Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 29 -

A tonalidade e a combinação das cores tem um efeito estético fora do comum. O belo que perpassa uma paisagem iluminada como um todo pela combinação de cores abrangendo grandes extensões, dependendo do caso, é capaz de induzir à sensação do belo lírico ou aproximar-se do belo grandioso. Maria Rohde  pioneira na colonização de Porto Novo no extremo este de Santa Catarina, descreveu o cenário que se desdobrou diante dos seus olhos quando aguardava pela travessia do rio Uruguai numa tarde de  dezembro de 1927.

Graças a Deus! Finalmente chegamos! Ao descermos do caminhão ouvimos de todas gargantas profundos suspiros de alívio. O motorista gritou para o outro lado  “Vem-nos atravessar!”. Estupefatos contemplamos o espetáculo na nossa frente. Os últimos raios do sol perto do horizonte rebrilhavam na superfície esverdeada do rio. Não demorou o vermelho e o ouro mergulharam a paisagem toda no púrpura e ouro. Nosso olhar não se cansava. Diante de nós o majestoso caudal refletindo ambas as margens em suas águas tranquilas. Lá na encosta da outra margem a sede da colônia de  Porto Novo. Identificamos nitidamente as simpáticas moradias com seus estilos de construção que faziam-nos uma boa impressão. A clareira na floresta era bem ampla e a nossa estupefação não tinha limites. (Rohde, 1950, p. 45)

Ainda no mesmo mes de dezembro de 1927, num passeio de canoa pelo rio Uruguai, deixou outra descrição do entardecer que merece ser citada.

O melhor de tudo, entretanto, foi a magnífica volta para casa, coroando o primeiro Natal na floresta virgem. Enquanto sentados em absoluto silêncio na estreita canoa, voltando o olhar para trás, para o por do sol, ninguém ousou dizer uma palavra de admiração. ( ... ) Meu marido colocou o remo na canoa e deixamos que a correnteza do meio do rio nos levasse. O verde azul da água foi tomado pelo  vermelho-cobre, depois pelo vermelho-sangue, em seguida pelo violeta. No oeste vislumbravam-se os contornos de figuras inusitadas em meio ao clarão glorioso do sol que se punha. Em ambas as margens o rio refletia a floresta numa tonalidade de ouro profundo, com tamanha nitidez, que pareciam selvas de verdade. Parecia estarmos no mais belo reino de fadas e ninfas que, na forma de peixinhos, subiam e mergulhavam na corrente. Os últimos raios do sol mergulharam no horizonte e tudo ao seu redor, transportou-nos de volta para o reino fantástico dos contos de fada da nossa infância. (Rohde, 1950, p. 66).

Na visita que fez ao Grand Canyon e demais  parques norte-americanos em 1956, o Pe. Rambo antou no seu diário.

Nos dias  seguintes, passei muitas horas no alto, sentado, contemplando o Grand Canyon, no jogo da alternância da luz e cores. Quando os primeiros raios do sol da manhã, vindos da direção do Painted Desert, derramam sua luz sobre os abismos escuros, os rochedos do leste brilham na tonalidade ouro de uma delicadeza impossível de definir, enquanto nas encostas do oeste, os  vales e os abismos jazem mergulhados em cores negro azulados. Pela hora do meio dia as cores fortes vão desmaiando para o amarelo-cinza, o marrom-cinza, o vermelho-ferrugem e o branco. No final da tarde repete-se na sequência inversa a mudança dos jogos de luz e sombra da manhã. Mas o vermelho-dourado da manhã transforma-se em vermelho-púrpura do ocaso. A maioria das fotos coloridas, reproduzidas em livros, foi tirada nesse horário. Deixam a impressão  de que o Grand Canyon veste, por natureza esse manto real colorido. Pouco  depois do por do sol, o vermelho passa para um púrpura escuro e as tonalidades cinza, amarelo e verde se modificam para um azul fantasmagórico, que vai mergulhando cada vez mais na escuridão da noite. (Rambo, 2015, p. 307).

