Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 4 -

Até essa altura, isto é, final do paleolítico, 15.000 a 20.000 anos passados o homem coletor e ou caçador, vivia numa pareceria, numa simbiose da natureza perfeitamente equilibrada. A integridade e o equilíbrio dos ecossistemas naturais não sofriam agressões significativas. Na transição  do paleolítico para o neolítico, denominada também de mesolítico, a caminhada histórica da humanidade envereda por duas direções paralelas. A convivência e o relacionamento om os animais, a observação dos seus hábitos, a aproximação dos acampamentos de uns e fuga de outros, fez com que algumas espécies  passassem a integrar-se praticamente ao quotidiano dos homens. Daí para frente domesticá-los e controlar a sua criação, foi apenas uma questão de tempo. A domesticação foi o passo que desencadeou o pastoreio, uma verdadeira revolução, cujos potenciais estão longe de se esgotar. Chamamos atenção, por ex.,  para a aplicação das conquistas genéticas, no manejo dos animais e dos pastos em que são criados.

Uma revolução paralela e de igual ou maior potencial foi amadurecendo e tomando corpo entre os coletores. Pela observação ao  coletarem  frutas, raízes, tubérculos foram identificando os hábitos e as características, os ciclos de crescimento e outros mais. Ao mesmo tempo em que identificavam os mais produtivos, por acaso ou intencionalmente, talvez as duas juntas, teve início a agricultura. Os potenciais também dessa  segunda revolução não se esgotaram. Pelo contrário no caso dos animais a manipulação genética e as tecnologias de produção agrícola, estão em franca expansão.

Darci Ribeiro denominou a revolução agrícola somada à revolução pastoril de “Revolução dos Alimentos”. No contexto em que nos movimentamos, isto é, a “Enciclica Verde”, queremos chamar a atenção par o efeito realmente revolucionário na relação do homem com o meio físico geográfico. Tendo em vista o potencial de invasão e de degradação da natureza dessa revolução, Edwad Wilson, chama a atenção que, a par das inegáveis perspectivas de sobrevivência que possibilitou ao homem, ela foi também a “primeira traição” perpetrada à “sua mãe e pátria”. Essa afirmação evidentemente precisa ser entendida na perspectiva em que Wilson desenvole sua reflexão. Ele resume a  “traição” nos efeitos negativos dessa conquista revolucionária. Chama a atenção para alguns problemas que se foram acelerando nos milênios posteriores e hoje chegam a níveis no mínimo alarmantes. No caso da agricultura são principalmente dois fenômenos complementares. a ocupação intensiva e sistemática das terra próprias para a agricultura vai desfigurando a paisagem original substituindo-a pela humanizada com suas aldeias, cidades, plantações, sistemas de irrigação e vias de circulação. Esse fenômeno se acelera na medida em que a população cresce e as demandas para cobrir as necessidades aumentam. Com a humanização muitas plantas e animais migram outros territórios ou simplesmente se extinguem. Mas, há uma outra consequência que merece atenção. Das muitas espécies e variedades de plantas potencialmente úteis, os agricultores vão selecionando as mais produtivas e mais fáceis de serem cultivadas. Com isso as opções de produção de alimentos vão enfunilando e dependendo de um número muito reduzido de espécies, o que agrava a dependência e influi negativamente no uso dos solos agrícolas. Aumenta o poder de barganha dos produtores e condena á dependência os que deles dependem. Esse aspecto da questão alcança nesse começo do terceiro milênio, proporções estratosféricas. Basta dar uma olhada na lista  dos produtos agrícolas negociados na bolsa de Chicago.

Não é aqui, entretanto, o lugar para entrar em mais  pormenores. Interessa o seu significado como desencadeador da acelerada substituição da paisagem natural pela humanizada, dos ecossistemas naturais pelos também humanizados. É óbvio que seria um sonho sem o menor sentido reclamar o retorno a uma biosfera do final do Paleolítico. O que está em discussão é o efeito de muitas motivações, muitos métodos e muitas tecnologias que estimularam e facilitaram a apropriação dos recursos naturais. A essa altura dos acontecimentos as tecnologias a serviço de objetivos e valores muitas vezes discutíveis ou francamente nocivos ou criminosos, colocaram a “nossa casa” diante de futuro preocupante.

