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Até a essa altura da história – entre 15000 a 20000 anos – a humanidade vivia e progredia numa quase perfeita harmonia com os ambientes naturais. Sua interferência na natureza não passava dos limites das suas necessidades básicas. Todos os ecossistemas, os grandes, os pequenos, os locais, os regionais e os continentais, ostentavam suas fisionomias originais. Dispersas pelas florestas, estepes e savanas observavam-se colunas de fumaça indicando os locais dos acampamentos, das moradas em abrigos artificiais ou em cavernas dos nossos antepassados remotos. Esse cenário começou a mudar com a “revolução dos alimentos” como a denominou Darcy Ribeiro, a entrada na história da agricultura e da criação de animais, ou a “primeira traição da natureza” conforme Edward Wilson. O motor dessa nova dinâmica que deu início ao Neolítico, tem a sua raiz em duas  descobertas dotadas de um poderoso potencial de libertação do homem da dependência total do meio geográfico e seu progressivo controle sobre os recursos necessários à sua subsistência. Esse lado da medalha justifica a afirmação de Darcy Ribeiro. De outra parte marca o começo da humanização das paisagens avançando em ritmo geométrico até alcançar níveis críticos neste começo do terceiro milênio. Avaliado sob esse prisma,  Edward Wilson está cheio de razão  quando fala em “traição à natureza”. A “revolução dos alimentos”” que pela sua própria natureza implicou numa “traição à natureza” mereceu o comentário.
O poder de destruição do Homo sapiens não tem limites, embora nossa biomassa seja quase invisível de tão minúscula. É matematicamente possível empilhar todas as pessoas da Terra em um único bloco de 4 quilômetros cúbicos e esconder esse bloco em alguma área remota do Grand Canyon, até que desapareça. Contudo, a humanidade é a primeira espécie na história da vida na Terra a se tornar geofísica. O homem, esse ser bípede, cabeça-de-vento,  já alterou a atmosfera e o clima do planeta, desviando-os em muito das normas usuais. Já espalhamos milhares de substâncias químicas tóxicas pelo mundo inteiro, já nos apropriamos de 40% da energia solar disponível para a fotossíntese, já convertemos quase todas as terra facilmente aráveis, já represamos a maioria dos rios, já elevamos o nível dos mares, e agora, em uma virada capaz de atrair a atenção geral como nunca antes se conseguiu, estamos perto de esgotar a água. Um efeito colateral  de toda essa atividade frenética é a  extinção contínua de ecossistemas naturais, junto com as espécies que os compõem. Trata-se do único impacto da atividade humana que é irreversível. (Wilson, 2008,  p. 38-39)

Diante desse quadro preocupante, Wilson como especialista em entomologia  e estudioso de todas as outras nano formas de vida, chama a atenção para a  importância delas na sustentação da biosfera como um sistema, como uma síntese de extrema complexidade e, ao mesmo tempo, de impressionante fragilidade. Há em primeiro lugar o fato de que a extinção de espécies, tanto animais quanto vegetais, priva irremediavelmente as futuras gerações de preciosos recursos naturais. Com a extinção de cada espécie animal e vegetal desaparece, sem deixar vestígio, mais uma parcela preciosa de informações de como funciona a Natureza, qual a função que lhe cabe no bom funcionamento do todo e até que ponto empobrece e fragiliza a natureza como uma síntese global. Incontáveis fontes de medicamentos, plantas comestíveis, madeiras, fibras estarão irremediavelmente perdidos. Perdida também estará a contribuição que as espécies de plantas extintas poderiam oferecer para  a restauração dos solos, somado à contribuição ao equilíbrio do clima, da umidade, do regime de chuvas  e da retenção e distribuição da água subterrânea.

Um outro aspecto da questão costuma passar despercebido para os críticos das iniciativas e cruzadas em favor do meio ambiente, e os próprio promotores e ativistas engajados em programas  de defesa da Natureza. Mais acima já tocamos nessa questão. Referimo-nos a nano e microfauna que povoa todos os cantos e recantos onde há um mínimo para viver. Sua importância é crucial para manter os ecossistemas em equilíbrio funcional, para que a síntese não se desfaça.

