, de alguma forma impor “o lado do lobo” que faz parte da própria natureza da espécie humana. No relacionamento entre os membros de uma sociedade estruturada sobe esses moldes, “o lobo” fatalmente mostrará os dentes.

O mesmo fenômeno dita as normas também numa sociedade coletivista. O Estado incarnado na nomenclatura burocrática, administra os bens e deles usufrui com se fossem sua propriedade. A grande massa da população que se conforma com as migalhas que eventualmente sobram da voracidade do monstro burocrático.

Concluindo, o único regime  capaz de lidar com os recursos naturais preservando sua destinação social é aquele em que as pessoas comuns e as demais camadas da sociedade selam um compromisso legitimado pelos princípios do Solidarismo.

A Igreja defende como legítimo o direito à propriedade privada, mas ensina, com não menor insistência, que sobre toda a propriedade particular pesas sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu. Por isso afirma que não é segundo o desígnio de Deus gerir este dom de modo  tal que os seus benefícios aproveitem apenas alguns. (Laudato si, 93)  ( ... ) O rico e o pobre tem a mesma dignidade porque quem os fez foi o Senhor. (Pr. 22,2 ) e faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus. (Mt. 5,45). (Laudato si , 94).



Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 44 -

O Solidarismo parece ser  a saída para o impasse. Para início de conversa esse modelo de convivência social, de organização da sociedade, não consiste numa composição no que há de positivo entre o individualismo e o coletivismo. É, na verdade, um terceira via que se fundamenta na valorização equitativa da dimensão individual e social da pessoa humana. É esta a base do solidarismo na mente dos seus teóricos.

Heinrich Pesch tido como o teórico formulador  das bases do solidarismo, ensina que se trata de um “sistema que se interpõe” – “Vermittelndes System” -  entre  individualismo e o coletivismo. Gustav Gundlach, discípulo de Pesch define o Solidarismo como uma “terceira via”  -  “Linie der Mitte”  -  entre os “ismos” em voga. O cardeal Döffner  insiste no conceito de “terceira via”, excluindo-o como forma de arranjo entre o individualismo  o coletivismo. O fundamento é a dignidade da pessoa humana e a natureza essencialmente social do homem. A conclusão lógica que concebe a realização plena somente numa sociedade solidária que lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as suas limitações. Supõe-se, para tanto, uma relação toda peculiar entre as pessoas como indivíduos e a sua inserção num grupo  social  organizado. No individualismo a sociedade organiza-se a partir de um pacto celebrado entre os cidadãos para combinar regras, ordenamento jurídico e os dispositivos legais com a finalidade de levarem avante iniciativas para o desenvolvimento. No coletivismo a sociedade não passa de um ente inventado para levar a realização de um ideologia utópica que aniquila  a individualidade e a degrada a uma peça da máquina que lhe subtrai os direitos e liberdades individuais. O Estado montado sobre essa concepção da pessoa é o “ídolo, o monstro” de que fala Nietzsche, que decide sobre tudo e controla até as últimas minúcias a vida do cidadão. E, como os recursos para seus projetos que interessam ao Estado vem, em última instância da natureza, a nomenclatura insaciável encarregada de alimentar “o monstro”, igualmente insaciável, investe com toda a fúria contra a natureza, degradando-a a níveis deploráveis e condenando a massa popular a uma vida sem perspectivas.

O Solidarismo ao preservar a individualidade com sus direitos, mas cobrando dela a responsabilidade social solidária, considera a natureza um bem comum ao qual todos devem ter o acesso mínimo para suprir as necessidades básicas. Assim, os recursos naturais não podem ser  considerados como objetos de exploração irresponsável e predatória, em nome da total autonomia individual ou, então, em nome de uma entidade inventada chamada Estado. Para o Solidarismo, portanto, a natureza com seus recursos é ontologicamente um bem comum, ao qual qualquer pessoa tem o direito natural de acesso para viver uma vida digna. Isso não significa a abolição da propriedade privada mas exige que também cumpra a sua finalidade social. Vale aqui o velho, surrado mas profundamente correto princípio que serve de baliza para as relações solidárias entre as pessoas: “Os direitos do indivíduo terminam lá onde começam a interferir nos direitos do outro”. Este é também o limitador do direito à propriedade, seja de terras, seja de meios de produção, seja de qualquer outra natureza. Vale também da exploração dos recursos naturais. No momento em que a propriedade, da natureza que for, se transforma num fator de exclusão, torna-se humanamente injusta e ética e moralmente indefensável

Esses princípios deveriam regulamentar a exploração e a distribuição dos recursos naturais, tendo sempre em conta que eles, pela própria natureza, são um bem comum. A lógica manda alertar que o meu direito  ao acesso a esses bens, termina no momento em que impedem o próximo de usufrui-los. Entre os pilares que sustentam a organização solidária o cooperativismo em todas as suas modalidades e em todos os empreendimentos coletivos, tanto nos diversos segmentos da economia, quanto no lazer, na educação, na administração dos bens naturais, manejo  e exploração de florestas comunitárias, é que define como e até que ponto seus recursos devem ser explorados e a que finalidades destinar os resultados.