Parece que a humanidade em peso está se apercebendo dessa realidade. “O meio ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável, pede por socorro a todas as pessoas de boa vontade”, como alertou Bento XVI.  E, parece que a preocupação com essa causa é generalizada. As pessoas comuns, organizações com as mais diversas motivações e orientações, lideranças religiosas e governantes  debatem e avaliam a questão em âmbito local, regional, nacional e internacional. E, para colaborar com o encontro internacional do Clima em Paris, o Papa Francisco líder de um bilhão e  duzentos milhões de católicos ofereceu a monumental carta encíclica “Laudato si”, que com toda a propriedade poderia chamar-se também de “Encíclica Verde”. Vale o esforço meditar e refletir sobre a riqueza do seu conteúdo e, de modo especial, sobre as pesadas advertências que formula.


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 3 -

A doutrina da Igreja

 A reconciliação oficial da Igreja com o universo e a natureza sugerida pelas conquistas científicas, começou com Pio XII na década de 1940. Na carta encíclica “Divino aflante Spiritu” (1943)  veio o primeiro sinal liberando os católicos para a aceitação da teoria da evolução. A “Encíclica “Humani  Generis” (1950) do mesmo Pio XII consolidou essa abertura.  Com as duas encíclicas, o papa definiu os parâmetros e os limites permitidos pela doutrina católica em relação à natureza, sua origem, sua evolução colocando o homem como personagem  central nesse cenário. Definiu a competência e a responsabilidade da Ciência e da Teologia para a compreensão do homem.

O papa João XXIII, sucessor  de Pio XII, na sua última encíclica “Pacem in terris”, de 11 de  abri de 1963, dois meses antes do seu falecimento, coloca a natureza na perspectiva do cenário em que a espécie humana  vive sobrevive, prospera ou definha. Pela sua natureza a Encíclica destina-se, em primeiro lugar ao universo católico. Quando o tema tratado, porém, interessa as pessoas independentemente da confissão religiosa, entra na esfera do bem comum. É o que acontece com a “Pacem in terris”. João XXIII  dirige-se “a todas as pessoas de boa vontade” pois, o meio ambiente é um bem comum. O fato de a  encíclica datar de 52 anos atrás merece duas considerações. A primeira. Na época a questão ambiental recém começava a frequentar os debates científicos, as primeiras entidades de proteção à natureza começavam a ser criadas. No Brasil  as fronteiras de expansão agrícola avançavam sobre as florestas virgens do oeste do Paraná. Não demoraria o assalto aos dois Mato Grosso, o cerrado do Brasil Central, Rondônia, Acre e para além para o norte, Amazônia adentro. Vozes isoladas alertando para as consequências funestas da substituição dos gigantescos ecossistemas  naturais por outros tantos humanizados, faziam-se ouvir desde o final do século XIX, mas nada comparável ao que acontece nesse nível hoje. As encíclicas dos dois papas mencionados são, portanto, uma prova inequívoca de que o magistério oficial da Igreja estava alerta e decidido a dar a sua contribuição para lidar corretamente com o problema que se desenhava no horizonte.

A Pio XII, um intelectual de primeira linha coube definir as bases teóricas e doutrinárias em que  que tornaram possível levar objetivamente a uma compreensão da natureza a partir da realidade  científica e da doutrina da Igreja. Suas encíclicas deixam bem claro o que é da competência da Ciência e da Religião na compreensão da natureza e do “como” se originou  e evoluiu. As duas encíclicas  servem de referência para nortear qualquer pesquisa científica ou ação prática que tem como objeto  a “morada”, a “querência” em que a espécie humana construiu e continua construindo a sua história. E, par que as reflexões, os debates e as conclusões sobre essas questões tão complexas não estagnassem no nível dos documentos pontifícios, Pio XII criou a “Academia Pontifícia de Ciências”, como fórum de debates sérios aberta a todo o cientista interessado, independente à filiação filosófica ou confessional.

