Reflexões Avulsas - Sobre o curso de História Natural da Unisinos

Recebi com prazer e aceitei com satisfação o convite da organização dos cinqüenta anos do Curso de História Natural na Universidade do Vale do Rio dos sinos, para dar o meu depoimento sobre os começos desta caminhada. Optei por não me deter na história formal da implantação do curso. Outros já o devem ter feito consultando arquivos, atas, correspondências e outros documentos de natureza oficial ou oficiosa. Como qualquer outro dos cursos da Universidade também este tem as suas raízes não formais que explicam muitos das suas características, seus propósitos e sucessos.

A primeira coisa que me parece merecer destaque é o entorno histórico em que o Curso de História Natural nasceu. Não se pode esquecer que os cursos que serviram de ponto de partida para a futura Universidade do Vale do Rio dos Sinos, foram o fruto de um projeto educacional e de uma tradição de produção de conhecimento e realização de pesquisas dos padres jesuítas no Sul do Brasil. Foi assim com a Filosofia, foi assim com as Letras, foi assim com a História e a Geografia. Deixando de lado as demais áreas fiquemos apenas com a História Natural. Suas raízes recuam para o final do século dezenove. Já nos anos e 1880 o Pe. Ambros Schupp, professor no Colégio Conceição em São Leopoldo, mandava seus artigos sobre lagartos, aves, florestas, desmatamento e outros, para serem publicados em revistas alemãs. Em 1904 desembarcou em Porto Alegre o Pe. Johannes Rick, carregando em sua bagagem um microscópio de última geração e uma biblioteca com obras selecionadas sobre fungos. Os superiores o tinham destinado para o Brasil para lecionar no Colégio Conceição, desenvolver pesquisas sobre fungos.  Teve o nome internacionalmente respeitado pelos fungos que coletou e mandou para os centros mais importantes na época, nos Estados Unidos e Europa. Uma parte da sua coleção ainda hoje está à disposição de pesquisadores e alunos na Unisinos. O Pe. Ferdinand Theisen parceiro do Pe. Rick, faleceu caindo dos Alpes numa excursão de coleta pouco antes de retornar em definitivo para o Brasil.

Entre os citados foi principalmente o Pe. Rick, pela sua longa permanência no Sul do Brasil, de 1904 até a sua morte em 1946, que consolidou a tradição de naturalistas entre os jesuítas e seus alunos.

Os padres Rick, Schupp, Theisen e outros não tardaram em despertar vocações para os estudos da História Natural entre os jovens jesuítas nascidos no Brasil. Foi de tal ordem que, a partir da década de 1930, formou-se uma considerável equipe disposta a concentrar seus esforços no estudo especialmente da botânica e zoologia. Sobressaíram-se neste esforço os padres Balduino Rambo, Aloísio Sehnem, Canísio Orth, Eduino Friederichs, Ernesto Mauermann, Pio Buck, Ernesto Haeser, Clemente Steffen e outros. Foi assim que se consolidou uma tradição de pesquisa científica entre os jesuítas no Sul do Brasil. Mostraram-se fiéis a uma tradição na Ordem que já vinha de longe e que tanta notoriedade lhe conquistara. Lembramos aqui apenas os nomes de Matteo Ricci e Adam Schall na China, Roberto de Nobile na Índia, Anton Sepp nas Missões do Paraguai, Theillard de Chardin, e Erich Wassmann, Johannes Rick, Ferdinand Theissen, Balduino Rambo, Luiz Sehnem.

Implantação do Curso de História Natural na sua versão  original em 1958, como um dos primeiros da futura Universidade do Vale do Rio dos Sinos, não foi uma decisão aleatória. Significou, de um lado, a concretização formal e o reconhecimento oficial de um esforço científico que até aquele momento estava confinado a laboratórios individuais nos colégios. De outro lado significou a abertura das portas da instituição de pesquisa em formação, a estudantes e cientistas leigos sem discriminação.