As plantas verdes, bem como as legiões de micro-organismos e minúsculos invertebrados, são a matriz que sustenta a nossa existência. E eles o fazem por uma simples razão: por serem tão diversos geneticamente, o que lhes permite dividir seus papéis no ecossistema até um altíssimo grau de resolução. São tão abundantes que pelo menos alguns ocupam praticamente cada metro quadrado da superfície da Terra. Suas funções no ecossistema são redundantes: se uma espécie é eliminada, muitas vezes já há outra capaz de se expandir e tomar o lugar daquela, pelo  menos em parte. As demais espécies, em conjunto, constituídas sobretudo de “bichinhos” e “mato”, governam o mundo  exatamente do jeito como gostaríamos que ele fosse governado, pois, durante a pré-história, a humanidade evoluiu de modo a depender das ações combinadas desses seres e da garantia de estabilidade que a biodiversidade oferece ao mundo.
A Natureza viva  nada mais é do o conjunto dos organismos em estado natural e o equilíbrio físico e químico que essas espécies geram por intermédio de sua interação. Mas também é nada menos que esse conjunto e esse equilíbrio. O poder da natureza viva consiste em sua sustentabilidade por meio da complexidade. Basta desestabilizá-la. degradando-a para um estado mais simples, como a nossa espécie parece estar decidida a fazer, e o resultado pode ser catastrófico. Os organismo mais afetados provavelmente serão os maiores e mais complexos, inclusive o homem. (Wilson, 2008  p. 41)

Especialista que é em Entomologia, Wilson serve-se dos seus conhecimentos sobre insetos para exemplificar a sua afirmação. Entre todos os seres vivos conhecidos, estudados e catalogados, os insetos são de longe o grupo mais numeroso e diversificado. Por ocasião da publicação do livro “A Criação”, em 2006, constavam 900 mil espécies descritas e classificadas. Os cientistas estimam que o número das já descritas e as que aguardam a classificação deve chegar ao surpreendente número  de  10 milhões ou mais. O volume da biomassa  desse fantástico universo de insetos equivale ao quase inimaginável. Cerca de um trilhão de milhões de insetos se movimentam na biosfera. Estima-se que seu peso equivalha ao de 7 bilhões de seres humanos. Os insetos, os minúsculos copépodos, crustáceos marinhos, os ácaros e os vermes nematoides são responsáveis por quatro quintos da biomassa total do planeta. Wilson pergunta: “Será que alguém acredita que essas pequeninas  criaturas existem apenas para preencher espaço?” (A Criação,, p. 42). Entre os  insetos, as abelhas por ex., são indispensáveis para a reprodução dos angiospermas, pois, respondem pela polinização. Pelo efeito de seu extermínio por meio de inseticidas, os chineses têm muito a lamentar. Milhões de dólares são necessários para polinizar pomares, trabalho prestado de graça pelas abelhas que de troco ainda fornecem o mel com as muitas qualidade nutritivas e medicinais. De outra parte os insetos dispensam a presença do homem. A recíproca já não e verdadeira. Se a humanidade desaparecesse de uma hora para a outra da face da terra, poucas ou nenhuma espécie de insetos seria afetada, além de algumas  exclusivamente adaptadas para parasitar o homem. Suposta a extinção da espécie humana em menos de meio milênio, os ecossistemas se regenerariam e voltariam a ostentar aa fisionomia de 10000 anos passados. Como já referimos, do acidente nuclear de Chernobil originou-se um laboratório natural significativo dessa capacidade de auto regeneração da Natureza. De  outra parte, porém, se os insetos fossem extintos na sua totalidade, todos os ecossistemas entrariam em colapso. Em resumo. A espécie humana não sobreviveria sem os insetos, mas os insetos sobreviveriam tranquilamente sem a presença do homem. Vale a pena esquematizar o  efeito dominó do colapso progressivo nos ecossistemas naturais com a ausência  dos insetos, elaborado por Wilson.