O perfil mais acadêmico das encíclicas de Pio XII, vai dar lugar a documentos de igual peso e valor doutrinário, mas de cunho mais prático, publicados pelos seus sucessores, chamando a atenção para a responsabilidade e o compromisso para com o meio ambiente. Vai nesse sentido  Encíclica “Pacem in terris” de João XXIII ao fazer o convite “a todas as pessoas de boa vontade” a comprometer-se com o futuro da “nossa casa” como costumava São Francisco se expressar quando falava da natureza.

Em 14 de maio de 1971, oito anos depois da “Pacem in terris”, Paulo VI publicou a Carta Apostólica ”Octogesima Adveniens”. Nela chama a atenção para os riscos  acarretados pela degradação progressiva e acelerada da natureza ou a consequência dramática  resultado da exploração  inconsciente da natureza e dessa maneira o próprio ser humano ser vítima da sua obra destruidora. Num discurso à FAO em 16 de novembro de  19770, alertou para  uma “catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial; para a necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade”, porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente  contra o homem”.

João Paulo II sucessor de Paulo VI na sua primeira encíclica  “Remptor Hominis”, de  4 de março de 1979, deixou a observação que o ser humano  parece “não se dar conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para                              os fins de um uso e consumo imediato”. Em 2001  João Paulo II volta a questão ambiental, convidando para uma “conversão” ecológica global. Na encíclica “Centesimus Annus” de 1º de maio de 1991 chama a atenção de que é preciso  “Salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana”. Na encíclica “Sollicitudo rei socialis” de 30 de dezembro de 1987, o papa falando dos modelos de convívio social em vigor e as políticas de produção, nas estruturas de poder que hoje regem as sociedades”, insiste no  ponto nevrálgico do problema. O progresso humano deveria ter como baliza norteadora  o caráter moral, ou se preferirmos o caráter ético, raiz das raízes, motivação das motivações, para toda e qualquer iniciativa no complexo campo da ecologia. Ao lidar com o mundo natural,  “é preciso ter em conta a natureza de cada ser e as ligações entre todos num sistema ordenado”.

A conclusão é óbvia. A atividade do homem no mundo natural, o aproveitamento dos seus recursos, só se legitima quando se respeita a sua destinação original. Em ouras palavras. Os recursos naturais destinam-se a todos os homens, independentemente de raça, cor, filiação confessional, nível cultural, nível econômico ou status social. Todos tem o mesmo direito ao acesso desses bens  e assim suprir as suas necessidades materiais e espirituais. No momento em que essa destinação for viciada por outros interesses, atenta-se contra a ética e a moral  implícita no conceito de natureza. Qualquer iniciativa, projeto ou programa de exploração da natureza é ilegítimo quando entra em conflito com o bem comum, contra a natureza e, em situações mais graves, criminosa.

E para concluir a inegável preocupação das autoridades  máximas da Igreja sobre  a questão ecológica, não se pode esquecer o que Bento XVI, antecessor imediato do papa Francisco, pensou sobre a problemática. Na carta apostólica de 29 de junho de 2.009, o papa   referiu-se ao desafio ecológico. O foco das suas preocupações, como a dos seus antecessores, foi a identificação dos fundamentos, sem os quais, o tema, em última análise não faz tanto sentido pois, é nivelado a outras questões e, como elas, tocado à base de ideologias, de interesses econômicos, políticos e outros, ditados pelas conveniências em moda.

