Deitando Raízes #14

Capítulo sexto
A história da companhia alemã
Desde o começo pairava uma nuvem (39) escura sobre a colônia alemã, ameaçando os colonos com não poucos infortúnios. Logo agora que a paisagem assumia um crescente perfil de florescimento e riqueza, esta nuvem tornava-se cada vez mais negra e carregada. A nuvem representava a insegurança  da posse da terra, a falta de provas legais  do direito de posse de cada colono em particular da terra por ele ocupada. A fim de entender melhor a questão, é preciso ter uma vista de conjunto sobre toda a Colônia de São Leopoldo e acompanhar sua evolução desde seus primeiros começos até o ano de 1863. Comecemos com um apanhado da localidade onde agora se encontra a cidadezinha de São Leopoldo. Na margem esquerda do Rio dos Sinos situava-se o domínio imperial da Feitoria Velha e, na margem direita, a Estância Velha. Em 1824 as duas  áreas foram destinadas por D. Pedro I para a colonização alemã. Em volta destes domínios havia outras terras, em parte propriedade do Estado, em parte propriedade de particulares, a eles doadas em diferentes épocas e por diversos motivos. Infelizmente não havia uma clara definição de limites entre essas possessões. Acontecia que o Estado presenteava áreas sobre as quais a posse era duvidosa. Obviamente essas doações foram mais tarde contestadas, ou o próprio governo foi obrigado a reconhecer como inválidas as concessões. O governo imperial que no primeiro momento dividira as possessões em lotes de 160.000 braças quadradas e os distribuíra, reconheceu que seriam necessárias muito mais terra para os imigrantes. Encarregou seus funcionários a acrescentar aos domínios citados as terras de propriedade do estado mais ao norte. Como conseqüência dessa medida surgiram até 1830 novas picadas conhecidas como Costa da Serra, Bom Jardim, Quatorze, Quarenta e Oito, Hortêncio, Dois Irmãos e Schwabenschneis. Formaram com São Leopoldo o núcleo original das colônias alemãs. Como, com o avanço das picadas, essas áreas do governo estavam sujeitas a litígios, apareceram proprietários cujas reclamações não puderam ser desprezadas assim no mais. A posse dos colonizadores foi compreensivelmente  posta em dúvida. Um outro inconveniente resultou das medições inexatas dos lotes. De acordo com as determinações  das autoridades eles deveriam medir 100 braças de frente e 1.600 braças de fundo. Não demorou para ficar claro que este nem sempre era a realidade, porque as linhas de limites foram traçadas com grande inexatidão. Acontecia então que o mesmo lote foi atribuído a dois proprietários ou de dois vizinhos um tinha demais e o outro de menos terra. Resultaram daí processos dispendiosos, cujas vítimas foram sempre os colonos. Somou-se ainda que, no decorrer  dos anos, a localização inexata das colônias, ou então que muitos colonos simplesmente  fixaram-se em algum ponto nas terras do Estado, sem credenciais para tanto, resultando em mais fonte de perturbações.
Detenhamo-nos  nos imigrantes que dividimos em classes.
A primeira classe recebeu a promessa das seguintes vantagens: viagem livre de despesas do embarque até a colônia; a cidadania brasileira logo após  a chegada; livre prática da religião; doação de um lote colonial com 160.000 braças quadradas - ou 272 Morgen prussianos; alguns cavalos, algum gado vacum e animais menores; subsídios para os primeiros anos; isenção do serviço militar e de impostos pelos primeiros dez anos.
Como contrapartida o colono obrigava-se: a não vender  a sua propriedade nos primeiros dez anos, ocupar o lote e cultivá-lo. Com estes privilégios foram contemplados os 126 colonos vindos em 1824, assentados na Feitoria Velha, como também os demais chegados até 1827.
Pertencem à segunda classe aqueles que já não receberam mais a passagem livre. O ministro Miranda encarregado dos negócios coloniais, declarara no dia 11 de abril de 1827, que não aceitaria mais nenhuma despesa referente à viagem e a intenção de modificar alguns artigos nas condições constantes no contrato. Apesar de todas as declarações o agente Major Schäfer conduziu o agenciamento de  colonos baseado nas condições de 1824 (da primeira classe), o que resultou numa grande confusão, na medida em que o governo agia conforme as novas condições do contrato e os colonos de acordo com as antigas. A situação prolongou-se até 1830. O número de imigrantes somava 4.856 pessoas. Acresce a eles um número significativo de soldados que, terminado o tempo do serviço militar, pretendiam entrar na posse dos seus lotes.
Uma lei promulgada em 15 de dezembro de 1830 proibia o uso de qualquer recurso monetário do Estado em favor da colonização. Com esta medida cortou-se momentaneamente qualquer imigração posterior. Apenas no ano de 1844, depois da assim chamada Guerra dos Farrapos, recomeçou novamente a imigração a partir da Alemanha. Os colonos aqui fixados foram entregues à própria sorte, sem contudo entrar em decadência econômica como muitos temiam, pois, antes de mais nada contavam com o apoio solidário e o exemplo de como lidar com a terra, por parte  dos primeiros imigrantes.
Acontece que já em 1834 o governo imperial se convenceu do equívoco que cometera com a lei de 15 de dezembro de 1830 de  não conceder a exclusividade da imigração pelas Províncias. Ele próprio  empenhou-se fortemente na causa. Por motivo da Guerra dos Farrapos esta medida só entrou em vigor em vigor em 1844.
À terceira classe de imigrantes pertencem àqueles que chegaram depois de 1844 até 1850 e receberam lotes coloniais de graça. Com esta finalidade o Governo Provincial mandara destacar um certo número de colônias, encarregando o engenheiro Büff desta tarefa. Resultaram daí as linhas: Erval, Travessão do Erval e Padre Eterno, localizadas ao norte de São Leopoldo. Esses locais atraíram poucos colonos por causa das más condições de comunicação. Conforme as condições estabelecidas as terras deveriam voltar para o governo. Mas os lotes coloniais entregues aos proprietários foram transformados  em papéis públicos e com eles praticavam-se negociatas como numa bolsa.