A maioria das plantas que dão flores - as angiospermas – privadas do seus insetos polinizadores pára de se reproduzir.
Entre elas a maioria das espécies de plantas  herbáceas decresce até a extinção. Os arbustos e as árvores polinizadas por insetos sobrevivem mais alguns anos, ou, em alguns casos raros, até séculos.
A grande maioria dos pássaros e outros vertebrados terrestres, privados da sua alimentação especializada de folhas, frutos e insetos, segue as plantas em extinção.
Desprovido dos insetos o solo não é revolvido, o que acelera  o declínio das plantas, uma vez que são os insetos – e não as minhocas, como em geral se pensa – os principais encarregados de remexer e renovar o solo.
Populações de fungos e bactérias explodem e  prosseguem no auge durante alguns anos, enquanto metabolizam o material das plantas e animais mortos, que vai se acumulando.
Os tipos de relva polinizados pelo vento e um punhado de espécies de samambaias e coníferas se alastram pela maior parte das áreas deflorestadas e depois conhecem algum declínio, à medida que o solo se deteriora.
A espécie humana sobrevive, mas volta a viver de grãos polinizados pelo  vento e da pesca marinha. Porém, com a fome generalizada durante as primeiras décadas, as populações humanas despencam para uma pequena fração dos níveis anteriores. As guerras pelo controle dos recursos cada vez mais escassos, o sofrimento, o declínio tumultuado para um barbarismo da Idade das Trevas seriam sem precedentes na história humana.
Agarrando-se à sobrevivência em um mundo devastado, e aprisionados em uma verdadeira  Idade das Trevas do ponto de vista ecológico, os sobreviventes iriam rezar implorando a volta das plantas e dos insetos. (Wilson, 2008,  p. 43-44)

Diante desse quadro sombrio, resultante da extinção dos insetos o autor adverte que é preciso avaliar com toda a seriedade o uso de inseticidas. Uma única espécie das centenas de milhares faz uma enorme falta na manutenção do equilíbrio ambiental. Somente em raríssimos casos, a erradicação seria aceitável. Entre eles contam os piolhos parasitas exclusivos do homem, ou os mosquitos  africanos Anopholes gambiae que se alimentam do sangue humano e transmitem  malária do tipo maligno. Apenas uma em 10 mil espécies de insetos merece se combatida por ser prejudicial ao homem. Um dos maiores, senão o maior dos  desafios que os estudiosos enfrentam, é entender exatamente como funciona a biosfera e os ecossistemas que a compõem. Esse esforço implica em definir como esses ecossistemas são estruturados, como funcionam e, principalmente, as causas capazes de desmontá-los. “A Terra é um laboratório no qual a Natureza ou Deus, se o senhor preferir Pastor) colocou diante de nós os resultados de incontáveis experiências. Ela fala conosco, então vamos escutá-la” (A Criação, p. 46). É sintomático como Balduino Rambo, Francis Collins e Edward Wilson, concordam, por assim dizer, nos próprios conceitos. Para o primeiro a Natureza é o livro aberto da Revelação. Basta saber lê-lo para entender a sua mensagem; para Collins o código genético é “Linguagem de que Deus se serve para comunicar-se  com seus interlocutores; para Wilson; a Natureza fala conosco”. Para entendê-la corretamente é preciso de muito conhecimento sobre a enorme complexidade da sua estrutura, sobre a fina calibragem que garante o perfeito funcionamento das partes em função da integridade e harmonia do todo, sobre os riscos que se enfrentam quando de  intervenções predatórias, mal pensadas e ou irresponsáveis. Esse alerta dos três grandes estudiosos e dos demais analisados até aqui e de muitos outros, sem dúvida, aponta para o argumento maior em favor de qualquer iniciativa que tem como objetivo a luta pela preservação da integridade e saúde do nosso Planeta. Como a espécie biológica humana é um rebento da natureza como todas as demais, sua existência e sua razão de ser consiste em servir-se dos bens da Natureza na medida em que todos os homens, individualmente, tenham acesso aos recursos necessários para o seu bem estar material e espiritual. Não há necessidades de recorrer a uma lógica complicada para perceber que estamos diante de um Postulado Ético. O interesse pela integridade dos ecossistemas e seus recursos naturais por razões econômicas, políticas, ideológicas, saudosistas ou qualquer outra, perde a razão de ser no momento em que se ignora  o “Fator Ético”.