Na contemplação da natureza um dos elementos importantes são pontos específicos que se destacam na paisagem. Atraem a atenção e convidam para a reflexão. São de natureza múltipla esses pontos e se incarnam numa infinidade de modalidades. Atraem a atenção pela maneira singular com que chamam a atenção e convidam para deleitar-se com  a sua beleza. “No meio da multiplicidade das formas, coloridos e agrupamentos, a vista procura um ponto ou uma linha de repouso, na qual possa descansar por um momento, à qual possa como que amarrar suas reflexões”. (Rambo, 1942, p. 334). Pontos de repouso ou de reflexão podem ser identificados em qualquer paisagem. Nos Campos de Cima da Serra, os capões em que algumas araucárias centenárias escaparam à sanha dos madeireiros, são de uma beleza que beira o sublime. Um ou outro fica bem perto da estrada Tainhas-Cambará. Um deles, às esquerda de quem viaja para Cambará, é excepcionalmente belo. As coroas majestosas de meia dúzia de araucárias  seculares elevam-se bem acima do mato branco. Com os galhos curvados para cima parecem sentinelas do planalto em atitude de oração. “Ali, o maior símbolo da floresta é a araucária. Vista de baixo para cima, os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar os olhos em direção à terra para ver que há raízes fortes encravadas no chão. Rambo costumava dizer que, nesse lugar, à sombra dessa árvore, era a sua pátria no mundo. Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, uma caminho próximo para entender Deus. (Tavares- Dalto, 2.007, p. 12).

Para culturas que se consolidaram à sombra de floretas, espécies de maior destaque transformaram-se em símbolos. No Antigo Testamento fala-se com empolgação dos cedros do Líbano e dos cipreste do Monte Sião. Entre os povos germânicos o carvalho simboliza a solidez do caráter e a tradição profundamente enraizada. Cultos em homenagem aos deuses costumavam ser celebrados sob as copas gigantescas de carvalhos milenares. A história narra o episódio em que São Bonifácio derrubou um desses carvalhos diante do povo atônito, como demonstração prática que o Deus do cristianismo era mais poderoso do que os deuses pagãos. Exemplos encontramos também entre nós no sul do Brasil. A araucária veio a simbolizar personalidades a prova de tempestades, raios, trovões e granizo: “inabalável como um pinheiro!”. A integridade moral tem no cerne da cabriúva a sua referência: “incorruptível como o cerne da cabriúva”. A nobreza tem no louro o seu símbolo: “Seu rosto parecia talhado num tronco de louro”, diziam os pioneiros do extremo oeste de Santa Catarina do Pe. Johannes Rick consolidador daquela fronteira de colonização. A madeira do cedro incarnava algo de místico e por isso  gozava de preferência na confecção de altares e demais móveis nas igrejas. O símbolo da persistência e perseverança apesar de tudo coube à canafístula: “Somos como a canafístula lá o alto do morro. Resiste ao embate de qualquer eventualidade e não se importa se sobre seus galhos andam os quatis ou pousam os urubus”, declarou um velho  colonizador  pioneiro  do  oeste de Santa Catarina.

Há ainda a harmonia dos contrastes “que comunicam à paisagem um elemento novo. Na paisagem natural, seus  elementos estão antes de tudo nas linhas de contato de várias formas de relevo e na distribuição da vegetação”. (Rambo, 1942, p. 334). São exemplos as linhas de transição entre elementos contrastantes de uma paisagem. Os exemplos são muitos. Esse tipo de harmonia pode ser observado e apreciado na transição do campo aberto e os capões no planalto e na mesma paisagem a transição ente o campo aberto e o mato branco com as araucárias que acompanham as bordas dos Aparados da Serra.

A última categoria de paisagens  descrita pelo Pe. Rambo é a paisagem humanizada. A paisagem fruto da harmonia entre as obras do homem no seu habitat natural. Relembrando a metáfora do Papa: a harmonia que resulta da  inserção da moradia humana na “casa  natural” do seu meio geográfico. Em outras palavras. A simbiose harmônica  entre a obra do homem  e seu habitat natural. Essa harmonia desaparece por completo onde a artificialidade  da intervenção do homem na natureza quebrou o equilíbrio entre a obra humana e a obra da natureza. Assim, um floresta devastada, uma metrópole na qual o relevo e a vegetação foram mascarados pela geometria dos traçados, o concreto e o asfalto, falar em harmonia do conjunto só com muita imaginação. O verde das árvores em ruas,  avenidas, praças e parques parecem implorar por um pouco de sol e ar puro, afogados num mar de concreto  e asfalto.  Nem chegam a fazer parte do conjunto. Dão a impressão de intrusos num complexo de cimento armado. No momento em que atrapalham a abertura ou ampliação  de ruas e avenidas, ou se encontram numa área favorável para a implantação de um condomínio a vegetação e as árvores são sumariamente  eliminados. A obrigação legal de compensar a destruição plantando árvores em outro lugar, quando obedecida, não muda nada no dano estético já causado. A harmonia entre a paisagem natural e a presença do homem  só então é real quando “as obras humanas se adaptam ao estilo natural da região, quanto mais a conservação das belezas naturais denota o respeito do homem pelas obras da mão do Criador, tanto mais o sentimento estético nelas se deleita”. (Rambo, 1942, p. 334)