Em 15 de setembro de 1850 foi promulgada uma nova lei de terras, proibindo  futuras doações e a aquisição de lotes coloniais  por compra. Já vimos como o Presidente Sinimbu, ignorando esta lei, permitiu o acesso gratuito às terras aos colonos que chegaram em 1854. (47) Mais tarde, entretanto, na maioria dos casos, a lei foi cumprida à risca. Surgiu assim a quarta classe de imigrantes, os assim chamados voluntários, que compravam as terras com recursos próprios. Enumeram-se aqui a colônia privada de Teutônia e a Sommerpikade. Esta última foi implantada por um empreendedor particular Jacob Blauth em 1847  e, até 1861, recebeu ininterruptamente reforços.  A mesma evolução positiva tiveram as picadas Ferrabraz, com um prolongamento, um para o norte, outro para o sul,  sob a liderança dos antigos colonos Krämer e Schmitt.
Embora, como já foi dito mais acima, o governo estivesse proibido de dar terras, preservou-se  o direito de agir livremente ao vendê-las. Desta maneira favoreceu uma detestável prática de especulação, pela qual agravou a insegurança dos títulos de propriedade. A fim de dar um basta a esta situação que se tornara insuportável, os excelentes embaixadores e ministros credenciados pelo reinado da Prússia e a Federação Suíça, os senhores Eichmann e von Tschudi, solicitaram ao governo brasileiro  que se ocupasse seriamente  com a segurança do direito de posse dos imigrantes alemães e suíços.
O senhor von Eichmann, com seu empenho incansável em favor de São Leopoldo, conseguiu de fato que o governo imperial se comprometesse com a nomeação de uma comissão especial, encarregada da medição dos lotes coloniais e a expedição de títulos de propriedade. No seu memorandum de 14 de julho de 1863 o embaixador von Eichmann traçou as linhas  mestras de ação para comissão. Determinou que,  antes de mais nada era preciso equacionar a questão legal, isto é, reconhecer que o dispositivo da lei de 18 de setembro de 1850 e a regulamentação de 30 de janeiro de 1854, relativa à legitimação e medições judiciais, não podia ser aplicada aos colonos; que a doação de terras pelo Imperador aos imigrantes alemães significou para eles um título legal de posse;  que  se obrigava a fornecer para os colonos a garantia legal da posse.  Tendo obtido a aceitação para esta questão,  Eichmann, declarou que estava de  acordo como o Presidente da Província, de que fosse nomeado um funcionário "ad hoc", com a incumbência específica de cuidar da medição de todas as colônias, a conferência dos títulos daqueles que no momento ocupavam propriedades duvidosas, a expedição de  documentos que garantiam o direito de propriedade conforme a lei.
 Na opinião de von Eichmann esse funcionário não deveria ser apenas um engenheiro, pois não se tratava só de traçar linhas geométricas numa terra desocupada. Sua tarefa deveria consistir na harmonização da situação atual, resultado de um processo de 30 anos,  com os princípios com que o governo pretendia colonizar                                                                                                              
De acordo com essa orientação deveriam ser equacionadas  essas intrincadas questões, ou aplicando a letra da lei, ou por entendimento, ou tomando em consideração o fato consumado. Tendo em visa tudo isto caberia a ele cumprir a sua missão, munido de amplos poderes, grande sabedoria e dignidade, valendo-se  de  clarividência, conhecimentos, sentimento de justiça e imparcialidade.
O comissário do governo encontraria diversas categorias de donos de colônias. (48) Primeira. Os colonos que mandaram efetuar as medições judiciais conforme determina a lei de 18 de setembro de 1850 e conseguiram o direito de posse por meio de uma sentença. O comissário precisaria apenas a obtenção de um  excerto da sentença contida nas atas e providenciar seu cumprimento.    
Segunda. Os colonos que eram herdeiros legais e em condições de apresentar os certificados que os funcionários da administração da Colônia expediram para aqueles que receberam suas colônias das autoridades. O direito de posse destes colonos precisaria ser regulamentado de acordo com estes documentos, adaptados às modificações que dispunham sobre a posse a longo prazo.
Terceira. Aqueles que perderam os certificados mas cujos nomes estão consignados nos registros dos funcionários da administração. A esses se aplicar-se-iam os mesmos procedimentos da categoria anterior.
Quarta. Aqueles que, observadas as formalidades  prescritas pela lei, compraram as colônias dos seus antecessores. Deveriam ser considerados como legítimos sucessores dos primeiros colonos. 
Quinta. Aqueles que compraram terras sem as formalidades prescritas, seriam obrigados a se submeter à decisão do comissário e de acordo com a justiça. Se fossem confirmados na posse, estariam obrigados a pagar os impostos devidos ao tesouro,  como se a venda se tivesse dado conforme manda a lei.
Sexta. Aqueles que não receberam a quantidade de terras que o governo prometeu. Estes teriam direito à compensação. No caso de não haver terra suficiente disponível na respectiva picada ou na vizinhança,  para a compensação, o comissário deveria encontrar meios para atendê-los em outro local com uma porção maior de terras.
Sétima. A sobra das terras que o comissário localizasse em algumas das picadas   ou fora da colônia de cujos limites já foram por ele fixados, devia ser destinada exclusivamente para as compensações de que trata o número 6, ou para o assentamento de novos colonos. Sob hipótese alguma as sobras poderiam ser vendidas a especuladores estranhos  à colonização.
Oitava. Nenhuma exclusão de terras devolutas nas imediações das picadas podia ser sancionada pelo Presidente da Província, sem a participação do comissário.
Essas foram as propostas do embaixador prussiano, aceitas pelo Governo Imperial e que serviram de  base para as instruções para a comissão do  Ministério da Agricultura.        
Segundo Adalbet Jahn a comissão deu início aos trabalhos já no ano de 1863 e, em 4 de janeiro de 1864, começou as medições de cada lote colonial. Mas quanto mais esperanças a comissão depositou no início nas atividades tanto menos correspondeu à confiança nela depositada. Não é aqui  o lugar para ir mais a fundo na sua composição, reformulação e  dissolução. Interessam-nos em primeiro lugar os seus resultados. Segundo Jahn foram os seguintes. Entre  1824 e 1854 comissão medira todos os lotes coloniais que foram distribuídos aos colonos, como também as compensações  registradas nos livros das medições. Além disto mandara expedir a maioria dos títulos de terras pelo Presidente da Província e por meio dele devolvê-los em grande parte aos antigos donos. O fato de não estar em condições de expedir todos os títulos de propriedade pela primeira autoridade da Província, não estava em suas mãos da comissão de fazê-lo e por isso não lhe cabe culpa: primeiro porque as medições das áreas de compensação só ficaram concluídas no final do trabalho da Comissão e, segundo, (49) porque não poucos colonos, apesar de repetidas solicitações, não apresentaram os documentos para a Comissão, de maneira que esta, sem as provas da posse legal, não tinha como expedir os títulos pedidos.