Pe. Hauser artífice do Curso
De História Natural.

Não há dúvida que o mérito da oficialização dos primeiros cursos visando a implantação de uma futura universidade, foi do Pe. Urbano Thiesen. Na criação do curso de História Natural em particular, entra um outro personagem não menos importante: o Pe. Josef Hauser. Coube a ele a responsabilidade de definir a estrutura acadêmica e o clima de rigor científico que vem norteando até hoje as pesquisas desenvolvidas no curso.

O perfil do Curso de História Natural implantado em 1958 tem tudo a ver com  a personalidade e a formação acadêmica do Pe. Hauser. De nacionalidade húngara foi veterano da Segunda Guerra Mundial. Os inevitáveis traumas resultantes dessa fase da sua vida não deixaram de acompanhar a sua maneira de ser durante toda a vida. Fez-se jesuíta e nesta situação sofreu com seus irmãos de Ordem a perseguição da parte do regime comunista instalado na Hungria depois da guerra. A Ordem foi proscrita e seus membros dispersos por diversas partes do mundo. A Província do Brasil Meridional recebeu vários deles, entre eles o Pe. Hauser.

Lembro-me como se tivesse sido ontem. Eu era estudante de Filosofia no Colégio Cristo Rei, quando num determinado dia de maio de 1954, entrou no refeitório na hora do almoço aquela figura de estatura baixa, com uma calvície precoce e passos apressados. Soube em seguida tratar-se do estudante de Teologia Josef Hauser, que viera para terminar seus estudos eclesiásticos e depois ordenar-se sacerdote. Soube em seguida que o Pe. Frantz,  encarregado de reunir quadros para formar o corpo docente dos cursos superiores que estavam sendo implantados, convidara Hauser para colaborar no projeto. Também eu constava na lista para me formar em Biologia depois de terminada a Filosofia com a mesma finalidade. Passados alguns dias encontrei-me com Hauser e, como ele tinha dificuldade em comunicar-se em português com os colegas, passei conversar seguido com ele em alemão. Nasceu daí uma amizade que se prolongaria por muitos anos. E com ela consolidou-se também uma pareceria em que ele teve o papel de introduzir-me no mundo da pesquisa científica e, mais tarde a montagem do Curso de História Natural.

Já no segundo semestre de 1954 Hauser ministrou um seminário de Questões Seletas de Biologia para os estudantes de Filosofia, num linguajar pitoresco de uma mistura de espanhol com português. Aliás o Pe. Hauser nunca chegou a dominar o português apesar dos esforços que fazia. Num quarto cedido no Colégio Cristo Rei ajudei-o a instalar um laboratório em que a base era um microscópio binocular, um micrótomo e os reagentes básicos para preparar o material de tecidos animais e vegetais para a observação. Além dos instrumentos citados a precariedade era total. Para a obtenção de água destilada foi adaptada uma panela de ferro, improvisados tubos de ensaio. Este laboratório improvisado foi a semente que, aos poucos deu origem ao promissor núcleo de pesquisas  que acolheu os primeiros alunos do Curso de História Natural em 1958, instalado no centro de São Leopoldo.

Durante um bom número de anos as instalações e os laboratórios deixaram muito a desejar. A lacuna foi amplamente compensada pela excelência e a seriedade teórica com que os conteúdos das disciplinas eram tratados, aliado a uma dedicação total dos professores fundadores do curso. O  clima acadêmico era de uma família em que o Pe. Hauser se encarregava de contribuir com o que tinha e o que não tinha, sempre auxiliado pelo Pe. Aloísio Sehnem, Paulo Lacerda, Ely Denhardt, Eugênio Gruman.