Salvo melhor entendimento, está suficientemente claro o que Edward Wilson concluiu com suas pesquisas,  vivências, mais exatamente, com o estudo dos insetos e a observação do funcionamento dos ecossistemas, como ele próprio resumiu ao afirmar de que, “a Natureza é um fato objetivo”. Bertalanffy diria que a Natureza  é um “Sistema” gigantesco e infinitamente complexo. Teilhard de Chardin a descreveu por meio da sua grandiosa concepção do universo, que supõe um começo, um “alfa” que prima pela simplicidade, mas que foi o ponto de partida para uma complexificação auto alimentada em progressão geométrica, até o estado em que o Homo sapiens dotado de inteligência reflexa, entrou em cena e  foi perturbando gradativamente o equilíbrio da biosfera como um todo até um patamar preocupante

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Algumas reflexões

Analisando com um pouco mais de atenção o que significa a “Natureza como um fato objetivo”, percebe-se que esse conceito, coincide na essência com o de “Sistema” de Ludwig von Bertalanffy e o de “Biologos” de Francis Collins. Por vias de aproximação diferentes os três cientistas chegaram a mesma conclusão  final. Os resultados dos modelos matemáticos utilizados por  Bertalanffy, as descobertas genéticas e o mapeamento do genoma humano por Collins, a observação dos ecossistemas  naturais e humanizados de Wilson, convergem  para o consenso de que a natureza é um sistema, a natureza é uma unidade biológica, a natureza é um fato objetivo. Esses três pesquisadores representam o contexto em que se pratica ciência de alto nível sem nenhum compromisso com alguma filiação filosófica e ou religiosa. Apesar disso Collins, depois de  passar pela experiência do agnosticismo e do ateísmo, terminou como crente convicto na existência de Deus; Wilson declara-se um “humanista secular”; Bertalanffy não declara suas convicções filosóficas, mas dá a entender que pelo menos admite algo nessa direção ao incluir em sua concepção sistêmica todas as áreas do conhecimento.
Edward Wilson, além de fazer ciência de alto nível alimenta uma preocupação paralela de fundamental importância para as circunstâncias atuais. Quer colaborar com os esforço generalizado que está sendo feito em todos os níveis e das formas mais diversas, para enfrentar o avanço desenfreado da deterioração da natureza. Na sua obra “A Criação – como salvar a vida na terra”, persegue um nítido propósito pedagógico, isto é, oferecer o fundamento científico sólido e coerente para servir de base para as ações concretas a serem postas em prática na cruzada pela preservação do meio ambiente.