Exemplos da harmonia, da simbioses estética entre a obra da natureza e a obra homem, ainda hoje podem ser apreciados. O Pe. Rambo destaca no Rio Grande do Sul as estâncias da Campanha acomodadas à paisagem, os arrozais distribuídos entre as coxilhas, a paisagem rural no vale do Taquari  as taipas de pedra nos Campos de Cima da Serra. “o belo ameno da paisagem é condicionado a fatores semelhantes aos que se encontram na pintura; e é este o motivo porque a maioria das pinturas de paisagem tem como conteúdo o belo ameno”. (Rambo, 1942, p. 335).

Até aqui nos ocupamos com as várias modalidades do belo exibido pelas paisagens. Ao “belo ameno” associa-se em condições especiais o “belo grandioso”. “É aquela sensação estética, que, de um lado abala o espírito em sua pequenez diante das forças da natureza, do outro lado, compensa tais abalos pela consciência íntima da realeza humana sobre todas as forças naturais”. (Rambo, 2942, p. 335). (Obs. As reflexões sobre o Belo continuam na próxima postagem).


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 28 -

O Belo

Cabe aqui dedicar uma reflexão sobre o que se entende quando alguém exclama: “que beleza, que belo!”. O contemplar uma paisagem e os elementos que a compõe, provoca as mais diversas reações, dependendo do interesse do observador. As respostas serão tantas quantas forem as perspectivas  a partir das quais se observa e avalia o que seus olhos vêm, seus ouvidos escutam, suas mãos apalpam, o que delicia o gosto e o olfato que faz dilatar as narinas e encher os pulmões com os perfumes e o ar fresco e sem poluentes. Se a resposta for ditada por interesses materiais, uma floresta por ex., será avaliada em metros cúbicos de madeira, uma montanha em toneladas de minério, uma área livre num perímetro urbano como um potencial para investimentos imobiliários, uma região descampada, em hectares para a implantação de um agronegócio. O cientista dirigem a atenção para aqueles elementos que interessam à sua especialidade. O sistemata inventaria e cataloga plantas e animais; o interessado em ecossistemas observa e procura entender como se dá e como funciona a interdependência e complementariedade entre as plantas, animais, a formação geológica, a topografia, a edafologia, o clima, etc.; o zoólogo especialista em formigas só se interessa pelo funcionamento de suas colônias e a relação com o meio, sua  associação com fungos e/ou outras formas de vida; se o interesse for a medicina ou farmacologia natural o que se procura são ervas, folhas, raízes e cascas. Cada qual enxerga e sente a natureza de acordo com a motivação prática que o estimula.

Há, entretanto, outras modalidades de estímulos que levam as pessoas a se encontrarem com a natureza.  A algumas delas já nos referimos direta ou indiretamente no decorrer dessas reflexões. Uma delas poderia ser o que definimos como nostalgia atávica que anima as pessoas a se encontrarem com um cenário próximo daquele em que espécie humana foi gerada e viveu sua evolução. Confunde-se com o que em outro lugar definimos como o reencontro com o paraíso perdido mas não esquecido. São exatamente essas pessoas que se aproximam da natureza com essa motivação que tem abertura para usufruí-la no que ela inspira de mais humano.  É nesse plano que ocorre  o encontro do eminentemente humano no homem com a natureza. Nos outros casos predominam interesses mais ou menos pragmáticos. Neles quem decide é a lógica científica, a lógica filosófica, a lógica econômica, a lógica geoestratégica e outras mais. Sendo assim, os instrumentos  de avaliação são a estatística,  o microscópio, a procura e oferta, os preços internacionais, os ganhos políticos, o poder e por aí vai. No encontro do humano no homem com a natureza, com “a sua casa”, com “a sua mãe e pátria”, entram em cena os sentidos, as vias de contato originalmente previstas por ela. Eles captam imagens, sons, sensações, gostos, sabores e odores. Os múltiplos estímulos que assim são ativados vêm acompanhados por um potencial incalculável capaz de ecoar nos arcanos mais profundos do ser humano. Nos espíritos suficientemente abertos e desarmados, as vibrações despertadas pelas mensagens dos sentidos, revelam a  verdadeira natureza do humano no homem. Na elaboração dos resultados dessa interação da natureza circunstancial com a natureza humana, não participam as lógicas convencionais que resultam do conhecimento formal, nem da ciência, nem da filosofia pois. “no momento em que algo é entendido pelo intelecto, é verdadeiro,  quando desejado pela vontade é bom, quando abraçado pelos sentidos é Belo” (Rambo, 1994, p. 221)