Na conclusão da Comissão em 1869 consta que foram distribuídos 1114 títulos aos colonos; que para serem entregues faltavam 397 títulos; que avia ainda 173 títulos de lotes em poder da Presidência e mais 300 títulos de compensação.
Os resultados provam de maneira irrefutável que a Comissão contribuiu em muito para a segurança do direito à propriedade dos colonos. Mas teria cumprido a sua tarefa com muito mais brilho, se tivesse evitado alguns deslizes. O primeiro consistiu no fato de que o Comissário encarregado das medições, confiou, com a anuência do Presidente, a um empreendedor   a medição de todas as compensações. Determinou ao mesmo tempo que todas as compensações fossem subtraídas à Picada de Padre Eterno.   Com isso prejudicou obviamente os moradores da Picada Feliz, Hortêncio e Dois Irmãos, que poderiam ter sido beneficiados com compensações dentro dos limites de suas picadas. O Comissário, entretanto, não liberou estas terras. Um erro muito maior ainda foi a permissão do Presidente da Província  de que especuladores comprassem as sobras  nas picadas de  Hortêncio e Dois Irmãos. Isto, apesar de ser indiretamente conhecido por seus subalternos, portanto, também  dele, mostra até que ponto o triste sistema da venda de sobras a especuladores, representou o mal maior na colônia. Aliás o senhor von Eichmann já o havia apontado  no seu momorandum, como fator de desmoralização da colonização. Esta venda cai tanto mais em vista, quando colonos e o Curador (Adalberto Jahn: "As colônias de São Leopoldo"), pediam expressamente que aos moradores da Feliz não fossem atribuídas compensações sete a oito milhas distantes, quando ainda havia terras devolutas nas proximidades.
O Curador acima citado concluiu o  seu relatório sobre as medições com as seguintes palavras que fazem pensar:  
"Não se pode negar que foi de essencial proveito para a maior parte do município de São Leopoldo, no que se refere à antiga colônia governamental. Não só foram fixados os limites entre as diversas picadas, como concedidos todos os lotes e expedidos a maioria dos títulos de propriedade."
"Deve ser considerado como um grande mal  o fato de que não poucas medições não corresponderam às expectativas  dos proprietários e não foram corrigidas apesar das  reclamações do Curador. Apesar disto aconselha-se aos colonos   que mantenham e respeitem os limites traçados pela Comissão e assinalados nas  planilhas e nos títulos. Acontece que um prejuízo moderado  em terras é preferível a um processo que, mesmo ganho, não compensa o desgosto, o ressentimento e a inimizade com o vizinho."
O arquivo da Comissão, extinta em cinco de outubro de 1869, por um ato do Ministro da Agricultura, foi confiado à Repartição de Terras Públicas, com a incumbência de requerer à Presidência da Província, os títulos que ainda faltavam e, a fazer chegar às mãos dos respectivos donos, os títulos ainda não distribuídos.
A grande maioria dos colonos alemães (50) estava satisfeita com os trabalhos da Comissão. Sua gratidão não se endereçava apenas  ao Imperador do Brasil, cujo governo manifestou tanta  benevolência. Dirigia-se igualmente à pátria alemã que possibilitou, por meio do seu embaixador, o senhor Eichmann, esse grande benefício. Desde então a consciência das relações para com a Alemanha enfraquecidas reavivaram-se, pois,  os alemães daqui perceberam que  na velha pátria ainda havia interesse por eles. A consciência do pertencimento às raízes seria mais tarde reforçada com o andamento da guerra franco-alemã. Desse assunto voltaremos a falar mais tarde.
Bom Jardim foi pouco afetado pelas medições porque, desde o começo as colônias estavam bem demarcadas. Bem diferente foi com a Picada Café . As divisas eram muito menos precisas. Por isso a maioria foi obrigada a submeter-se a modificações nas posses de suas terras. Num lado havia aí 73 colônias, no outro, em direção à Linha Nova, mais umas 50. O Diretor das medições  era um certo senhor Krüger. Colonos mais antigos afirmam que era austríaco de nascimento, mas não tinha o caráter bondoso dos austríacos, Sob sua coordenação trabalharam os jovens  Tatsch da Picada 48 e Peter Marschall, mais tarde professor na Picada Holanda.  Von Krüger hospedava-se na casa de Johann Link e bancava o grande enquanto seus subalternos trabalhavam. As pessoas mais antigas lembram-se bem como esses últimos executavam suas tarefas. As  medições anteriores tinham sido feitas pelo velho Tatsch (pai do aqui nomeado)   e o povo estava satisfeito. Mas agora à revelia da lei   e da justiça eram-lhes surrupiadas algumas ou até muitas braças. Desta maneira as duas colônias de Jacob Jung com a nova medição, ficaram apenas com 140 baças de frente, sem qualquer compensação pelos fundos. Johann Franz, então sacristão em São José do Hortêncio, morava também  na Holanda, perdeu também uma tira  de uma braça  de largura e 1.800 de fundo. Como a esses aconteceu à maioria dos outros.  O povo preferiu aceitar as novas determinações a  envolver-se em processos dispendiosos, nos quais os únicos a tirar proveito eram os advogados. Certas ou erradas, as medições empreendidas pelo governo, foram aceitas como válidas, como por ex., aconteceu com Jacob Jung com suas duas colônias, com 35 braças nos fundos a menos do que na frente.  Com base nestas medições o senhor von Krüger expediu os títulos reconhecidos como legais. A fim de acrescentar  mais algumas particularidades, observamos que naqueles anos os preços das terras encontravam-se em forte elevação. O acima nomeado Johann Franz  comprou ao chegar, meia colônia por 230$. Poucos anos mais tarde pagou pela mesma área 1.000$. O mesmo vendeu por pouco dinheiro uma valiosa área de terra, sobre a qual Peter Link construiu um moinho.
