Edward Wilson (1929) - 4

Vivências de Edward Wilson

Mas  voltemos ao que Edward Wilson nos tem a apresentar no seu memorável  livro “A Criação”. Ele relata suas experiências em contato com a complexidade dos ecossistemas mais variados. Interessou-se de maneira toda especial pela micro área do parque nacional do “Boston Harbor Islands”. Desde meados do século XVII o porto de Boston foi uma das portas de entrada mais movimentadas dos Estados Unidos. A movimentação constante de navios vindos de todas as partes do mundo alterou por completo os ecossistemas das suas 34 ilhas. A flora e a fauna originais foram seriamente  danificados pela poluição provocada pelos navios e suas cargas, somados aos dejetos da cidade de Boston despejados na baia do porto. A tudo isso somaram-se as dezenas de espécies de animais e plantas exóticas, procedentes dos cinco continentes. Até 1990 as ilhas do porto de Boston pouca ou nenhuma atração exerciam sobre os moradores da cidade e arredores. A reviravolta para melhor deu-se naquela década. As águas servidas da metrópole passaram por um moderno e eficiente sistema e tratamento antes de serem liberadas na baía. O resultado foi surpreendente. Em questão poucos anos o Parque Nacional do Porto de Boston voltou a ser uma ecossistema  natural semelhante ao que fora 300 anos antes. Antes ignorado pelos moradores da cidade e pelos turistas, suas três dezenas de ilhas oferecem hoje possibilidades disputadas de lazer. Os moluscos repovoaram o leito da baía. Os peixes de grande porte como a anchova, o robalo, o boto e a foca estão de volta. Próximo às ilhas mais exteriores até a baleia jubarte já foi avistada. Além de oferecer ambientes de lazer e recreio disputados a peso de ouro, as ilhas antes ignoradas, desempenham um papel importante como laboratório de pesquisa e aulas ao ar livre para todos os gostos e níveis de formação. Por essas e outras razões Wilson instalou sua tenda de biólogo naquele ambiente privilegiado. O depoimento que segue mostra sem reticências o tipo de biólogo, e porque não, de autêntico sábio que ele é.

(...) fiquei atraído pela perspectiva de ter um laboratório natural e uma sala de aula bem à minha porta – num local que também servisse  a 7 milhões de habitantes da região. E o melhor – aqui estava uma oportunidade para desgrudar as crianças da cidade da televisão e do computador e envolve-las em uma aventura educacional na vida real. Havia  o potencial para fazer uma introdução prática à ciência e, o que não é pouco, ajudar a contrabalançar as atividades de alta tecnologia, tão intimidadoras, da universidade de Harvard e do MIT, que ficam nas proximidades. A mensagem é a seguinte: para fazer ciência de primeira não é preciso começar com jalecos brancos e rabiscos no quadro-negro. (Wilson, 2008,  p. 29)