Mais.  Acima já apontamos para a intenção expressa do autor de, na forma de um diálogo com um pastor fundamentalista, encontrar um caminho comum entre a Ciência e a Fé para chegar a um consenso sobre o que é a Natureza e, partindo dai, sugerir estratégias da ação fundamentadas e consistentes. Para tanto é preciso ter em vista, em primeiro lugar, que a “Natureza é uma realidade objetiva”, um fato objetivo, o resultado final de uma grande síntese. Parece que essa dimensão da Natureza  ficou suficientemente clara nas considerações feitas até aqui. Entretanto, o “fato objetivo” que esse “ente” que é a Natureza é, é surpreendentemente limitado e frágil. “O Homo sapiens é uma espécie confinada a um nicho extremamente pequeno”. (A Criação, p. 35). Para Wilson esse é o “Primeiro Princípio da Ecologia Humana”. Depois de formulado esse Primeiro Princípio, chama a atenção às duas dimensões que caracterizam a espécie humana: a mente e o corpo. Os voos da mente não são limitados nem pelo tempo nem pelo espaço. No tempo a mente é capaz de retroceder bilhões de anos e imaginar como foi o começo do universo, como a energia original  deu origem  a tudo que se pode encontrar em nossa volta; como se formaram os continentes, os mares e suas ilhas; como em um dado momento sugiram as primeiras formas de vida; como a evolução   povoou a terra com  incontáveis nano- micro- e macro espécies vivas de plantas e animais; como num determinado momento entra em cena o Homo sapiens; como os nossos antepassados, na condição de caçadores e coletores, passaram dezenas e dezenas de milhares de anos limitados pela fontes de alimentação;  como  penosamente  desenvolveram as primitivas tecnologias de lascar  pedras, instalar abrigos e confeccionar vestes; como se organizaram em sociedades sedentárias ou nômades; como construíam o seu imaginário mágico e/ou religioso; como foi a evolução da história desde os povos agricultores e caçadores do neolítico até hoje. 

Se a mente humana é capaz de percorrer os incontáveis milênios do passado do universo e do nosso planeta terra, também não encontra limites para se movimentar livremente no universo em que estamos confinados. Numa fração de segundos a nossa mente ultrapassa os confins do sistema solar, cruza todas as galáxias e vai em busca dos limites do universo. Com a mesma velocidade percorre continentes, florestas, desertos, mares,  oceanos e regiões polares, ou desce pela cratera de um vulcão até as entranhas da terra. Resumindo, não há barreiras nem temporais nem espaciais capazes de parar a mente humana. Para a mente humana o tempo e o espaço não oferecem barreiras. Quem sabe é por aí que temos um argumento em favor da imortalidade. Se a mente é capaz de ultrapassar as limites impostos pelo tempo e o espaço, ela não necessita necessariamente de um corpo limitado pelo tempo e o espaço. O problema é o corpo. Seu universo de movimentação é inversamente proporcional ao da mente. Sua trajetória de vida consuma-se nos limites de “uma bolha microscópica de restrições físicas”. (A Criação, p. 36).  Wilson resumiu essa realidade nos termos que seguem.

A Terra oferece uma bolha auto regulada que nos sustenta indefinidamente, sem nenhum raciocínio ou artifício da nossa parte. Esse escudo de proteção é a biosfera – a totalidade da vida, criadora  de todo ar, purificadora de todas as águas, administradora de todo o solo; mas ela é, em si  mesma, uma frágil membrana que mal se consegue se agarrar à superfície de planeta. Da sua delicada saúde nós dependemos para cada momento da nossa vida. (...) nascemos aqui como espécie, somos intimamente adaptados às suas condições severas – não a todas, apenas àquelas reinantes em alguns regimes climáticos encontrados em certas partes da área terrestre. (Wilson, 2008,  p. 36),

A permanência temporária do homem, porém, é possível encerrado em bolhas artificiais, que lhe possibilitam viver em ambientes climáticos extremos aqui na terra, como também na lua e futuramente quem sabe em Marte ou outros  planetas do sistema solar. Acontece que para realizar essas façanhas é obrigado a se confinar em cápsulas nas quais estão reproduzidas as condições climáticas da terra. Qualquer falha na manutenção desse artifício, significa a morte certa dos inquilinos. E há um segundo detalhe a ser considerado. Mesmo que tecnicamente seja viável mandar para a Lua  ou, quem sabe para Marte, os equipamentos necessários para montar um acampamento permanente, ou como é o sonho de não poucos cientistas, instalar uma colônia, a própria condição humana impede uma permanência mais longa nessas condições totalmente artificiais. Mesmo física e tecnicamente possível, psicologicamente se tornaria insuportável. Não nos iludamos, a querência do homem é o planeta terra e mesmo este só em parte. A verdade é que a evolução equipou o homem para viver e sobreviver na frágil, porém, espantosamente complexa e finamente calibrada biosfera. Essa realidade  deveria servir de advertência para que não passe se dos limites ao se servir dos recursos que a Natureza  põe à disposição.  