Num discurso endereçado ao corpo diplomático em 8 de janeiro de 2007, Bento XVI retomou o pensamento do seu antecessor sobre  a questão ambiental. Reforçou o discurso de João Paulo II, ao conclamar os diplomatas a se empenhar num esforço supranacional para “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente”. O mundo,  segundo o pontífice, não pode ser compreendido nas sua enorme complexidade, focando ou tentando entender uma ou outra de suas dimensões. A natureza é uma grandiosa e engenhosa síntese. Em vão são as tentativas para entende-la dissecando as partes, porque “esse livro da natureza é indivisível”. “Ex partibus omnibus ellucet totum – “o todo revela-se por todas as suas partes”, diria Nicolau de Cusa. Nessa indivisibilidade não entram apenas em questão o que tecnicamente se costuma entender ao falar em natureza ou meio ambiente. A “nossa casa”, a “querência” que abriga o homem e permite que sua existência aconteça e se realize, só “é um livro indivisível”, quando incluímos nele o homem, o personagem que lhe confere sentido e razão de ser. Portanto, a natureza como uma “realidade objetiva”, como a concebeu o cientista Edward Wilson, vai incorporando no decorrer da sua história o homem com suas obras e organizações, em parceria com os ambientes físico-geográficos peculiares. Em outras palavras. A resposta na forma de culturas diferenciadas  resultam da maneira singular em que acontece a simbiose entre o homem  e seu meio, sua “casa”, sua “querência.

E é nessa perspectiva que vai o conceito de “paisagem humanizada” ou “Ecossistema humanizado”. A lógica leva a concluir que a humanização dos ecossistemas é fundamental para a moldagem do perfil das culturas que neles prosperam, assim como a recíproca que não é menos verdadeira. Por isso faz todo o sentido a observação de Bento XVI na encíclica “Caritas in Veritate”, de 29 de junho de 2.009. “A degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana”. Depois de apontar para os estragos que o homem já causou à natureza, a casa que o abriga e alimenta, `”sua casa”. Depois de afirmar que essa irresponsabilidade já afetou o próprio modelo das organizações sociais e culturais em vigor, como teólogo vai à raiz do problema. De acordo com sua  avaliação, os males que geram essas distorções, para não dizer aberrações, resumem-se em última análise num só. A lógica que alimenta todo esses processo é a falsa convicção de que não existem “verdades indiscutíveis”, não  existem balizas irremovíveis, não há valores permanentes, que marcam os limites para o exercício da liberdade. No  discurso que Bento XVI pronunciou em Berlim, no Bundestag, a um certa altura alertou: “O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza. E num discurso ao clero da diocese de Bolzano-Bressanone na Itália, lembrou que “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente a nossa propriedade onde consumimos apenas para nós mesmos, começa o desperdício da Criação  onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”.

A evolução da compreensão da natureza e a doutrina ambiental da Igreja, expressa nos documentos oficiais, parece seguir os seguintes passos. A primeira abertura  oficial para uma perspectiva mais objetiva, mis compreensiva e mais completa da natureza, começou com Pio XII. Os avanços e os resultados em todos os campos do saber, especialmente nas Ciências Naturais deixaram claro que a cosmovisão tradicional da Igreja reclamava uma reinterpretação. Pio XII foi o homem certo no momento certo para dar partida a essa oxigenação inadiável da Igreja Católica em relação ao mundo científico e suas conquistas e resultados. Com a encíclica “Divino Afflante Spiritu” de 30 de setembro de 1943 começou a abertura, removendo um dos obstáculos mais renitentes a dificultar, para não dizer, impedir o clero e o povo católico em geral, o trânsito livre no grande universo científico ao permitir a flexibilização na interpretação da Sagrada Escritura. Lembramos como exemplo paradigmático o cientista jesuíta Erich Wassmann que, tendo em vista as determinações anti-modernistas de Pio X, desistiu em 1910 da publicação da terceira edição da sua obra clássica: “Moderne Biologie”.  Pio XII com sua vasta formação profana e religiosa, somada à vivência como diplomata, como núncio apostólico em Berlim, percebeu a urgência em mexer no que aprecia um autêntico tabu, isto é, a interpretação das Sagradas Escrituras. A interpretação literal dos textos, em especial do Gênesis, distanciava-se a passos quilométricos do que as Ciências vinha constatando. A interpretação literal já não se sustentava. Frente a esses cenário Pio XII, por meio da “Divino Afflante Spiritu” liberou a discussão sobre a natureza e a interpretação dos textos sagrados. Para tanto seria preciso o recurso à língua original em que os textos foram escritos, valendo-se de todos métodos e instrumentos científicos no campo da linguística, da literatura, da arqueologia, da antropologia, da etnohistória e das  demais ciências complementares.