Em 1957, concluído o curso de Filosofia na primeira turma oficializada no Colégio Cristo Rei, fiz vestibular para a História Natural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De 1957 a 1959 lecionei Ciências no Colégio Anchieta em Porto Alegre, ainda nos antigos prédios na rua Duque de Caxias, ao mesmo tempo que freqüentava as aulas na UFRGS. A criação do Curso de História Natural em São Leopoldo em 1958 coincidiu, portanto, com a minha formação na área. O Pe. Urbano Thiesen, empenhado na montagem da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras em São Leopoldo, encarregou o Pe. Hauser da estruturação do Curso de História Natural. Tive a felicidade de auxilia-lo nesta tarefa. O projeto incluiu desde a instalação das salas de aula e dos laboratórios num dos prédios desocupados pelo Seminário Central que fora transferido no ano anterior para Viamão, até a montagem do currículo acadêmico e o recrutamento de professores.

Os primeiros laboratórios dão bem uma idéia do despojamento para não dizer penúria com que começou a funcionar o Curso de História Natural. Os equipamentos não passavam em muito do microscópio, da lupa e do micrótomo tarzidos pelo Pe. Hauser, do microscópio e da lupa do Pe. Sehnem, de tubos de ensaio improvisados, pinças e algo a mais. Aliás falando nisso o Pe, Hauser mostrou-se de uma versatilidade sem limite para superar essa situação de precariedade com o seu espírito inventivo de encontrar saídas e soluções pouco convencionais. Percorria oficinas mecânicas, fábricas, ferragens, etc. e reunia peças, ferramentas, utensílios de todo o tipo para adaptá-los para fins  de laboratório. Lembro-me do dia em que me convidou para  acompanhá-lo numa Kombi  de terceira mão, até as oficinas do Departamento Aeroviário do Estado, nos fundos das oficinas da VARIG. Enchemos a Kombi com tudo que nos foi liberado pelos responsáveis pelas oficinas: tubos de vidro, mangueiras, válvula de rádio, canos, o que se podia imaginar. Voltamos felizes para São Leopoldo com o espólio e, nas semanas seguintes, os laboratórios foram sendo equipados com o mais indispensável para receber os primeiros três alunos: o Rolf Gehlen  e  Clésia Marques. Poderíamos multiplicar ao indefinido os lances tipicamente de um pioneirismo que foi obrigado apostar na criatividade, na ousadia, na temeridade e, principalmente, numa versatilidade que foi capaz de transformar obstáculos em aliados e sucata em equipamentos de laboratório. E justiça seja feita. Essas virtudes o Pe. Hauser as possuía como poucos e as fazia valer com uma obstinação que não admitia recuos. Por essa razão a justiça manda que o Pe. Hauser seja recordado,  por ocasião do cinqüentenário do Curso de História Natural, como o artífice número um desta magnífica obra.


O perfil do Curso
de História Natural

O modelo de universidade que inspirou  a criação dos cursos que deveriam servir de base para a futura universidade do Vale do Rio dos Sinos, têm tudo a ver com a formação acadêmica do Pe. Thiesen e do Pe. Hauser e dos seus colaboradores. Valiam-se de alguma forma da universidade alemã como  paradigma. Ora neste tipo de instituição a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ocupava o lugar da alma da universidade ao ponto de ser tratada como “alma mater”.  E não convém esquecer que estamos na década de 1950. As reformas universitárias que nos 40 anos que se seguiram tumultuaram o cenário universitário no Brasil começariam no início dos anos sessenta. Até naquele momento as instituições de ensino superior gozavam de uma autonomia bem maior do que hoje. Além disso as poucas universidades existentes  no Brasil, tinham adotado um modelo inspirado na nova universidade alemã, evidentemente  com as devidas adaptações às peculiaridades próprias das circunstâncias brasileiras. A Universidade Federal do Rio de Janeiro, A Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, contavam  com suas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Aliás nos quadros dos catedráticos fundadores dessas universidades constavam os nomes de um número considerável de professores e pesquisadores vindos da Europa. As demais de formação acadêmica superior tinham como centro polarizador e irradiador a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Em torno dela agrupavam-se faculdades de medicina, escolas de engenharia, escolas politécnicas, centros tecnológicos, faculdades de economia, institutos de pesquisa, museus, centros de documentação, etc., de acordo com as demandas específicas de cada caso.

À Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na condição de “referencia”, de “alma mater” do todo universitário cabia produzir conhecimento enquanto nas faculdades, nas escolas, nos institutos tecnológicos, nos museus, nas estações experimentais ..., se desenvolviam os instrumentos e se formavam os especialistas que atuariam nas frentes profissionais mais diversas.

Deixando de lado a Filosofia propriamente dita e as Letras, parece pertinente deixar algumas considerações sobre o que se entendia sob a natureza do conceito de Ciências utilizado pelos fundadores do Curso de História Natural da Unisinos, há 50 anos atrás. E, para se ter uma idéia mais exata do que significava falar em Ciências e mais especificamente em História Natural, basta dar uma examinada no currículo implantado na sua criação. A resposta não está nas disciplinas individuais, mas nos grandes eixos sobre os quais o Curso de História Natural estava montado. A mesma estrutura formava a base desses cursos também nas outras universidades, como a PUCRS e a UFRGS. Figuravam como linhas mestras que perpassavam o currículo de alto a baixo como fios condutores a Biologia com ênfase nas diversas tendências teóricas, a Zoologia e seus desdobramentos, a Botânica e suas diferentes especialidades, a Geologia e Paleontologia. Como se pode perceber tratava-se de um currículo montado em bases de molde a oferecer aos estudantes condições de apropriar-se de um cabedal de conhecimentos que cobriam o vasto campos das Ciências Naturais. E não era por acaso que o curso se chamava de História Natural. O objetivo imediato não consistia em definir especialidades e encaminhar especialistas já a partir dos primeiros semestres. O que importava era que os alunos interiorizassem uma compreensão sincrônica, diacrônica, temporal e espacial, das realidades naturais, das leis e processos que comandam a Natureza em todas as suas dimensões. Arriscando uma metáfora diríamos que o curso de História Natural levava os estudantes para a floresta para começar conhecendo-a no seu todo: as árvores, os arbustos, as ervas, os musgos, os líquenes, os fungos e os microorganismos; os animais dos diversos tamanhos e variedades; as rochas, os solos, a temperatura, o umidade, a distribuição e a intensidade da iluminação, as fontes os riachos e os rios. Dessa forma o estudante se apercebia que a Natureza como um todo, assim como a floresta como um todo, é um sistema, um organismo. A Natureza como um todo forma uma grande unidade. Não é o resultado da soma de todas as árvores, animais e cursos de água, mas uma realidade superior formada pela interação, interdependência e inter-relação de todos os seus componentes. Aliás essa concepção de totalidade, de unidade, de organismo, de sistema, ou outros termos que se queiram utilizar ou já foram utilizados, subjaz à percepção da Natureza de Nicolau de Cusa, Espinosa, Teilhard de Chardin, Ludwig von Bertalanffy, Balduino Rambo e, mais recentemente, Francis Collins.

A verdadeira ciência não consiste em dissecar as partes da natureza até os detalhes moleculares e procura por este caminho a sua natureza. Ela procura a essência e razão de ser das partes na totalidade. Já no século quinze Nicolau de Cusa formulou a questão nos segu”intes termos: “ex partibus pluribus elucet totum” – pela multiplicidade das partes manifesta-se o todo”.