Uma avaliação da pessoa do senhor Krüger coordenador (presidente da Comissão de medição na Picada Café), vem do seu colaborador, o senhor Peter Marschall, a quem abrimos um pequeno espaço para não incorrermos no risco de parcialidade. Conforme ele o referido senhor teria sido um homem honrado. Devido, porém, às circunstâncias complicadas, não lhe foi possível contentar a todos. Mas sempre estivera empenhado em assegurar a todos os colonos os que lhes pertencia, na medida em que estivesse ao alcance de suas possibilidades. Destacou como traços positivos de sua personalidade a afabilidade e simpatia no trato, tanto com os subalternos quanto com os moradores. Não se poderia acusá-lo de falta de cortesia, mesmo quando um colono entrou (51) no seu quarto sem bater. E se além disto levou uma vida folgada não é motivo de censura porque, segundo Johann Link, sempre se mostrou um pagador pontual, Além disto teria sido um homem de mão muito aberta, a tal ponto que teria causado surpresa nos auxiliares. De modo especial demonstrava a mais refinada cortesia para com os sacerdotes que de tempos em tempos visitavam a picada. Consta que em certa ocasião mandou as próprias roupas para o sacerdote para que as trocasse com as molhadas durante uma chuva. E, finalmente, quando viajou para o Rio de Janeiro, a única visita que fez foi ao cura de almas católico.


Fechamos este capítulo com algumas observações relativas à situação econômica daquele período. Naquele tempo prosperava a viticultura na Picada Café. O velho serralheiro Joseph Sebastiani vendia muito vinho. Alambiques também já os havia antes que Johann Link instalasse o seu. Mais tarde veio somar-se uma cervejaria. O bem-estar da colônia crescia de ano para ano na Picada Holanda, assim como no Schneidersthal e no Bohnenthal e em toda a Picada Bom Jardim. As nuvens carregadas oriundas da questão dos limites e dos títulos, esvaíra-se em grande parte. Somente alguns resquícios, na forma de processos, pairavam ainda sobre alguns lotes coloniais. Em geral, porém, brilhava o mais belo sol sobre Bom Jardim, fazendo jus ao seu belo nome: "Bom Jardim!"

Deitando Raízes #13

 A vida de soldado agradava muito pouco ao nosso jovem Julius. Sempre de novo decidia desertar, mas Boruszewski o desaconselhava com insistência. Finalmente concretizou a decisão. A ocasião foi esta. Muitos desertores abandonaram a mochila e parte das armas. Era preciso transportá-los de uma margem para a outra do La Plata. Para esta tarefa foi destacado, entre outros o nosso Julius, acometido de novo com um acesso de deserção. Em vão o amigo tentou demovê-lo, argumentando que de qualquer forma seriam em breve dispensados. Julius desertou em companhia de outros. De saída foram acolhidos por alemães na cidadezinha de Florida e, finalmente, dirigiram-se para Buenos Aires. Boruszewski nunca mias teve notícias dele. E, de fato, não demorou para que muitos fossem dispensados quando estavam em Rio Pardo e dispersaram-se pela Província. A permanência de Boruszewski por mais tempo deve-se a um fato ocorrido em Rio Pardo. Quando certo dia servia de ordenança para o comandante da cidade, ouviu de um camarada meklenburguense; "Hoje à noite teremos novidades! A segunda companhia pretende livrar-se  do Samuel porque ele apropriou-se do soldo e mandou prender os capitães que o revelaram aos soldados." E, de fato, ao anoitecer a segunda companhia aproximou-se marchando, para queixar-se do Samuel. O empenho conjunto dos oficiais junto ao comandante conseguiu acalmar o pessoal, com a promessa de uma rigorosa investigação. Boruszewski que pretendia inteirar-se dos fatos, deitou-se de bruços no chão na margem do rio, achando que não fora percebido. Mas foi notado pelo tenente Acker  que andava por aí em roupa civil. Obrigado a ira até Porto Alegre na companhia de mais 12 homens como testemunhas teve que esperar mais 11 semanas. Morou no quartel onde tomava as refeições. Durante o dia estava liberado para ganhar alguma coisa na cidade. Cansados da longa espera  as testemunhas convocadas começaram a pensar em desertar. Boruszewski procurou em vão convencê-los a terem  um pouco mais de paciência, porque de qualquer maneira não demoraria para serem dispensados. Por fim também ele se rendeu à tentação. Aconteceu assim: Um velho mestre cordoeiro que se hospedara  no hotel que Boruszewski costumava freqüentar  informou-se se não conheciam algum aprendiz de cordoeiro. O hoteleiro informou que sim, um integrante do batalhão de alemães. Conversamos e sua oferta subiu-me na cabeça. Parti e, sem demora, estava em São Leopoldo, onde fui trabalhar com o velho Würdig, sogro do Panitz. Como me sentia meio inseguro, fui ter com o velho coronel Hildebrand e contei-lhe a minha história. Falou-me amigavelmente: "Vocês todos foram dispensados."
Trabalhei durante três meses com o velho mestre cordoeiro, desde a manhã cedo até tarde da noite, por seis mil réis, um autêntico salário de fome. É compreensível que não conseguisse adquirir grande coisa e andava por aí  como um maltrapilho. Escutei dos vizinhos que o mestre teria dito que o aprendiz não podia deixar de trabalhar para ele, apesar da pouca remuneração, porque não havia outra cordoaria na região. A contragosto decidi largar o posto e procurar outra ocupação. Envergonhei-me bastante por assumir a verdade perante outros aprendizes e recorri a uma  mentira para desculpar a minha lamentável situação entre jornaleiros que ganhavam o dobro do meu salário. Fui até Bom Jardim aconselhar-me com um velho conhecido, Carl Tunorowski, cocheiro de Jacob Müller e procurar trabalho. Infelizmente não encontrei nada e  vi-me forçado a voltar ao velho mestre que então me pagou oito mil réis por mês.