Durante todo o Paleolítico, o período mais longo da história – desde que surgiu o homem até aproximadamente 20000 anos – ele pouco ou nada ameaçou os ecossistemas naturais. Caçando, pescando e coletando raízes, tubérculos e frutas, sua agressão ao meio ambiente não foi maior do que das manadas de búfalos nas pradarias do Mississipi ou as matilhas de lobos do hemisfério norte ou dos leões nas savanas da África. Abrigava-se em cavernas e outros refúgios naturais, protegia-se com peles e folhas ou andava nu nos ambientes de clima mais quente. Antes da descoberta do fogo consumia os alimentos in natura como os animais. Acontece que o homo sapiens não era uma espécie zoológica igual às demais. Em seu cérebro faiscava a centelha da inteligência reflexa. Desde que surgiu em alguma savana da África ou em qualquer outro ambiente da terra, o primeiro  homem, sua relação com  o mundo natural, foi tomando um rumo e assumindo características ausentes nas demais espécies, por mais que seu DNA  se aproxime, por ex., ao do chimpanzé – 97%. A dinâmica ímpar que levou o homem  desde o começo a impor-se  ativamente aos desafios do entorno geográfico, tem o seu motor na inteligência reflexa, essa maravilhosa prerrogativa que faz com que  seja capaz de “saber os porquês do seu saber” ou ter “conhecimento” de si mesmo, enquanto as demais  espécies apenas “sabem” ou “conhecem”. Munido com essa ferramenta   única, os seres  humanos  não se limitavam ao ato instintivo de caçar, coletar ou abrigar-se em refúgios disponíveis em sua volta. Observando a natureza, examinando e comparando  os dados, fatos e fenômenos que encontrava, tirando conclusões sobre o que o rodeava, deu os primeiros passos que lançaram as bases sobre as quais evoluíram as culturas e civilizações.


Desde muito cedo caçadores e coletores começaram a fabricar instrumentos de pedra lascada, osso, chifre e madeira. O mais antigo vem a ser o “machado de punho” lascado de sílex. Tosco, pouco eficiente, servindo a muitos usos mas para nenhum especializado, foi o protótipo do qual evoluíram as ferramentas para cortar, cavar, bater, arremessar, além de muitos outros usos. É legítimo deduzir que paralelamente à  indústria lítica desenvolveu-se, aperfeiçoou-se e diversificou-se a indústria de ferramentas e utensílios a partir da madeira, chifre e osso como matéria prima. Por uma  razão muito simples os vestígios dessa indústria fica evidente bem depois da indústria lítica. Não resistem a milênios de exposição às intempéries e demais agentes de degradação. No andar e evoluir progressivo dessa história, a descoberta do fogo com suas múltiplas utilidades, veio a imprimir um dinamismo fora do comum com um leque de múltiplas novas oportunidades de sobrevivência  e progresso. Não parece exagerado falar numa autêntica revolução operada pela incorporação do fogo no quotidiano do paleolítico. Pouco importa se  descoberta do fogo aconteceu com uma erupção vulcânica, uma queda de raio, batendo um no outro dois fragmentos de sílex, por fricção, etc. O fato é que ele significou uma poderosa revolução no quotidiano do homem paleolítico, abrindo um leque sem fim de novas opções de vida e sobrevivência. O reflexo mais importante fez-se sentir no que para a sobrevivência é o mais fundamental: o alimento. Um série de recursos vegetais que precisam ser cozidos ou assados para se tornarem comestíveis puderam ser aproveitados. Raízes, tubérculos, frutas não aproveitáveis in natura, passaram a integrar a rotina do cardápio diário. Algumas delas tornaram-se a base da alimentação de povos inteiros e determinaram o perfil da sua cultura alimentar. A mandioca e o inhame passaram, por assim dizer, a significar abundância ou carestia em não poucos grupos humanos na América do Sul ou nas ilhas tropicais do Pacífico. A carne assada  melhora em muito  o sabor e torna-se mais digesta do que a  crua. Com o auxílio do fogo abriram-se novas e importantes perspectivas para a expansão territorial do homem.  Inesgotáveis  reservas de caça povoavam as regiões frias da Europa, Ásia e América. A permanência dos caçadores do paleolítico, sobretudo no inverno, tornou-se possível com o fogo aquecendo as cavernas e outros abrigos que lhe serviam de moradia. Pela múltiplas aplicações práticas o fogo não tardou em fazer parte do imaginário mágico e religioso desses povos. O culto ao fogo é um prática que pode ser observada de alguma forma em todas culturas de que se tem notícia na história.