Afinal, o que vem a ser o Belo? Homero fala no “imenso mar do belo” –Tò polú pélagos tou kalú”.  “Assemelha-se a uma fagulha misteriosa a arder nos escaninhos crepusculares  de minha alma, ou o fio em uma rede que se expande e entrelaça todos os meandros do espírito. ( ... ) o Belo é uma propriedade do ser como tal, independente, pois, dos sentidos. Além disso não são os sentidos que propriamente percebem o Belo”. (Rambo, 1994, p. 223).

Se não são propriamente os sentidos que captam o Belo,  o Belo não se confunde com brilho. Os sentidos não captam o Belo em si, mas somente a superfície das coisas. O que vem a ser então o Belo e como se chega a sua percepção. Na língua alemã  Belo, “Schönheit¨, vem de “Schön”, Belo. Esses dois conceitos por sua vez, derivam de “Schauen”, contemplar. Essa palavra sugere, em primeiro lugar, que o Belo não coincide com uma cor, um brilho, um som, ou tudo isso combinado. Não se confunde tão pouco com a estética no arranjo das linhas e traçados. Em segundo lugar, o Belo não é percebido pela razão e a racionalidade, senão pela intuição. Sendo assim sua percepção não depende do nível de instrução das pessoas. Depende, isso sim, da disponibilidade sem reticências, do despojamento dos vícios e cacoetes engendrados pela artificialidade da civilização. “O selvagem mais humilde e a pessoa mais culta concordam em que um “por de sol”, um prado florido e uma pessoa vendendo juventude, sejam dados de beleza objetiva. E, se vem a ser difícil o conhecimento da Verdade e a chama  da Bondade, fácil nos faz, por sua vez, a vivência do Belo”. (Rambo, 1994, p. 222)

O Pe. Rambo dedicou os dois últimos capítulos da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, a essa face da natureza, isto é, o potencial de cada paisagem no seu todo e cada parcela em particular dispõe para estimular a admiração do seu lado artístico e admirar sua beleza. Essa contribuição que o ambiente natural tem a oferecer, por razões óbvias, não costuma constar na pauta dos debates em que o se discute Ecologia. Não é considerado politicamente correto, nem economicamente importante, nem estrategicamente conveniente. Se alguém sugerir a inclusão desse viés na ordem do dia, corre o risco de ser rotulado como romântico alienado, como cientista superficial e pouco sério. O Pe. Rambo foi vitima de semelhante desqualificação, inclusive por parte de irmãos de ordem, dos quais se esperaria, em princípio, a mesma compreensão da natureza, quando decidiram fazer ciência. Tudo bem. Faz parte da concepção de fazer ciência de cada um. É uma questão que mereceria um aprofundamento. Não é aqui o lugar.

Vamos então ao que interessa aqui e agora, isto é, como a natureza com suas múltiplas formas de se manifestar, estimula e molda a alma e o espírito. Dito de outra maneira. Como acontece a simbiose entra alma e a paisagem natural? O Pe. Rambo introduziu as reflexões sobre o tema no contexto conceitual em que se insere.