Passados mais três meses não quis mais ficar sob hipótese nenhuma. De novo pus-me a caminho para Bom Jardim e apeei na casa de Jacob Müller. Na janta perguntou quem eu era e donde vinha. O senhor da casa admirou-se por eu me ter decidido a ir embora, pois o velho cordoeiro me tinha elogiado muito, como sendo um excelente operário e como quem tinha condições de progredir. É óbvio que tinha condições de progredir, mas acontece que não pensou no meu progresso. Faz pouco tempo processei 12 arrobas de linho que ele pretendia queimar como imprestáveis, o que lhe rendeu 24 mil réis. Jacob Müller ouviu com atenção a minha história. Na manhã seguinte falou-me: "Fica aqui ainda hoje." Respondi-lhe: "Preguiçar vai contra a minha natureza. Como posso comer aqui sem trabalhar. Deixe-me pelo menos rachar lenha." No segundo dia apareceram o Finger Hannes, o Fröhlich e o velho capitâo Dillenburg. Müller conversou com eles no quarto do lado. O dono da casa não falou nada a respeito, apenas pediu que ficasse também no dia seguinte. Na manhã seguinte não me agüentei mais. Perguntei se ele tinha um plano a meu respeito. Respondeu afirmativamente e continuou: "Por acaso não gostarias de tocar um negócio próprio?" Sem dúvida é o meu sonho desde criança. Mas como realizá-lo?" "Veja, outras pessoas podem ajudá-lo. Afinal quanto precisas? Bastam 500 mil réis?" Meus olhos encheram-se de água. Eu sabia que os soldados não gozavam de boa fama e a maioria deles não passava de uns suínos. Vários dentre eles casaram com viúvas e, depois de espoliá-las e espancá-las, as abandonaram. (38) E agora, inesperadamente, o bom homem me fez uma oferta tão maravilhosa. Respondi emocionado: "Acredito que não preciso de tanto." "Então toma mais 50 mil réis e a coisa vai melhorar ainda. Ofereceu-me um quarto na sua casa, onde o linho era cardado e pagava uma pataca  para mim e meu auxiliar. Instalei uma mesa de fiar comprida e bem acabada, como não havia igual em toda a picada. A devolução da metade do dinheiro podia ser feita  com produtos. E assim, de uma hora para a outra, a minha situação estava resolvida, respondeu Boruszewski. Daí para frente trabalhou com afinco e ganhou  um belo dinheiro. Infelizmente as coisas não correram bem para os benfeitores. Ele próprio se deu bem  e por isso teve acesso a uma das melhores famílias. Casou com uma das filhas do velho Georg Gehring. Desta união nasceram 14 filhos. Destes vivem ainda seis mulheres e três homens. Abastecia-se de linho procedente principalmente da Feliz, onde todos os colonos o cultivavam. Processava 200 arrobas  por ano e comercializava tudo nas picadas, no Portão, em São Leopoldo e Porto Alegre. É digno de nota para as condições de saúde, o que Boruszewski nos relata do seu antigo local de moradia. Morava onde agora reside seu filho Georg. Seus filhos andavam sempre magros e adoentados. Chegou ao ponto de planejar deixar Bom Jardim e mudar-se para a região de Montenegro, onde pretendia comprar várias colônias no valor de cinco a seis mil réis. Mas a mulher não cansava em repetir: "Só existe uma picada Berghan." Em vista disto comprou a colônia que atualmente lhe pertence. Mas, seguindo o conselho do velho Gehring, conservou para si a antiga terra do outro lado e, veja só. Passado menos de um ano as crianças estavam sadias. É estranho que seus netos gozam da melhor saúde no mesmo local onde seus filhos adoeceram. Dos camaradas de Boruszewski do tempo da guerra Carl Tonorowitsch morreu de febre amarela no Rio. Era um homem empreendedor mas excessivamente precipitado. Dez onças  significavam para ele o mesmo que  dez vinténs. Não agüentava uma única noite com elas no bolso. Certa feita apareceu em Bom Jardim com quatro onças que seu patrão lhe dera. Mandou servir cerveja da marca Christiania até não sobrar mais nada e seu velho amigo emprestou-lhe dinheiro para a volta na outra manhã. Junto com os soldados vieram também mulheres de suboficiais que juntaram um bom dinheiro durante a campanha. Veio também um mecklenburgense que não sabia nem ler nem escrever. Primeiro andou por aí com uma garrafão de cachaça que ele vendia  a varejo. Mais tarde carregava algumas pipas na carroça. Ajuntou muito dinheiro, mas exibiu-se demais com suas onças que carregava permanentemente junto ao corpo. Sumiu de vez provavelmente morto por um carreteiro para roubá-lo. Ao mesmo tipo de gente pertencia um certo Michaelsen da cidade de  Hamburgo. As mulatas e as mulheres negras que acompanhavam  as tropas, garantiam grande variação na vida da campanha e dos acampamentos. Certa vez  observei  uma negra montada num cavalo com seus três filhos. E como os acomodou? Muito simples. Passou uma lona em volta do pescoço e dos quadris. Nela os pequenos descansavam  como numa rede de dormir, um na frente sobre o peito e dois nas costas. A algazarra e a lentidão na movimentação das tropas, foi a característica dos exércitos sul  americanos. 

Deitando Raízes #12

Os assim chamados Brummer formaram um outro tipo de colonos que se fixaram na Linha Berghan entre 1852 e 1854. Alguns deles permaneceram em Bom Jardim. Em Dois Irmãos encontramos um certo Schröder (protestante) e, nas proximidades de Bom Jardim Michaelsen, Bilke, F. Jäger e Wiesmann. Este último atuou como médico em Nova Petrópolis. Antes de passarmos a narrar as experiências individuais, tanto dos acima nomeados, quanto de outros moradores de Bom Jardim, que foram envolvidos pela guerra com a Argentina, queremos relatar  brevemente o andamento da guerra contra Rosas. Rosas que se impôs como ditador em Buenos Aires, tentou conquistar a soberania sobe o Estado Oriental. O Brasil entendeu que não podia permitir tal coisa e em 1850 declarou guerra a Buenos Aires, a qual terminou com a derrota de Rosas em 1852. A Câmara autorizara o Governo Imperial a contratar um contingente de 6.000 estrangeiros para integrá-los na campanha. Com este objetivo o antigo ministro da guerra Rego Barros, na condição de comissário, viajou para a Alemanha. Na primavera de 1851, arregimentou cerca de 2.000 homens das tropas desmobilizadas de Schleswig-Holstein, Viajaram para o Brasil sob o comando (29) do tenente coronel von der Heyde. Só poucos tomaram parte na campanha propriamente dita. Prestaram relevantes serviços na guerra pois estavam armados com a carabina de agulha recém inventada. Sem participar da guerra a maioria dos Brummer permaneceu em Montividéu, de onde se deslocaram para o Rio Grande do Sul. Dedicaram-se aqui às mais diversas atividades: Carl von Koseritz como funcionário para a colônia, redator e político, Carl Jansen como tipógrafo. Além dessas tropas estrangeiras, foram convocados para a guerra também nativos, mas só solteiros. Um certo Rocha  com uma fazenda no Carioca, mandou um certo Machado de São José do Hortêncio, para a colônia Bom Jardim, na condição de oficial recrutador. Este por sua vez dispunha de subalternos que percorriam as picadas em busca de rapazes em idade de servir no exército. Jacob Jung estava construindo um moinho para farinha e óleo na Picada Café, na outra margem do Cadeia, onde uma estrada leva ao vale da Joaneta. Tabalhavam com ele Michel Calsing e, como pedreiros, os irmãos Weiler e Philipp  Roth do Morro dos Bugres. Os recrutadores procuravam Friedrich Arndt, irmão adotivo de Jacob Jung e, provavelmente um paulista que estava alojado na casa de Jung. Alertados a tempo refugiaram-se na Picada 48. Quando depois um contingente da polícia recrutadora, achando que surpreenderia os procurados no moinho, como que numa ratoeira, ficaram muito furiosos, ao perceberem que tinham feito a  viagem em vão. Como desforra amarraram os inocentes e os arrastaram por um trecho para, em seguida libertá-los, depois de maltratá-los com golpes de sabre.