Teoricamente tudo isso parece muito lógico, simpático e atraente. O difícil vem a ser a sua concretização. Sucede que na nua e crua realidade do mundo atual, a solução dos desafios inerentes ao cuidado da natureza, enfrenta obstáculos difíceis de superar. O problema é que, o que de fato decide são os interesses políticos, econômicos, estratégicos e outros não confessados ou não confessáveis. O destino do mundo e da história da humanidade e com ele a sina da Natureza, está entregue ao arbítrio dos representantes das modalidades mais ou extremadas do individualismo e do coletivismo. Não há necessidade de nos ocupar-nos, ou refletirmos mais profundamente sobre as perspectivas a esperar, quando os grandes do mundo se encontram e debatem sobre questões ambientais.  Só para lembrar. Os vários encontros globais das últimas décadas que discutiram basicamente a grave degradação do clima global, terminaram em resultados minguados, comparando-os com o estardalhaço e a pompa com que foram realizados. Relembrando mais uma vez. As decisões tomadas estagnaram no nível de argumentos e propostas de ação, de eficácia no mínimo duvidosa. Não foram argumentos legitimados pelo bem comum e a ética que serviram de norte para a redação das resoluções do acordo assinados por representantes de 180 países.

Uma análise objetiva desses resultados não poderia ser outra pois, na atual conjuntura histórica, não há lugar para o solidarismo institucionalizado em nível nacional. Essa  realidade, entretanto, não impede que seja praticado em iniciativas setoriais. É nessa direção que vão os empreendimentos de natureza cooperativa pois, não existe cooperativismo de verdade que não esteja legitimado pelos princípios do solidarismo. Infelizmente não poucos empreendimentos se denominam cooperativas quando, na verdade, funcionam na prática como se fossem sociedades anônimas. Apresentam-se registradas como personalidades jurídicas de cooperativa pelas regalias legais de que usufruem como tais.

De qualquer forma o solidarismo incarnado em cooperativas conquistou um lugar definitivo em atividades econômicas importantes de não poucos países. Por bem ou por mal, temos espalhados pelo Brasil, especialmente no Sul, dezenas de cooperativas fundamentadas na doutrina do solidarismo. São cooperativas de produção, cooperativas de consumo, de comercialização, cooperativas escolares, de habitação, entre outras.

Não constam por enquanto pelo menos cooperativas ou algo parecido para cuidar do meio ambiente. Certamente seriam bem vindas. Mas, é oportuno registrar que no começo da década de 1930 partiu da Sociedade União Popular uma proposta de cooperativa de reflorestamento para áreas degradas na região de São José do Hortênsio. Por razões que não vem ao caso aqui,  a iniciativa não vingou. Mais acima tentamos caracteriza teoricamente o que vem a ser uma  comunidade humana fundamentada nos princípios do solidarismo. Um exemplo de que esse não é um modelo utópico reuniu em 1899 os colonos alemãs católicos, protestantes, italianos, poloneses  e de outras procedências étnicas na “Associação Rio-grandense de Agricultores”. Tendo como lema “somando forças” e como símbolo o “feixe de varas” da Bíblia, a Associação se propôs a concretizar um amplo projeto de desenvolvimento econômico e de promoção humana. Nas suas múltiplas iniciativas contaram  ações efetivas para enfrenta os desafios típicos do começo do século XX, como abertura de novas fronteiras de colonização; melhoria e diversificação na agricultura e criação de animais domésticos; consolidação da rede das escolas comunitárias; formação de professores para essas escolas; assistência social, saúde e outros. Mas a iniciativa de maior significado foi a fundação de cooperativas, regidas segundo os princípios do Solidarismo. As joias mais vistosas dessas instituições foram as cooperativas de poupança e empréstimo, conhecidas como “Caixas Rurais”. Cumpriam rigorosamente a missão de oferecer os recursos financeiros para os demais projetos. A primeira dessas caixas rurais foi inaugurada em 1902 em Nova Petrópolis. Depois cada comunidade maior fazia questão de honra de ter a sua “caixa”. Financiaram novas colonizações como a de Serro Azul (Cerro Largo) e Porto Novo (Itapiranga, São do Oeste e Tunápolis). Com o suporte financeiro das “caixas”, em 1922 reunidas numa Central em Porto Alegre, foi construído o Asilo para Idosos e  o hospital de São Sebastião do Caí, a Colônia de Leprosos em Itapuã e junto a ele o “Amparo Santa Cruz e emprestavam a juros baixos, cerca de 6% ao ano para suprir as demandas dos colonos. O capital que se foi acumulando procedia das poupanças dos colonos que recebiam 5% de juros ao ano. Com o 1% da diferença as “caixas” cobriam os custos de operação. Inicialmente essa Caixas eram independentes umas das outras o que foi mostrando com o correr do tempo uma série de inconvenientes. Foram, por isso, reunidas numa Central com sede em Porto Alegre o que lhes garantiu um poder de fogo muito maior. Poucos anos mais tarde começaram as fundações de cooperativas de produtores de leite, cooperativas de suinocultores, cooperativas de consumo, de comércio e outas modalidades. Um projeto de cooperativa todo especial teve como objetivo o reflorestamento na região de São José do Hortêncio, referido há pouco.

