Vivências de Edward Wilson
Mas voltemos ao que Edward Wilson nos tem a
apresentar no seu memorável livro “A
Criação”. Ele relata suas experiências em contato com a complexidade dos
ecossistemas mais variados. Interessou-se de maneira toda especial pela micro
área do parque nacional do “Boston Harbor Islands”. Desde meados do século XVII
o porto de Boston foi uma das portas de entrada mais movimentadas dos Estados
Unidos. A movimentação constante de navios vindos de todas as partes do mundo
alterou por completo os ecossistemas das suas 34 ilhas. A flora e a fauna
originais foram seriamente danificados
pela poluição provocada pelos navios e suas cargas, somados aos dejetos da cidade
de Boston despejados na baia do porto. A tudo isso somaram-se as dezenas de
espécies de animais e plantas exóticas, procedentes dos cinco continentes. Até
1990 as ilhas do porto de Boston pouca ou nenhuma atração exerciam sobre os
moradores da cidade e arredores. A reviravolta para melhor deu-se naquela
década. As águas servidas da metrópole passaram por um moderno e eficiente
sistema e tratamento antes de serem liberadas na baía. O resultado foi
surpreendente. Em questão poucos anos o Parque Nacional do Porto de Boston
voltou a ser uma ecossistema natural
semelhante ao que fora 300 anos antes. Antes ignorado pelos moradores da cidade
e pelos turistas, suas três dezenas de ilhas oferecem hoje possibilidades
disputadas de lazer. Os moluscos repovoaram o leito da baía. Os peixes de grande
porte como a anchova, o robalo, o boto e a foca estão de volta. Próximo às
ilhas mais exteriores até a baleia jubarte já foi avistada. Além de oferecer
ambientes de lazer e recreio disputados a peso de ouro, as ilhas antes
ignoradas, desempenham um papel importante como laboratório de pesquisa e aulas
ao ar livre para todos os gostos e níveis de formação. Por essas e outras
razões Wilson instalou sua tenda de biólogo naquele ambiente privilegiado. O
depoimento que segue mostra sem reticências o tipo de biólogo, e porque não, de
autêntico sábio que ele é.
(...) fiquei atraído pela perspectiva de ter um
laboratório natural e uma sala de aula bem à minha porta – num local que também
servisse a 7 milhões de habitantes da
região. E o melhor – aqui estava uma oportunidade para desgrudar as crianças da
cidade da televisão e do computador e envolve-las em uma aventura educacional
na vida real. Havia o potencial para
fazer uma introdução prática à ciência e, o que não é pouco, ajudar a
contrabalançar as atividades de alta tecnologia, tão intimidadoras, da
universidade de Harvard e do MIT, que ficam nas proximidades. A mensagem é a
seguinte: para fazer ciência de primeira não é preciso começar com jalecos
brancos e rabiscos no quadro-negro. (Wilson, 2008, p. 29)
O
parque das ilhas do porto de Boston é um magnífico laboratório de como a
natureza reage diante de uma prolongada presença constante e profundamente
invasora do homem. Depois de três séculos de saída e entrada ininterrupta de
navios, procedentes dos lugares mais impossíveis da terra, aconteceu a extinção
ou quase extinção de milhares de
espécies nativas, animais e plantas. De outro lado com os navios e suas cargas
povoadores exóticos em grande número terminaram por desfigurar os ecossistemas da
baía do porto e suas ilhas. Evidentemente os danos causados à vida original e a
intromissão de espécies exóticas obrigou a natureza a reconstruir um novo
ecossistema no qual participaram e participam ainda as espécies originais que
sobreviveram, associadas às exóticas contrabandeadas pelo intenso trânsito
marítimo. Devido a essas características, cientistas e estudiosos interessados
nesse tipo de fenômeno encontram no parque das ilhas do porto de Boston, um
laboratório perfeito. Sem necessidade de simulações ou o recurso a complexos
modelos matemáticos, encontram as condições quase ideais para observar o
acontecer da dinâmica da natureza submetida à intromissão de agentes naturais e
estranhos que terminam por preservar, mas reorientando, as comunidades de seres
vivos. Wilson declarou-se, neste caso e em muitos outros, como um defensor
entusiasmado do estudo da natureza armando a tenda nas entranhas de uma
floresta tropical, numa ilha perdida no meio do oceano, numa savana cujos
limites são o horizonte, ou nas intermináveis florestas de coníferas da taiga
canadense, do Alasca, da Sibéria ou da Finlândia. O valor e o papel dos
laboratórios de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, não podem
ser dispensados, pois as tecnologias de investigação, os modelos matemáticos
que desenham são fundamentais para o aprofundamento quantitativo do
conhecimento científico. Mas no momento
em se trata de avaliar qualitativamente os fenômenos naturais os laboratórios e
os modelos matemáticos já não são suficientes. É preciso percorrer florestas,
campos naturais, montanhas, ilhas e desertos, captar pelos cinco sentidos as
cores, os sons, as sensações e os odores
que emanam da natureza em pessoa, para começar a farejar, a perceber e a intuir
o que faz de uma paisagem uma fisionomia, os sons da natureza uma sinfonia, a
floresta uma catedral, o carvalho uma personalidade, cada ser vivo uma
maravilhosa obra de arte, as flores símbolos ou uma araucária com os galhos
erguidos parecendo em atitude de oração. Em outras palavras é preciso imergir
de corpo e alma na natureza para intuir o que ela na verdade é e o que significa.
Só então as pessoas se percebem como partes e partícipes do mundo que lhes dá
vida material e sugere os símbolos do seu imaginário e da sua espiritualidade.
Tanto para os cientistas quanto para as
pessoas comuns que vivem esse tipo de experiência a natureza assume as
proporções de uma dádiva preciosa que deve estar de alguma forma à disposição
do “lazer e recreio” do povo como se lê no texto da lei que criou os parques e
reservas naturais dos Estados Unidos. E o passo seguinte nada mais é do que uma
consequência lógica do que vimos refletindo até aqui. De alguma forma a
natureza é um bem comum, porque somos também rebentos dela. Dela dependemos
para a vida e a morte. A natureza é um bem comum e, portanto, sua preservação, sua recuperação e seu uso e fruto uma dádiva
que pertence a todos, independente de cor, raça, ou condição social. Desta forma o acesso aos
benefícios que a natureza oferece é um direito
de todos e por isso mesmo esse usufruir implica numa postura ética na medida em
que a exclusão pelo motivo que for, viola os direitos fundamentais da pessoa
humana.
Às
experiências e vivências com o as ilhas no porto de Boston, Wilson somou muitas
outras vividas em ecossistemas naturais e ou humanizados. Passou uma temporada
nas “Florida Keys”, uma sequência de ilhas no sul da Flórida, vasculhou as
florestas tropicais da Costa Rica e do Brasil e subiu até o pico mais alto do maciço de Sarawget na Nova Guiné. Estudou
as diferenças profundas entre um ecossistema natural da floresta virgem com o vizinho que cedeu lugar a
pastagens depois da derrubada a floresta original em Rondônia. Somado a tudo
isso foram objeto do seu interesse e observação as formigas e demais insetos e
de modo especial a micro e nano fauna e flora encontráveis até nos recantos
mais improváveis e invadidos pelo homem. E como conclusão de todas essas
observações e milhares de outros estudos
durante seus mais de 50 anos de pesquisa e docência, resumiu as
conclusões num breve parágrafo que vale por um testamento.
Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a
verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam
que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se
de uma dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou
disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos
mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e
humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson,
2008, p. 31)