Na Encíclica “Humani generis” de agosto de 1950, Pio XII avançou mais um paço  de fundamental importância para viabilizar  o esforço comum entre a Ciência e a Religião, em busca de uma compreensão objetiva da natureza e, consequentemente, do homem. Invocando a necessidade de tomar em consideração as evidências reveladas pela Ciências Naturais, franqueou a porta para que a evolução explique o “como” a natureza funciona. Quanto a natureza humana, sua origem e evolução biológica insere-se logicamente nessa perspectiva. Para o católico não há impedimento, melhor é de suma importância participar das pesquisas e das reflexões que dizem respeito à evolução. Não ha igualmente restrição em compartilhar e aceitar os resultados, com uma dupla ressalva. Em primeiro lugar, que plano biológico, incluindo o homem, essas conclusões  não sejam interpretadas como verdades definitivamente comprovadas. Em segundo lugar, fica fora de qualquer discussão incluir a alma, o espírito como resultado do processo evolutivo. O corpo pode ter evoluído, a alma não. A alma foi criada imediatamente por Deus, por isso é um questão de fé, não de ciência.

Tomando em consideração o estágio em que se encontravam as pesquisas científicas em 1950, a “Humani gerneris” foi, ao mesmo tempo, realista e profética. Realista porque a Igreja Católica acertou oficialmente  o passo com a Ciência; realista porque em vez de contestar, contestar e olhar com desconfiança para  os cientistas e a ciência e suas conclusões, decide ser colaboradora e parceira. A criação da “Academia Pontifícia de Ciências” por Pio XII é a prova material dessa disposição. A Encíclica foi igualmente profética  pois, a cada  dia cresce o número de cientistas de peso, católicos, cristãos de diversas denominações , representantes de outras religiões, ou simplesmente humanistas seculares, que entendem a natureza como uma síntese, a partir dos conhecimentos gerados pelas Ciências Naturais, as Ciências do Espírito, as Ciências Humanas, as Letras e as Artes. É nessa  perspectiva multifacética que se concebe hoje a natureza e sobre  qual se fundamenta a autêntica consciência ecológica e as iniciativas e as ações práticas para pô-la em prática.

O caminho pois, estava livre para que a Ciência e a Religião, cada qual à sua maneira e com seus métodos contribuíssem com a sua parte para compreender a natureza na sua complexidade e, partindo desse pressuposto, partissem em sua defesa. Foi o que aconteceu há há mais de 50 anos com a encíclica “Pacem in terris” de João XXIII. Os sinais de alerta denunciando as agressões perigosas ao meio ambiente começavam a ser ouvidas e o papa associou-se com toda a sua autoridade.

Diante do descaso com o meio ambiente e o agravamento da situação, fizeram-se ouvir os alertas de Paulo VI. O tom e a frequência das preocupações multiplicaram-se na mesma proporção em que as agressões à natureza se multiplicavam e agravavam. Foram contundentes e alarmantes as manifestações de João Paulo II e Bento XVI. E a essa altura em que os desmandos do homem contra  a natureza passaram do limite tolerável, às vésperas da reunião dos líderes mundiais em Paris, para discutir a situação, o Papa Francisco contribui para enriquecer a discussão, com a Encíclica ”Laudato se” com toda a propriedade apelidada de “Encíclica verde”.