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Vivências de Edward Wilson

Mas  voltemos ao que Edward Wilson nos tem a apresentar no seu memorável  livro “A Criação”. Ele relata suas experiências em contato com a complexidade dos ecossistemas mais variados. Interessou-se de maneira toda especial pela micro área do parque nacional do “Boston Harbor Islands”. Desde meados do século XVII o porto de Boston foi uma das portas de entrada mais movimentadas dos Estados Unidos. A movimentação constante de navios vindos de todas as partes do mundo alterou por completo os ecossistemas das suas 34 ilhas. A flora e a fauna originais foram seriamente  danificados pela poluição provocada pelos navios e suas cargas, somados aos dejetos da cidade de Boston despejados na baia do porto. A tudo isso somaram-se as dezenas de espécies de animais e plantas exóticas, procedentes dos cinco continentes. Até 1990 as ilhas do porto de Boston pouca ou nenhuma atração exerciam sobre os moradores da cidade e arredores. A reviravolta para melhor deu-se naquela década. As águas servidas da metrópole passaram por um moderno e eficiente sistema e tratamento antes de serem liberadas na baía. O resultado foi surpreendente. Em questão poucos anos o Parque Nacional do Porto de Boston voltou a ser uma ecossistema  natural semelhante ao que fora 300 anos antes. Antes ignorado pelos moradores da cidade e pelos turistas, suas três dezenas de ilhas oferecem hoje possibilidades disputadas de lazer. Os moluscos repovoaram o leito da baía. Os peixes de grande porte como a anchova, o robalo, o boto e a foca estão de volta. Próximo às ilhas mais exteriores até a baleia jubarte já foi avistada. Além de oferecer ambientes de lazer e recreio disputados a peso de ouro, as ilhas antes ignoradas, desempenham um papel importante como laboratório de pesquisa e aulas ao ar livre para todos os gostos e níveis de formação. Por essas e outras razões Wilson instalou sua tenda de biólogo naquele ambiente privilegiado. O depoimento que segue mostra sem reticências o tipo de biólogo, e porque não, de autêntico sábio que ele é.

(...) fiquei atraído pela perspectiva de ter um laboratório natural e uma sala de aula bem à minha porta – num local que também servisse  a 7 milhões de habitantes da região. E o melhor – aqui estava uma oportunidade para desgrudar as crianças da cidade da televisão e do computador e envolve-las em uma aventura educacional na vida real. Havia  o potencial para fazer uma introdução prática à ciência e, o que não é pouco, ajudar a contrabalançar as atividades de alta tecnologia, tão intimidadoras, da universidade de Harvard e do MIT, que ficam nas proximidades. A mensagem é a seguinte: para fazer ciência de primeira não é preciso começar com jalecos brancos e rabiscos no quadro-negro. (Wilson, 2008,  p. 29)