Um Brummer de nome Albert Boruzewski   que de maneira alguma tinha a má fama e os maus costumes dos seus companheiros, estabeleceu-se como aplicado cordoeiro em Bom Jardim. Nascera no dia 28 de março de 1826 na fortaleza de Thorn onde recebeu uma boa formação escolar  e, mais tarde, aprendeu o ofício de cordoeiro. Na ocasião em que se formava a legião alemã de von der Heyde em Hamburgo, ele se encontrava em Altona como oficial cordoeiro. Certo dia apareceu um jovem na oficina. "Meu Deus, Julius, como vieste até aqui!", exclamou admirado. Julius era o último dos filhos do velho mestre em Thorn. "Venho de Baden" respondeu e pretendo viajar como voluntário para o Brasil." "Mas Julius, o que dirá teu pai e tua mãe. Talvez nunca mais te vejam e ficarão tristes e acabrunhados quando não tiverem mais notícias de ti." Julius era o predileto da mãe e íntimo amigo do aprendiz de cordoeiro Boruszewski. "Não, não lhes podes causar este desgosto. Vamos primeiro escrever-lhes para obter a sua permissão." "Não é necessário," disse Julius, "ninguém me impedirá, mas escreve se quiseres."Boruszewski assim o fez. Depois de três ou quatro dias veia a resposta, dirigida a Boruszewski na qual lhe era pedido que tentasse tudo para reter Julius. Mas Julius ficou firme no seu propósito. Boruszewski lembrou-se então de um primeiro tenente de Radszewski, também nascido em Thorn e conhecia bem o pai de Julius. Também eles se apresentou, porque como outros oficiais, havia ficado em Schleswig-Holstein contra a vontade do governo prussiano, para lutar pela sua independência e por isso não podia contar com promoção. Em lugar de apoiar os esforços de Boruszewski, respondeu com a provocação: "Que nada, vem e acompanha-me também. Neste momento também Boruszewski  tomou a decisão de fazer parte da expedição, com a intenção de fazer às vezes de pai para Julius. O outro motivo foi um desentendimento com  o irmão mais velho. Na partilha dos bens esse  beneficiara-se vergonhosamente, em prejuízo dos outros irmãos. (30) Em vez dos 1.700  rublos eles receberam apenas 260. Para Boruszewski expulso desta maneira da terra natal, era indiferente aonde iria tentar a sorte. Assinou então contrato com a Legião Alemã.
A tropa, dividida em três contingentes: um batalhão de infantaria e seis companhias, uma divisão de artilharia e pioneiros, no total 2.000 homens, estava sob o comando do tenente coronel von der Heide, um antigo oficial prussiano. Samuel Lemmertz era major do batalhão de infantaria.  Distinguira-se pela valentia na guerra russo-turca, mas adquirira também uma boa dose de rudeza. Era conhecido simplesmente como Samuel. (32) As tropas alemãs desembarcaram na sua maioria no Rio de Janeiro onde, em seguida, começaram as deserções, que tomaram proporções ainda maiores durante a campanha. Os alemães foram encaminhados a Rio Pardo, via Rio Grande. De lá seguiram para Pelotas e por água até Jaguarão. Em marchas penosas continuaram pelo Uruguai até a Colônia do Sacramento, em frente a Buenos Aires, na outra margem do Rio da Prata. Como conta Boruszewski permaneceram aí durante algumas semanas, período em que morreram 18 0u 19 de  desinteria. O hospital militar estava instalado num velho convento e, também eu, me vi forçado a internar-me durante duas semanas porque fui acometido pelo mesmo mal. Perguntaria se esta doença foi a minha sorte ou a minha desgraça? Um comando de 70 homens sob as ordens de um capitão e dois tenentes, recebeu ordens de avançar e tomar parte no combate. Até agora só marchávamos para frente, sem entrar em contato com o inimigo. Afirmava-se constantemente que o inimigo andava por perto, mas quando avançávamos, não havia ninguém. Apresentou-se finalmente a ocasião para entrarmos no fogo. Mas só 70 homens deveriam ter esta felicidade. Coincidia com o número exato de carabinas equipadas com agulhas em poder do nosso contingente. Por permissão do major sargento  também eu deveria estar entre os escolhidos e, durante dois dias treinei tiro ao alvo com a carabina de agulha. Adoeci e com isto a minha fama de guerreiro estava terminada. Os 70 homens entraram em combate que durou apenas duas horas. Nenhum deles morreu e só três foram feridos. Os nossos pioneiros, distribuídos entre os batalhões brasileiros, também tomaram parte no combate. Não sei dizer quantos tombaram. Provavelmente foram poucos, pois a guerra terminou em seguida. Os episódios mais relevantes estão num canto de soldados, composto por Bilke, também de Thorn e, mais tarde, professor evangélico na Picada dos Portugueses. Das trinta estrofes conservo na memória  algumas estrofes que retratam a nossa (33) vida no acampamento e os nossos deslocamentos. As estradas encontravam-se m situação especialmente crítica e os desperdícios eram grandes. O tratamento também não correspondia ao que os alemães tinham direito de reclamar conforme o contrato, principalmente da parte dos comandantes alemães. Um episódio ilustra mais do que palavras, o que éramos obrigados a suportar.