Em 1910 a Associação Rio-grandense de Agricultores foi transformada em sindicato, abandonando com isso o seu caráter de uma organização regida pelo Solidarismo. As antigas lideranças fundadoras dispersaram-se e cada qual fundou sua Associação, agora étnica e confessional. Os protestantes criaram a “Liga União Colonial”, os italianos os “Comitatti”. Os colonos católicos alemães que contavam em seu meio com os idealizadores da Associação Rio-grandense de Agricultores deu continuidade ao projeto solidário  abandonado pelo sindicato, fundando a  Sociedade União Popular  em 1912. De então, até o final da década de 1950, a Sociedade implementou por meio dos princípios do Solidarismo uma nova fronteira de colonização no oeste de Santa Catarina. Construiu o asilo para idosos e o hospital em São Sebastião do Caí; implantou a colônia para leprosos em Itapuã e em anexo o Amparo Santa Cruz para abrigar os filhos pequenos de mães leprosas internadas na Colônia. As cooperativas de crédito, as “caixas rurais” chegaram a um nível extraordinário, principalmente, depois de reunidas numa Central em Porto Alegre. Igual impulso e diversificação experimentaram as outras formas de cooperativas. Em 1923 foi criada a Escola Normal para a formação de professores para atender a rede escolar das comunidades do interior que já contava com cerca de 500 escolas. A educação e a cultura experimentaram um impulso considerável. O incentivo a práticas de agricultura menos predatórias, a diversificação de produtos agrícolas e o aprimoramento das raças de suínos e gado leiteiro,  foi outra das prioridades estimuladas. E, por último, a proposta inusitada para a época – 1932 – de um projeto de reflorestamento ao modelo de uma cooperativa a ser implementado na região de São José do Hortêncio. Este não foi concretizado pois, numa época em as novas fronteiras agrícolas avançavam pelo noroeste do Rio Grande do Sul e centro-oeste de Santa Catarina, o convite para reflorestar não encontrava lugar na agenda da imensa maioria dos colonos.

O motivo que levou a insistir na natureza da organização de uma sociedade sobre as bases do Coletivismo, Individualismo ou Solidarismo, foi a sua relação com a exploração e a utilização dos recursos naturais e a relação com a degradação do meio ambiente. Para fechar esta parte das reflexões relativas às propostas pela Encíclica, convém relembrar o que já foi  ressaltado mais acima. Pelos princípios que regem, tanto o Individualismo quanto o Coletivismo, não há como esperar políticas e propostas motivadas pelo que realmente é o cerne da questão, isto é, que a Natureza  seus recursos são um bem comum. São um bem comum pelo simples fato de que o homem encontra-se existencialmente inserido, nela surgiu como espécie, nela  prospera ou sucumbe. E sendo a Natureza a condição da existência e sobrevivência da humanidade, insistimos novamente, que cabe ao conteúdo ético e moral da questão ambiental a última e definitiva palavra, em se tratando de políticas e ações neste sentido. Fica a conclusão que o bom ou o mau relacionamento do homem com a Natureza, com a “sua casa”, encontra no Solidarismo, a modalidade de organização social proposta pela Igreja, em condições de consolidar uma relação produtiva entre o homem e seu habitat natural.

Um regresso à natureza não pode ser feito a custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano, que é parte do mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o proteger e desenvolver suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidade que o Criador nos deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar e limitar o nosso poder. (Laudato si, 78)