Estudando os grandes clássicos que descreveram a superfície da terra, notamos três correntes: a primeira enumera os elementos da paisagem, procura aplicar-lhes a existência e o desenvolvimento, e estabelecer a relação natural com o homem: é a tendência da fisiografia moderna, a ciência exata destinada a desenhar e interpretar a fisionomia da terra; a segunda corrente utiliza-se da paisagem natural como fundo sobre  a qual simboliza os sentimentos da alma: é a tendência subjetiva e sentimental, o romantismo literário da paisagem, que de em vez de interpretar o conteúdo objetivo da paisagem, nela projeta seus sentimentos; a terceira corrente, firmando-se no conteúdo objetivo da paisagem tenta investigar e exprimir os processos psicológicos, quando a natureza necessariamente provoca no homem uma psique sã, acessível ao belo em todas as sua formas. (Rambo, 1942, p. 331)

Em seguida o autor explicita em que nível pretende conduzir a reflexão. “Quando uma paisagem é rica em montanhas, colinas, aldeias e cidades, campos e matas, rios e lagos, conjugando-se com esta abundância de formas, a fertilidade do solo e  bem estar dos habitantes, ele produz no observador um sentimento de contentamento espiritual, síntese do gozo estético”, (Rambo, 1942, p. 332).

As paisagens podem ser amenamente belas quando apreciadas no seu conjunto. Se a riqueza de formas é percebida na multiplicidade harmônica dos detalhes, a paisagem também é bela quando admirada no seu conjunto. Neste caso a beleza não se prende  aos elementos individuais, casas, plantações, árvores, flores e animais, mas aos traços que desenham a fisionomia ou o mapa de uma região.  Recorrendo novamente ao exemplo que serviu de  modelo no “belo expresso na riqueza das formas”,  tentemos admirar as linhas mestras que desenham o mapa da bacia do Guaíba. O nordeste, norte e noroeste tem como limite a encosta da serra formando um degrau de cerca de 400 metros de altitude. Sobre ele erguem-se morros isolados de pouco mais de 500 metros. A as bordas  superiores  recortados pelos rios arroios e seus afluentes, avançam sobre os vales como as  proas de gigantescos navios de guerra como os descreveu o Pe. Rambo na “Fisionomia do Rio Grande do Sul”. Os rios e seus afluentes descendo do alto entalham os vales na paisagem resultando numa topografia que sugere harmonia como elemento predominante no conjunto da paisagem. Os traços que contribuem para a percepção de um todo harmônico, são as estradas inseridas na paisagem sugerindo equilíbrio entre a presença do homem e o meio natural. Cada um dos rios com seus afluentes e cada vale de um arroio parecem ter-se inspirado nos demais da região sem serem cópias xerox uns dos outros. Como membros de uma grande família cada qual guarda a sua individualidade. Os rios, os arroios e estradas convergem para uma grande planície para, finalmente se encontrarem e fundirem no Guaíba. Observando do alto o panorama esculpido pela natureza e retocado pelo homem não deixa de ser belo. “As linhas mestras da paisagem, como sendo o eixo de referência da sua fisionomia, são de importância capital. O leito sinuoso de um rio, as estradas entrelaçando-se caprichosamente ente as povoações, relação amiga entre as estradas humanas e os caminhos naturais, as cortinas de nuvens cortadas horizontalmente a uma certa altura, perfazem um conjunto de grande harmonia”. (Rambo, 1942, p. 332)

Na apreciação da harmonia e beleza de uma paisagem há um terceiro aspecto  relevante: a “harmonia dos grupamentos”.

“Numa paisagem rica em formas e linhas, a disposição e distribuição dos elementos exerce grande influência. Uma paisagem em que os matos, os campos, os cursos de água, as obras da mão humana se acham dispostos em proporção justa, excita o sentimento estético. Uma vista através de um portal rochoso, sobre uma longínqua planície evoca a saudade; A moldura montanhosa da região faz com que o espírito nela ache o seu descanso; vastos matos cercando campos cultivados, produzem a impressão de um quadro harmônico”. (Rambo, 1942, p. 333)