Em companhia com um outro camarada eu tinha encontrado um bom cantinho no navio. Ele, porém, agradava a um suboficial de nome Lange e a um alferes de nome Mayer, oriundo de Bremen (este último foi mais tarde professor em Hamburgo Velho) e procuraram desalojar-nos. Mas nós insistimos no nosso direito. Esta atitude não passaria sem castigo da parte de Lange. Por um bom tempo não podia fazer nada contra mim por ele pertencer a uma outra companhia, a terceira, até que um dia se apresentou a ocasião e ele a aproveitou fartamente. Com a intenção de obter a benevolência dos seus superiores brasileiros, o major Samuel ofereceu os soldados alemães para limpar o local no acampamento destinado para dormir. Destacava regularmente 18 homens para esta finalidade, selecionados das diversas companhias. Acontece que esta ordem nem sempre foi cumprida. Os sargentos mandavam aqueles que no dia do pagamento do soldo não lhes lavavam a garganta com cachaça, mas utilizavam o dinheiro para adquirir pimenta, sal, cebolas e outras utilidades para a vida do acampamento. Aconteceu então que as mesmas pessoas foram destacadas quatro ou cinco vezes seguidas, para executar este trabalho sujo. Revoltados combinaram que na próxima vez  recusariam o trabalho. Mas quando veio novamente a ordem ninguém se atreveu a  contestar. Apenas Boruszewski armou-se de coragem e foi direto ao major Samuel. Este gritou imediatamente: "Tambores, o toque do sargento!" Os sargentos apresentaram-se e sobre suas cabeças desabou uma tormenta para valer. Por não se ter queixado como manda o regulamento, foi castigado com duas vezes quatro mais vinte horas de cadeia. No local da detenção o oficial do dia era casualmente o suboficial Lang. Ao deparar-se com seu rival do tempo do navio, aproveitou a ocasião para descarregar o seu humor. Perguntou ao suboficial de guarda que também se chamava Lang: " Quanto tempo de detenção tem este homem?" A resposta foi: "Duas vezes vinte e quatro horas." "Sim, leves ou pesadas?" Nem o preso nem o suboficial o sabia. "Bem, vou informar-me para já", disse o suboficial do dia e saiu. Depois de alguns minutos voltou com a decisão: "Detenção severa." Foi algo terrível. Significava ficar quatro horas amarrado a uma careta com os braços e os pés esticados como um crucificado. Veio com o efeito de um raio sobre B0ruszewski, que disse que não suportaria um castigo como aquele. Além de tudo era Natal. Para consolá-lo 12 ou 14 dos seus conterrâneos o procuraram, levando bebida, cachaça, vinho forte. Mas ele estava pouco afim. A agitação e a bebida mergulharam-no numa disposição sombria, fazendo-o declarar ao oficial  encarregado da guarda: "Prefiro meter uma bala na cabeça a submeter-me a um castigo destes." Mas o bom anjo o protegeu e fez com que não praticasse um ato que o cobriria de vergonha e condenaria sua alma irremediavelmente à maldição. "Acalme-se", respondeu o suboficial, eu conheço desde Schleswig-Holstein esse covarde do oficial do dia. "Escute, mando dois homens levá-lo até a carreta. Fique lá. Quando passa a ronda levante por uns momentos os braços e os pés contra a caixa, para parecer que estás amarrado." "De acordo", foi a resposta. "E se o oficial do dia vier para examinar?" "A este respeito não te preocupes nem um pouco, ele não virá." Essa demonstração de amizade me fez bem e decidi acatar a sugestão. Na hora combinada levaram-me até a carreta e, sem demora, ouvi a guarda gritando: "Alto, quem está aí?" Veio a resposta: "O oficial da ronda."  E, em voz baixa: "Senha e contra senha". Como é do conhecimento dos soldados veteranos, com a aproximação de alguém, a guarda no campo tem o dever de perguntar com a baioneta calada ou a arma engatilhada: "Quem está aí?" O oficial que inspecionava o posto respondeu em voz baixa: "O oficial da ronda." Na mesma posição, a baioneta apontada para o peito do que se aproximava, pronta para a estocada, a sentinela perguntou em voz um pouco mais baixa: "Senha", pelo que o oficial da ronda respondeu com voz abafada. Com voz ainda mais baixa perguntou a sentinela: "Contra senha", que deveria ser dada por um outro, para que não fosse imediatamente varado o peito com a baioneta. Tratando-se de simples soldado a sentinela diz: "Pode passar." Tratando-se do oficial da ronda presta a saudação  militar convencional. De fato o oficial do dia passou sem observar o preso, que se encontrava na postura combinada. De qualquer forma o tratamento durante a guerra deixou muito a desejar. Carlos Tenorowitsch, um homem talentoso, que estudara teologia no seminário, e desistira antes da ordenação, por achar que não tinha vocação, estivera a serviço da Áustria. Como primeiro sargento fugiu com o dinheiro do soldo da companhia e, por seis meses, escondera-se no roupeiro de um parente. Aproveitou o isolamento involuntário para ler muitos livros e evitar o tédio. Era um homem com formação e durante a guerra foi solicitado como intérprete em negociações com os castelhanos, por causa dos seus  conhecimentos de latim. Como se sabe fala-se espanhol no Uruguai e na Argentina. Tinha paixão pela leitura e procurava os livros onde quer que estivessem. Encontrou certa feita e pediu emprestado um livro do livreiro  Lorberg. O tenente Wedelstädt que também teria gostado de ler o livro, soube do caso. Perguntou ao Tonorowitsch (pelo pseudônimo Elsner), conhecido dos hóspedes da antiga venda  de Jacob Müller em Bom Jardim. "O senhor leu o livro?" Não senhor, tenente, não o terminei ainda, mas logo que estiver pronto, levo-o para  o senhor." O tenente levou a mal esta falta de colaboração. Não demorou para se apresentar uma ocasião para fazê-lo sentir. Com a marcha os pés de Tenorowitsch estavam feridos, ao ponto de não conseguir acompanhar os demais. O tenente gritou-lhe a ordem: "Homem, marchar em formação!" Ao mostrar que os pés feridos o impediam, o tenente desferiu-lhe um golpe de sabre na cabeça. Ele caiu e foi preciso levá-lo até o hospital da cidadezinha de Santa Lúcia. O mesmo oficial praticou um outro ato de valentia por ocasião da marcha para o campo da batalha, com seu "nariz de cachaça" que adquirira na escola de cadetes de Potsdam. O batalhão estava pronto  para a marcha e apenas aguardava ordem para pôr-se em movimento, quando o vizinho da fileira do lado permitiu-se um gracejo. "Senhor, cala a boca!", berrou Wedelstäsdt  para o soldado. "Mas, senhor,  tenente, estou apenas contando uma piada berlinense." "Senhor, cala a boca!", (35) foi a resposta, acompanhada por um golpe de sabre que  derrubou o atingido. No mesmo momento ouviu-se o comando: "Marchar!" e o batalhão pôs-se em movimento. Não ficamos sabendo o que aconteceu com o infeliz alemão. As  brutalidades foram possíveis embora, segundo o contrato, o batalhão estivesse sujeito  ao regulamento e comando prussiano. Don Fernando, odiado pelos alemães, fez-se culpado de outros maus tratos com um soldado. Um soldado com os pés em ferida acomodara-se numa carroça com soldados e mulheres de soldados. Ao vê-lo o general ordenou-lhe que descesse imediatamente. O soldado que não entendia o português, apontou para os pés sem dizer uma palavra. Don Fernando furioso repetiu a ordem e como o cumprimento demorasse um pouco, desferiu-lhe um golpe de chicote na cabeça. O alemão viu-se obrigado a abandonar a carreta e arrastar-se até o acampamento. Logo que o tenente coronel von der Heyd soube do fato, dirigiu-se ao general recusando-lhe submissão colocando o sabre a seus pés. Com o tenente coronel todos os outros oficiais alemães mais antigos  despediram-se porque se sentiram ofendidos com o tratamento dispensado ao soldado. Marcharam a pé de Montevidéo até Rio Pardo. E que marcha naquelas condições lamentáveis. A maioria já não dispunha de calçados, apesar de os sapatos serem enviados em caixas. Foram desviados para outros destinos e serviram para fazer negócios. Muitos confeccionavam sandálias para de alguma maneira proteger os pés. Cortavam solas utilizando couro cru de boi com que eram feitos os sacos  em que se transportava a erva mate. Faziam furos nas bordas e prendiam o sapato rudimentar, com barbantes nos pés. Mas era um quebra galho miserável. O couro cru castigava de tal maneira os pés que, depois de dois dias de marcha, as pessoas não conseguiam mais andar. Certo dia o general Caxias organizou uma parada. Borusewski, um soldado asseado e robusto não podia faltar e, como estava de sentinela, foi rendido por um sujeito desleixado. Isto não lhe valeu nada. Não tinha botas nem sapatos, além de desajeitado, característica que tinha em comum com muitos outros.