O parque das ilhas do porto de Boston é um magnífico laboratório de como a natureza reage diante de uma prolongada presença constante e profundamente invasora do homem. Depois de três séculos de saída e entrada ininterrupta de navios, procedentes dos lugares mais impossíveis da terra, aconteceu a extinção ou quase extinção de  milhares de espécies nativas, animais e plantas. De outro lado com os navios e suas cargas povoadores exóticos em grande número terminaram por desfigurar os ecossistemas da baía do porto e suas ilhas. Evidentemente os danos causados à vida original e a intromissão de espécies exóticas obrigou a natureza a reconstruir um novo ecossistema no qual participaram e participam ainda as espécies originais que sobreviveram, associadas às exóticas contrabandeadas pelo intenso trânsito marítimo. Devido a essas características, cientistas e estudiosos interessados nesse tipo de fenômeno encontram no parque das ilhas do porto de Boston, um laboratório perfeito. Sem necessidade de simulações ou o recurso a complexos modelos matemáticos, encontram as condições quase ideais para observar o acontecer da dinâmica da natureza submetida à intromissão de agentes naturais e estranhos que terminam por preservar, mas reorientando, as comunidades de seres vivos. Wilson declarou-se, neste caso e em muitos outros, como um defensor entusiasmado do estudo da natureza armando a tenda nas entranhas de uma floresta tropical, numa ilha perdida no meio do oceano, numa savana cujos limites são o horizonte, ou nas intermináveis florestas de coníferas da taiga canadense, do Alasca, da Sibéria ou da Finlândia. O valor e o papel dos laboratórios de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, não podem ser dispensados, pois as tecnologias de investigação, os modelos matemáticos que desenham são fundamentais para o aprofundamento quantitativo do conhecimento científico.  Mas no momento em se trata de avaliar qualitativamente os fenômenos naturais os laboratórios e os modelos matemáticos já não são suficientes. É preciso percorrer florestas, campos naturais, montanhas, ilhas e desertos, captar pelos cinco sentidos as cores, os sons,  as sensações e os odores que emanam da natureza em pessoa, para começar a farejar, a perceber e a intuir o que faz de uma paisagem uma fisionomia, os sons da natureza uma sinfonia, a floresta uma catedral, o carvalho uma personalidade, cada ser vivo uma maravilhosa obra de arte, as flores símbolos ou uma araucária com os galhos erguidos parecendo em atitude de oração. Em outras palavras é preciso imergir de corpo e alma na natureza para intuir o que ela na verdade é e o que significa. Só então as pessoas se percebem como partes e partícipes do mundo que lhes dá vida material e sugere os símbolos do seu imaginário e da sua espiritualidade. Tanto para os cientistas quanto para  as pessoas comuns que vivem esse tipo de experiência a natureza assume as proporções de uma dádiva preciosa que deve estar de alguma forma à disposição do “lazer e recreio” do povo como se lê no texto da lei que criou os parques e reservas naturais dos Estados Unidos. E o passo seguinte nada mais é do que uma consequência lógica do que vimos refletindo até aqui. De alguma forma a natureza é um bem comum, porque somos também rebentos dela. Dela dependemos para a vida e a morte. A natureza é um bem comum e, portanto, sua preservação,  sua recuperação e seu uso e fruto uma dádiva que pertence a todos, independente de cor, raça, ou  condição social. Desta forma o acesso aos benefícios que a natureza  oferece é um direito de todos e por isso mesmo esse usufruir implica numa postura ética na medida em que a exclusão pelo motivo que for, viola os direitos fundamentais da pessoa humana.

Às experiências e vivências com o as ilhas no porto de Boston, Wilson somou muitas outras vividas em ecossistemas naturais e ou humanizados. Passou uma temporada nas “Florida Keys”, uma sequência de ilhas no sul da Flórida, vasculhou as florestas tropicais da Costa Rica e do Brasil e subiu até o pico mais alto  do maciço de Sarawget na Nova Guiné. Estudou as diferenças profundas entre um ecossistema natural da floresta  virgem com o vizinho que cedeu lugar a pastagens depois da derrubada a floresta original em Rondônia. Somado a tudo isso foram objeto do seu interesse e observação as formigas e demais insetos e de modo especial a micro e nano fauna e flora encontráveis até nos recantos mais improváveis e invadidos pelo homem. E como conclusão de todas essas observações e milhares de outros estudos  durante seus mais de 50 anos de pesquisa e docência, resumiu as conclusões num breve parágrafo que vale por  um testamento.


Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, 2008, p. 31)