A “Encíclica  verde” parte do fato  de que, de dois séculos para cá, a relação do homem com a natureza enveredou por um caminho preocupante. Aliás as raízes do problema devem ser procuradas muito mais cedo, entre 15000 a 20000 anos atrás. Esse longo caminhar histórico da humanidade, a par dos muitos e inegáveis benefícios, veio acompanhado por efeitos, a longo prazo, opostos aos benefícios. Representam o resultado paradoxal inerente à  própria inserção existencial do homem na natureza. Suas raízes como espécie biológica alimentam-se do chão comum a todas as demais espécies vivas, planas e animais. Como elas vive, sobrevive ou perece abraçado às vicissitudes do ambiente natural, que fornece alimento e abrigo ao corpo e os símbolos e a inspiração para o espírito. Na abundância prospera e na escassez definha. Da saúde, equilíbrio e integridade da natureza depende a saúde e a prosperidade do homem. A degradação natural ou artificialmente induzida, leva à deterioração do homem como espécie, acompanhado da decadência das culturas e civilizações.

Pela sua própria natureza os animais dispõem do instinto e os vegetais o potencial de adaptação para enfrentar as oscilações climáticas e as modificações dos ecossistemas. O homem dispõe da inteligência reflexa e da liberdade como ferramentas para lidar com o meio  ambiente e servir-se dos recursos naturais. A inteligência reflexa permite-lhe observar, identificar e avaliar os recursos naturais disponíveis. Ela decide sobre “o que” e o “para que” servem as dádivas da natureza. A liberdade permite optar por uma das alternativas, mais ou menos adequada, como caminho para “o como” será o processo da apropriação dos recursos naturais.  Sendo assim o homem foi descobrindo, via inteligência reflexa, de como administrar a “sua cassa”, a “sua querência” e, via liberdade, escolher e decidir-se pela forma como explorar os recursos naturais. Munido com essas duas ferramentas enfrentou os desafios que vinha encontrando pela frente.

Durante muitos séculos, dezenas de milhares de anos a humanidade viveu e sobreviveu com mais ou menos êxito das  dádivas espontâneas postas à sua disposição pela natureza. Colhia frutas, raízes, tubérculos e folhas comestíveis, caçava animais que com ele compartilhavam o mesmo espaço e pescava os  peixes  em abundância nos rios, arroios lagoas e costas marítimas. Com sua criatividade foi coletando, inventando e aperfeiçoando ferramentas para torna a coleta, a caça e a pesca cada vez mais fácil e rendosa. A prova dessas conquistas estão nos instrumentos de pedra lascada do paleolítico. Com toda a certeza, a pedra lascada, com destaque para o sílex encontrável em qualquer lugar e o menos frequente vidro vulcânico, não foi a única matéria prima com que homem daqueles tempos remotos fabricava instrumentos. Pode-se afirmar com certeza que a madeira,  osso,  chifre e dentes tiveram a mesma utilidade. Acontece que muito mais susceptíveis à destruição pelos agentes de degradação naturais, seus vestígios foram apagados.

O fato é que o homem do paleolítico, ao lado de diversificar e aperfeiçoar os instrumentos, foi ampliando e aperfeiçoando o conhecimento das plantas que lhe forneciam alimentos. Os caçadores, por sua vez foram observando os hábitos dos animais, como algumas espécies habituaram-se presença do homem e conviviam com ele perto do acampamentos. Somado ao aperfeiçoamento de tecnologias, a entrada do fogo  no quotidiano  somou um potencial de progresso difícil de avaliar.


Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 2 -

As conclusões práticas da concepção do universo e da natureza de Teilhard, relativas à  convivência e interferência no meio ambiente assim como a exploração dos recursos que oferece, vem a coincidir com as que concluímos da cosmovisão de Rambo.

Erich  Wassmann, outro jesuíta como o papa Francisco, tornou-se conhecido e respeitado  nos debates  sobre o monismo materialista de Ernst Haeckel, no começo do século XX. Partindo das suas observações em colônias de formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos, concluiu pela incapacidade de a ciência e seus métodos esclarecerem as bases últimas da existência da natureza, da leis que a regem e o sentido que subjaz a tudo isso. A limitação dos seus métodos permite apenas responder ao “como” tudo funciona. Fica faltando a resposta para o “donde”, “porque” e “para onde” e consequentemente a lógica e a teleologia que impedem que tudo desande confiada a uma dinâmica cega e errática, entregue ao acaso, terminando no caos, precisa ser procurada em outro nível.