O grupamento formando unidades locais ou regionais podem ser observados nas mais diversas modalidades. Enquanto escrevo olho pela janela e diante dos meus olhos desdobra-se um “grupamento”, uma paisagem dessas. No primeiríssimo plano, uma araucária, dois gerivás e uma magnólia  abrem uma janela permitindo a visão livre sobre um vasto panorama. Segue a curva elegante de uma estrada de chão batido e um muro delimitando as propriedades, na frente dele uma nogueira, uma fruta do conde, um carvalho, uma jaboticabeira e um cedro. Um renque de bananeiras do mato esconde o muro  de pedra  grês. Num segundo plano, a grande planície do rio dos Sinos dominada pelo verde dos eucaliptos harmonizando com manchas de mata nativa. Em meio à vegetação aparecem as moradias e benfeitorias das chácaras da Feitoria e da Lomba Grande. Num terceiro destacam-se o bairro Canudos de Novo Hamburgo, cidade de Campo Bom e uma parte de Sapiranga. O conjunto onde predomina a presença do homem, visto de longe não agride o conjunto. Pelo contrário. Encaixa-se harmonicamente no todo da paisagem. E lá longe, fechando o panorama, a muralha de montanhas coroada de nuvens, mergulhada na bruma do entardecer. Não resta dúvida. Estamos diante de uma visão que desperta a sensibilidade e emoções agradáveis no observador receptivo aos encantos da natureza. Em resumo. Estamos diante de um panorama belo. Ressalvadas as peculiaridades próprias encontram-se inúmeras outras paisagens semelhantes nas áreas que não foram completamente desfiguradas e artificializadas pelo avanço das metrópoles em expansão. Umas estimulam mais a veia lírica e romântica do observador, outras a admiração, outras convidam a refletir, outras ainda empolgam e mesmo assustam.  Nada mais tranquilizador do que campos naturais, pontilhados de capões com araucárias. Os cânions dos Aparados da Serra, vestidos com a vegetação original descendo até o fundo dos escuros abismos, convidam a refletir. Meditando nas bordas do Fortaleza em Cambará o Pe. Rambo intuiu que “Alguém morava naquelas profundezas e Alguém vigiava nas torres de observação formadas pelos rochedos em volta”. O belo e o grandioso na sua forma primigênia! Para quem sabe ouvir a natureza ela tem muito a dizer e quem sabe perceber  seus segredos ela tem muito a revelar. “A quarta modalidade de paisagem amena tem como elemento determinante as cores. “As cores da paisagem só entram na composição do quadro, quando distribuídas a grandes proporções. Podem ser intensas, saturadas mesmo, mas não devem ser  berrantes e importunas”. (Rambo, 1942, p. 333). (Obs. continua na postagem seguinte).


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 27 -

Da mesma forma como os ecossistemas terrestres estão em risco de sofrer danos irreversíveis, também os ecossistemas marinhos e oceânicos estão perigosamente ameaçados. Estudos feitos para medir o nível de agressão aos mares e oceanos mostram que sua vulnerabilidade atingiu um nível preocupante. A porção que corre maiores riscos são as faixas costeiras. As 200 milhas ou 370 quilômetros, consideradas como águas territoriais dos respectivos países, são riquíssimas em biodiversidade e também as mais intensamente utilizadas na exploradas pela atividade humana. As cidades e metrópoles com seus dejetos, a atividade portuária e a navegação costeira afetam seriamente essas faixas. Embora cubram apenas 0,5% da superfície dos mares e oceanos abrigam uma concentração e variação  de biodiversidade sem igual. A pesca comercial com redes de arrasto, a exploração do calcário dos recifes de coral, os dejetos das cidades e dos navios, são seus maiores algozes. Para mais detalhes remeto para os comentários feitos mais acima. Nem pela sua imensidão o alto mar escapa às crescentes agressões. Além da caça às baleias não há uma regulamentação internacional  que disciplina a exploração nessas águas. Wilson sugere que se delimitem 20% a 30% dos oceanos par servirem de reservas estrategicamente localizadas, à maneira dos “hot spots” terrestres. Segundo suas estimativas a preservação dessas áreas marinhas importaria em 5 a 19 bilhões de dólares por ano. Essa soma poderia ser facilmente arrecadada com a  redução dos subsídios concedidos à indústria pesqueira, que somam de 15 a 30 bilhões de dólares ao ano. Wilson concluiu  o capítulo intitulado “Fim d Jogo”.

A vida neste planeta não aguenta mais tantas pilhagens. Sem falar no imperativo moral universal de salvar a Criação, com base tanto na religião como na ciência, conservar a biodiversidade é o melhor negócio, do ponto de vista econômico, que a humanidade encontrou pela frente desde a invenção da  agricultura. O tempo de agir, meu distinto amigo, é agora. Os fundamentos científicos são sólidos, e estão melhorando. Os que hoje vivem na terra têm que vencer a corrida conta a extinção, ou então serão derrotados  -  e derrotados para sempre. Eles conquistarão honrarias eternas, ou o desprezo eterno. (Wilson, 2.008, p. 115)