O criativo Samuel soube como  ajudar-se. Mandou que o batalhão se formasse em três fileiras, os descalços na do meio. Mas não era tão fácil enganar Caxias. Seus olhos fixaram continuamente o chão onde se movimentavam os descalços. O artifício falhara. Apesar de tudo Samuel gozava de boa aceitação junto a Caxias, porque em certa ocasião o presenteara com um magnífico sabre turco, recebendo em troca um cavalo como Borozewski jamais vira outro mais belo. A situação das fardas não estava muito melhor que os calçados. Nem falar em corte adequado. Não raro tinham dobras tão grandes que era possível esconder nelas um pão de campanha. E as cores! No dia em que as tropas entraram em Rio Pardo depois da guerra, a farda do nosso conterrâneo, reluzia em quatro cores: azul claro e escuro e amarelo claro e escuro. Ele notou que as senhoras nas janelas riam aos vê-los, mas isto lhes importou muito pouco. Não os conheciam e afinal, a administração do exército  fornecera a farda. Por ocasião da compra em Hamburgo era até vistosa na sua única cor. Como acontece ainda hoje nos fornecimentos para o exército, os judeus tingiram com uma única cor as fardas confeccionadas com quatro tipos de pano. A tintura não resistiu à chuva e ao  sol dos trópicos.


Relacionado com a farda aconteceu também o seguinte episódio. Na ocasião em que o batalhão teve que realizar uma parada dos esfarrapados diante do general Caldon, um inglês, o bom Samuel  surpreendeu-se com a aparência do Boroszewski. "Meu filho, que farda estás vestindo, és o primeiro que vai receber uma nova", disse em tom paternal. Acontece que o filho espera até hoje para recebê-la. Não é de se admirar pois o pano destinado aos filhos de Samuel foi vendido aos fardos em Monevidéo. O que aconteceu com os sapatos e as fardas, deu-se (36) também com os outros fornecimentos como café, açúcar, etc. Antes que as encomendas chegassem até os soldados, muita coisa já passara para as mãos de outros sobrando muito pouco. Por gado e carne providenciava-se regularmente, mas de vez em quando o fornecimento não chegava a tempo ou falhava de todo. O seguinte exemplo serve como ilustração. Certa ocasião Boroszewski, por causa dos pés machucados, foi autorizado pelo tenente a marchar na retaguarda. Ele percebeu alguma coisa esverdeada ao lado da estrada. Aproximou-se, virou-a com  o pé e constatou que se tratava de um pedaço de carne meio estragada. Mesmo que a aparência não fosse apetitosa, pensou que ainda poderia servir e a levou até o acampamento. Chegado lá ouviu dizer que o gado não chegara. Alegrou-se por ter salvo o pedaço de carne esverdeada. Desceu até o arroio, lavou-a como a mulher lava uma peça de roupa. Adiantou, mas não muito. Pensou consigo: com o auxílio do fogo, pimenta e sal é possível que resulte alguma coisa. Acendeu o fogo e sobre ele colocou a carne. O verde diminuiu um pouco. Enquanto se ocupava com a carne aproximou-se  o tenente Wedelstädt e o interrompeu.  "O que é isto?, Borusewzewski, ninguém no acampamento tem um fogo como o senhor e, além disto, parece que está assando." Deitou-se no capim aí perto e, negligentemente fustigava os colmos com o sabre, enquanto de tempos em tempos, lançava um olhar furtivo em direção à carne. Boruszewski arriscou a pergunta: " Quem sabe o senhor tenente aceita ser meu convidado?" "Evidente", foi a resposta. "É para isto que estou aqui." Pronta a carne os dois a saborearam com apetite. O soldado não conteve o riso e o tenente perguntou: "Então, o que há?" "Sabe," respondeu aquele; "O fato de nós dois termos neste momento algo para comer, devemos ao senhor tenente." "Como?" foi a pergunta. Contei-lhe como  conseguira a carne e como a preparara. Rimos à vontade e teríamos comido mais se tivéssemos tido mais. A caracterização do batalhão alemão  acima, deixa claro para qualquer um, que a nossa situação não era das melhores. O nosso humor estava muito baixo e não poucas vezes, nós camaradas reunidos, tentávamos consolar-nos mutuamente. Para outros a paciência terminou e patrulhas inteiras de 12 ou 16 homens desertaram, como já tinha acontecido no Rio de Janeiro. A maioria se deu bem na fuga. Mas quando os fugitivos caíam nas mãos dos piquetes de sentinelas, aguardava-os uma vida bem mais dura. Recebiam apenas a metade dos suprimentos  e metade da ração e eram obrigados a acampar no relento, fora das barracas, mesmo na pior das intempéries.