Aqui se oculta uma linha de raciocínio eminentemente teleológica. Se for levado às últimas consequências lógicas, termina necessariamente no reconhecimento de um Criador pessoal, responsável pelas leis da natureza pois, as leis da evolução devem ter sido concebidas pelo mesmo legislador que outorgou as leis para o mundo ambiente como um todo e as  aplicou harmonicamente às leis da evolução dos seres vivos. Esse legislador só pode ser uma sabedoria supra-humana que, como causa primeira, regula e inclui a natureza toda nas leis que a regem. Assim as adaptações orgânicas constituem-se num testemunho vivo, numa prova da moderna concepção teísta do mundo (Stimmen der Zeit, vol. 100, 1921, p. 136)

Começamos a contextualização da “Encíclica Verde” do papa Francisco com a visão do mundo de Edward Wilson que  se auto define como um “humanista secular” e defende que a natureza é um “fato objetivo”, isto é, uma realidade, um ente objetivo que não se resume na simples soma de suas partes. O entendimento da natureza como uma unidade sistêmica ou orgânica, dos três cientistas, jesuítas como o papa, Wassmann, Teilhard e Rambo, coincide na sua essência com a do “humanista secular” Edwartd Wilson. A diferença mais significativa entre ele e os três jesuítas talvez seja o fato de ele não responder  como foi “o começo dos começos” e o sentido e o destino final de tudo. Respondeu ao “como” e, ao afirmar que a natureza é um “fato objetivo”, sinalizou para uma saída para o “porque” e o “para onde”. Os outros três coerentemente pressupõe um ato criador de Deus que desencadeou tudo e potencializou a natureza para evoluir garantindo a unidade na diversidade. Para todos eles a natureza é a “casa”, a “querência”, a “pátria” do homem. Nela a espécie humana surgiu, vive e sobrevive dos seus recursos, constrói a sua história.  Nela cumpre o  papel como espécie singular na sinfonia das coisas. A conclusão legítima e lógica resume-se no fato de a natureza constituir-se ontologicamente num bem comum que exige que se recorra a critérios éticos quando do seu uso e fruto.

E, afim de ampliar e enriquecer  a contextualização da “Encíclica Verde” do papa Francisco, apresentamos a cosmovisão de ouros três cientistas de renome, representantes do universo científico leigo: Ludwig von Bertalanffy, Francis Collins e Theodosius Dobhansky.

Para Ludwig von Bertalanffy a arquitetura e o funcionamento da natureza acontece na forma de um  “sistema” como ensina na sua “Teoria Geral dos Sistemas”. Aos  elementos aparentemente mais insignificantes cabe uma função. Colaboram para que o todo funcione corretamente. A natureza, mais especificamente a biosfera, enquadra-se perfeitamente no conceito de sistema proposto por ele. Nenhum micro-organismo, nenhum inseto, nenhum vegetal ou outro ser vivo qualquer, pode ser descartado sem de alguma maneira afetar o bom funcionamento do todo. E como  qualquer sistema cumpre uma finalidade, obedece a um plano e, por isso mesmo, é impulsionado por uma teleologia inerente à sua própria natureza. Como tal é o cenário no  qual a espécie humana existe, subsiste, prospera ou perece.