Há mais de 80 anos passados, quando Edward Wilson era um menino e começava a se apaixonar pela natureza,  o Pe. Balduino Rambo escreveu “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”, sua obra mais conhecida, na  qual deixou registrada a sua percepção sobre a exploração da natureza pelo homem, seus limites, concluindo com propostas cientificamente  fundamentadas para preservar o que ainda subsistia e reparar os danos já causados. A questão ambiental que hoje faz parte das preocupações de qualquer cidadão minimamente atento aos acontecimentos em sua volta, naquela época, final da década de 1930  e começos de 1940, não constava nas agendas dos encontros em que se discutiam as grandes questões regionais, nacionais e internacionais. A abertura de novas fronteiras de colonização avançava sobre o norte e noroeste do Rio Grande do Sul e centro-oeste de Santa Catarina. Intactos estavam os grandes complexos de florestas do oeste do Paraná. Na imaginação das pessoas comuns do sul do Brasil, o  Matogrosso localizava-se na lua. Aliás, na época o Pe. Rambo escreveu um conto com o sugestivo título: Três Semanas na Lua”,  tendo como pano de fundo as primeiras iniciativas de colonização no Matogrosso, pela Transportadora Meyer, nas margens do Xingú, em meados da década de 1950. Nos campos da Fronteira e nos campos de Cima da Serra, a presença do homem e sua interferência no meio ambiente limitava-se às sedes das estâncias e rebanhos de gado multiplicando-se e engordando nas pastagens naturais. Os Aparados da Serra exibiam ainda seu encanto e grandiosidade original, com seus Canyons, arroios de montanha cristalinos, suas cascatas e, principalmente as florestas cobrindo a borda dos precipícios, descendo pelas encostas até a planície perto do oceano. E lá no alto milhões de araucárias seculares, copa encostando em copa, formavam um imenso guarda-sol, dez ou mais metros acima do mato branco. Com a posição típica dos seus galhos erguidos, parendo em atitude de perene oração. No verão de 1938 o Pe. Rambo sobrevoou o Estado todo, percorrendo 60.000 quilômetros, em missão encomendada pelo Serviço Geográfico do Exército. Na medida em que as paisagens que compõem a “Fisionomia do Rio Grande do Sul” deslizavam, a menos e 1000 metros de altura, sob as asas  do pequeno monomotor “Master Brasília”, do 3º Regimento de Aviadores, da base aérea de Canoas, consolidou-se uma relação existencial de admiração, respeito, amor e veneração, entre ele e as paisagens que admirava lá do alto. Daí para frente assumiu o compromisso de, na medida do possível, dar a sua contribuição como botânico, professor universitário e diretor do Museu de História Natural do Estado, em favor da preservação possível e na recuperação do já danificado, para o bem público, o lazer e o recreio do povo e a higiene ambiental. As iniciativas concretas que propôs na “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, foram: a proteção a monumentos naturais  -- a proteção a espécies botânicas e zoológicas em perigo  -  a harmonização das obras humanas com o meio ambiente  -  a criação de parques naturais. A ideia da criação de parques transformou-se para ele numa quase obsessão, que foi amadurecendo,  consolidando-se e tomando contornos definidos a partir de uma permanência de um mês em Cambará no verão de 1948 e depois da sua visita aos grandes parques norte-americanos em 1956. Ao mesmo tempo, nas seguidas visitas  ao planalto de preferência nas imediações de Cambará com seu ícone, o canyon do Taimbésinho, o Pe. Rambo decidiu que ele deveria ser  o epicentro do ambicioso projeto do parque dos Aparados da Serra. Aquela paisagem da qual afirmava “se tenho uma pátria na terra esta encontra-se no planalto na sombra dos pinheirais”, deveria ser o promissor começo de outras tantas iniciativas de proteção à natureza. Até o final a década de 1950 e setembro de 1961, quando faleceu repentinamente com apenas 56 anos de idade, empenhou-se, além do parque dos Aparados da Serra, na criação da Fundação Zoobotânica e o Zoológico de Sapucaia do Sul. A ideia-força e o esboço das ações em favor da preservação e recuperação do meio ambiente, encontram-se na “Fisionomia do Rio Grande do Sul”.

Acontece que, apesar desse vendaval devorador de florestas ou, talvez, por isso mesmo, começaram fazer-se ouvir as primeiras vozes de alerta. Na sua obra clássica “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”, publicada em 1942, o Pe. Balduino Rambo, amparado pelo conhecimento dos ecossistemas de que dispunha do Rio Grande do Sul, dedicou o último capítulo a sugestões, propostas e estratégias de preservação.