O parque das ilhas do porto de Boston é um magnífico laboratório de como a natureza reage diante de uma prolongada presença constante e profundamente invasora do homem. Depois de três séculos de saída e entrada ininterrupta de navios, procedentes dos lugares mais impossíveis da terra, aconteceu a extinção ou quase extinção de  milhares de espécies nativas, animais e plantas. De outro lado com os navios e suas cargas povoadores exóticos em grande número terminaram por desfigurar os ecossistemas da baía do porto e suas ilhas. Evidentemente os danos causados à vida original e a intromissão de espécies exóticas obrigou a natureza a reconstruir um novo ecossistema no qual participaram e participam ainda as espécies originais que sobreviveram, associadas às exóticas contrabandeadas pelo intenso trânsito marítimo. Devido a essas características, cientistas e estudiosos interessados nesse tipo de fenômeno encontram no parque das ilhas do porto de Boston, um laboratório perfeito. Sem necessidade de simulações ou o recurso a complexos modelos matemáticos, encontram as condições quase ideais para observar o acontecer da dinâmica da natureza submetida à intromissão de agentes naturais e estranhos que terminam por preservar, mas reorientando, as comunidades de seres vivos. Wilson declarou-se, neste caso e em muitos outros, como um defensor entusiasmado do estudo da natureza armando a tenda nas entranhas de uma floresta tropical, numa ilha perdida no meio do oceano, numa savana cujos limites são o horizonte, ou nas intermináveis florestas de coníferas da taiga canadense, do Alasca, da Sibéria ou da Finlândia. O valor e o papel dos laboratórios de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa, não podem ser dispensados, pois as tecnologias de investigação, os modelos matemáticos que desenham são fundamentais para o aprofundamento quantitativo do conhecimento científico.  Mas no momento em se trata de avaliar qualitativamente os fenômenos naturais os laboratórios e os modelos matemáticos já não são suficientes. É preciso percorrer florestas, campos naturais, montanhas, ilhas e desertos, captar pelos cinco sentidos as cores, os sons,  as sensações e os odores que emanam da natureza em pessoa, para começar a farejar, a perceber e a intuir o que faz de uma paisagem uma fisionomia, os sons da natureza uma sinfonia, a floresta uma catedral, o carvalho uma personalidade, cada ser vivo uma maravilhosa obra de arte, as flores símbolos ou uma araucária com os galhos erguidos parecendo em atitude de oração. Em outras palavras é preciso imergir de corpo e alma na natureza para intuir o que ela na verdade é e o que significa. Só então as pessoas se percebem como partes e partícipes do mundo que lhes dá vida material e sugere os símbolos do seu imaginário e da sua espiritualidade. Tanto para os cientistas quanto para  as pessoas comuns que vivem esse tipo de experiência a natureza assume as proporções de uma dádiva preciosa que deve estar de alguma forma à disposição do “lazer e recreio” do povo como se lê no texto da lei que criou os parques e reservas naturais dos Estados Unidos. E o passo seguinte nada mais é do que uma consequência lógica do que vimos refletindo até aqui. De alguma forma a natureza é um bem comum, porque somos também rebentos dela. Dela dependemos para a vida e a morte. A natureza é um bem comum e, portanto, sua preservação,  sua recuperação e seu uso e fruto uma dádiva que pertence a todos, independente de cor, raça, ou  condição social. Desta forma o acesso aos benefícios que a natureza  oferece é um direito de todos e por isso mesmo esse usufruir implica numa postura ética na medida em que a exclusão pelo motivo que for, viola os direitos fundamentais da pessoa humana.

Às experiências e vivências com o as ilhas no porto de Boston, Wilson somou muitas outras vividas em ecossistemas naturais e ou humanizados. Passou uma temporada nas “Florida Keys”, uma sequência de ilhas no sul da Flórida, vasculhou as florestas tropicais da Costa Rica e do Brasil e subiu até o pico mais alto  do maciço de Sarawget na Nova Guiné. Estudou as diferenças profundas entre um ecossistema natural da floresta  virgem com o vizinho que cedeu lugar a pastagens depois da derrubada a floresta original em Rondônia. Somado a tudo isso foram objeto do seu interesse e observação as formigas e demais insetos e de modo especial a micro e nano fauna e flora encontráveis até nos recantos mais improváveis e invadidos pelo homem. E como conclusão de todas essas observações e milhares de outros estudos  durante seus mais de 50 anos de pesquisa e docência, resumiu as conclusões num breve parágrafo que vale por  um testamento.


Alguns filósofos pós-modernos, convencidos de que a verdade é relativa e dependente apenas da visão do mundo de cada um, argumentam que não existe uma entidade objetiva tal como a “Natureza”. Para eles, trata-se de uma dicotomia, que surgiu em algumas culturas e não em outras. Estou disposto a levar em conta esse ponto de vista, pelo menos por alguns minutos mas já atravessei tantas fronteiras nítidas entre ecossistemas naturais e humanizados que não posso duvidar da existência objetiva da Natureza. (Wilson, 2008, p. 31)

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