Não é aqui o lugar de entrar mais a fundo, na análise mais detalhada do conceito de sistema assim como Bertalanffy o propõe. No contexto das reflexões sobre a “Encíclica Verde”, o importante é destacar a ideia de unidade, de totalidade, de dinâmica teleológica subentendida na natureza como um sistema total  e nos inúmeros sub sistemas em que pode ser desdobrada. Do bom ou mau estado da natureza como sistema, depende a quantidade e a qualidade dos recursos de que o homem dispõe para atender suas demandas materiais e espirituais. Por essa razão o equilíbrio desse sistema significa um bem comum e, por isso mesmo seu correto uso vem a ser uma exigência ética. Uma segunda lição, e esta fundamental na motivação de iniciativas  em defesa do ecossistema global da terra e  os inúmeros subsistemas que o integram, recomenda uma vigilância severa sobre as diversas formas de explorar os recursos naturais pois, toda e qualquer ação invasiva numa parte afeta o equilíbrio  na proporção direta da sua capacidade destrutiva.  A unidade funcional defendida pelo conceito de sistema  deveria servir de marco de referência para qualquer iniciativa preservacionista que mereça esse nome. Serve também de alerta que mesmo o combate a uma só espécie, ou a extinção de qualquer espécie animal ou vegetal afetará proporcionalmente o bom ou mau desempenho do todo. Quanto mais invasiva  a ação, tanto maior o estrago. Como exemplo lembramos a ruina em cascata da biosfera com o desaparecimento, por ex., dos insetos como a detalhou Edward Wilson.

Francis Collins, especialista em genética médica e diretor do Projeto Genoma a partir do qual foi desenhado o mapa do código genético do homem, é outro que defende a  unidade da natureza em seu magnífico livro “A Linguagem de Deus”. Como sugere o título, o código genético é uma outra modalidade, uma outra linguagem com que Deus se comunica, para quem sabe ler essa escrita cifrada na qual as letras são os genes. Collins informa que foi agnóstico até os 21 anos. Daí até os 27 ateu convicto. Quando, como médico residente, entrou em contato com os doentes  no hospital, a atitude deles, a maioria pessoas comuns, frente aos males que os afligiam, convenceu-o da razoabilidade, para não dizer necessidade, de admitir a existência de um Deus. Desde então não se cansa em mostrar que não há nenhuma incompatibilidade entre a Ciência e a Fé em Deus; que para a origem do universo e da natureza não há como não invocar a mão de um Deus Criador; que Ele muniu a matéria original da qual evoluiu a natureza, o “estofo”  do universo como diria Teilhard, com as potencialidades que a evolução se encarregou e ainda se encarrega de concretizar. Nessa perspectiva o universo e a natureza são logicamente uma grande unidade com todas as consequências práticas sinalizadas pelos cientistas acima mencionados. O Dr. Collins resumiu a sua compreensão do universo, da natureza e do homem assim.

Minha proposta é rebatizar a evolução teísta como “Bios pelo Logos” ou simplesmente “BioLogos”. Os acadêmicos  reconhecerão “Bios” como vida em grego e “Logos” como palavra em grego. Como muitos que acreditam em Deus, “Verbo”, sinônimo de Deus, como expressou de maneira impressionante e poética nas primeiras e majestosas linhas do Evangelho de João. “No princípio era o Verbo e o Verbo era Deus”. (João 1:1). BioLogos expressa a crença que Deus é a fonte de toda a vida, e a vida expressa a vontade de Deus. /A Linguagem de Deus, 2007, p. 209).

E, para concluir essa introdução  de contextualização, que já se avoluma, acrescentamos mais um cientista, uma das maiores autoridades em genética do século XX, Theodosius Dobzhansky, crente e filiado à igreja ortodoxa russa. Não é aqui o lugar para comentar a pesquisa em genética e os resultados  por ele obtidos. Importa destacar as esperanças e as incertezas que o cenário natural e o homem interferindo nele, sugere. Tomando como base os conhecimentos de genética de que Dobzhansky dispunha o dados, na sua essência confirmados durante os últimos 45 anos, para formular seu diagnóstico que coincide com os demais cientistas citados e o da Encíclica Verde. Concluindo seu livro “La Herencia e la Naturaleza del Hombre , (1969, p. 177), deixou sua opinião conclusiva sobre a questão. A evolução do homem pressupõe os fundamentos biológicos da natureza humana e fornece a bases operacional que permitiram que as manifestações culturais se tornem possíveis.