As conclusões a que chegou no final da “Fisionomia”, apontam para algumas questões que merecem destaque. Na primeira metade do século XX  densidade populacional no sul do Brasil parecia ter uma saída, um desafogo ilimitado com novas aberturas de fronteiras de colonização no norte e noroeste de Rio Grande do Sul, centro oeste da Santa Catarina, oeste do Paraná e mais para o norte no Matogrosso, Rondônia e Acre. Neste  contexto histórico as preocupações com os cuidados com o meio ambiente não faziam parte do quotidiano das pessoas comuns, nem do governo. Pelo contrário. A ordem soava “vamos às colônias novas”, consolidá-las e incorporá-las ao desenvolvimento regional e nacional. Mesmo assim, já no final do século XIX fizeram-se ouvir os primeiros alertas contra o ritmo e a extensão do desmatamento na bacia do Caí, como já foi objeto de reflexão em outro momento dessas páginas

Mas voltemos à Encíclica do Papa Francisco que nos serve de guia nessas reflexões. Ela chama a atenção para o fato de que a natureza significa muito mais do que sustento e abrigo material para a humanidade.  A natureza em que a vida acontece e  da qual a espécie humana faz parte, é um gigantesco sistema  formado pela complementariedade do substrato físico-geográfico e os seres vivos que nele prosperam. As espécies vivas, por sua vez são interdependentes e o seu destino depende dessa mutualidade. As milhões de espécies de micro e nano-organismos são responsáveis pela qualidade dos solos sobre os quais prospera a macrofauna e macro-flora. Neste cenário agrupam-se, moldadas pelas singularidades topográficas, climáticas, edafológicas, hídricas e outras mais, os ecossistemas locais e regionais. À sua maneira, a espécie humana  depende, para a vida e a morte, dos ecossistemas em que vive. Como qualquer outra, surgiu em algum deles, não importa em qual nem quando e evoluiu como espécie biológica como as demais. Como tal, sua prosperidade ou sua ruina está existencialmente vinculada ao meio físico-geográfico em que vive. A lógica leva a concluir que os recursos necessários para viver e subsistir são um bem comum. Como tal qualquer pessoa tem o direito natural ao acesso deles. A privação, pelo motivo que for implica num delito ético. É por essa razão que insistimos mais acima na necessidade urgente da preservação  da natureza, da natureza como um todo e de cada ecossistema em particular.

Acontece que para a espécie humana diferente de todas as demais, o meio físico geográfico além  de sustentar a vida biológica tem uma vida espiritual para alimentar. Falamos dos estímulos que a natureza oferece permitindo que o verdadeiramente humano, a “Menschlicheit”,  tenha como se manifestar na sua plenitude.  O conceito de espiritual aqui empregado refere-se a tudo que distingue o homem das outras espécies de animais. Mais nas entrelinhas do que propriamente nas linhas, o Papa chama a atenção para essa face da medalha em que o meio ambiente está em questão.

Nota-se hoje, por exemplo, o crescimento desmedido e descontrolado  de muitas cidades que se tornaram pouco saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas, mas também com o caos urbano. ( ... ) Não é conveniente para os habitantes deste planeta viverem cada vez mais submersos no cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contato físico com a natureza. (Laudato si, 44)

Ao falar em contato físico com a natureza a imaginação começa a voar solta pelos cenários naturais mais diversos. Bem lá no fundo dos recessos mais escondidos do ser, desperta a nostalgia atávica de alimentar as emoções naquilo que a multiplicidade dos panoramas da natureza são capazes de oferecer. A artificialidade em que a maioria das pessoas consome o quotidiano, esteriliza as emoções, degrada as relações e corrompe o humano no homem. Por isso o retorno o mundo natural, pelo menos ocasionalmente é de fundamental importância para evitar o colapso daquilo que as pessoas têm de mais humano. A serena contemplação de uma paisagem, de uma araucária solitária, de uma flor, de um borboleta, desperta nas pessoas sensíveis, momentos de gozo e reflexão. São exatamente as dádivas da natureza que fazem vir à tona o que homem tem de exclusivo e o distingue das outras espécies: o humano, a “Menschlichkeit”. Em outras  palavras. Perceber a natureza como um todo em todos os seus detalhes como uma maravilhosa obra de arte. A natureza é um caleidoscópio multicromático e multifacético, no qual a arte se expressa na sua multiplicidade e
na sua plenitude. E a plenitude da arte é o Belo.