História Natural
O curso de História Natural da Unisinos implantado em 1958 como área de conhecimento integrante da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, não foi uma opção aleatória dos fundadores da Universidade. Em primeiro lugar  não se pode esquecer que desde muito cedo os jesuítas valeram-se do conhecimento científico como um instrumento privilegiado de apostolado. No século dezessete Adam Schall e J. Roh reformaram o calendário chinês. Schall foi nomeado astrônomo da corte chinesa e diretor do Instituto de Matemática. Mattteo Ricci, jesuíta italiano, contemporâneo aos dois anteriores,  gozou de  livre trânsito na corte chinesa por seus conhecimentos científicos, ao ponto de seus livros em chinês terem sido considerados obras clássicas. Já no século vinte foi Erich Wassmann  que conquistou fama no mundo científico com seus estudos sobre formigas e térmites. Johannes Rick, seu contemporâneo, tornou-se conhecido com seus estudos sobre fungos coletados no Sul do Brasil. E o mais conhecido dos jesuítas cientistas foi Teilhard de Chardin. Na década de 1930 formou-se um grupo de jovens cientistas jesuítas no  Sul do Brasil dedicados a diversas especialidades. Sobressaíram entre eles Balduino Rambo e Luiz Sehnem. O curso de História Natural da Unisinos nada mais significou do que a continuação dessa tradição em bases organizacionais  sólidas.

O curso de História Natural foi criado também num momento em que nas universidades brasileiras  a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ocupava o lugar de “alma da universidade” a “alma mater” como se costumava dizer. Era no seu âmbito que acontecia a academia, produzia-se o conhecimento numa perspectiva teórico-metodológica interdisciplinar. O objetivo primeiro consistia em avançar na  busca do conhecimento e da compreensão das questões básicas que envolvem o homem e o entorno em que vive. Para tanto a História Natural, somando os resultados das  suas investigações aos esforços da Filosofia, lições da Historia e as outras áreas afins, assumia os contornos de uma área científica, a serviço da compreensão do todo. Com as sucessivas reformas universitárias, acrescidas das reformas de cada universidade em particular, a História Natural perdeu essa identidade, reformulou seus métodos e objetivos e redefiniu as suas funções no todo universitário, se para o melhor ou pior não é aqui o lugar para ser discutido.

Uma grande idéia nasce sempre de uma grande cabeça e sua concretização leva as marcas do autor da idéia e da obra. No Caso da História Natural o personagem, ou se quisermos recorrer a uma categoria antropológica, o herói fundador foi o Pe. Josef Hauser, um jesuíta húngaro, veterano da segunda guerra mundial, expulso da sua pátria pelos regime comunista, com doutorado em biologia pela Universidade de Innsbruck, na Áustria. Em segundo lugar não se pode deixar de mencionar o Pe. Urbano Thiesen, encarregado de colocar as bases da futura universidade, com doutorado feito em Roma e mais tarde um segundo em Munique. Um microscópio, uma lupa, um micrótomo e alguns acessórios, trazidos pelo Pe. Hauser, foram os únicos equipamentos mais elaborados para montar o primeiro laboratório. O restante foi preciso improvisar a partir de doações até de sucata das oficinas do Departamento Aeroviário do Estado. Uma panela de cozinha adaptada a uma serpentina  moldada com um tubo de vidro, fornecia a água destilada, pinças e bisturis de segunda mão, reagentes conseguidos por doação, compunham as ferramentas científicas que permitiram o começo do Curso de História Natural. Mas foi sobre esta base que a versatilidade, a criatividade e, principalmente,  dedicação e determinação  do Pe. Hauser e da sua equipe fundadora, o Pe. Luiz Sehnem, os professores Ely Denhardt, Paulo Lacerda, Eugênio Grumann, apoiaram o curso de História Natural.

Com poucos recursos financeiros mas idéias claras na cabeça, um objetivo a perseguir e uma persistência inquebrantável, fizeram brotar do quase nada um curso de História Natural que, em poucos anos, se impôs pela seriedade acadêmica e pelos resultados na pesquisa.


Reflexões Avulsas - As doutrinas são muitas – A verdade é uma só

Chegados que estamos a essa altura da vida a natureza e os objetos das reflexões diminuem gradativamente em número mas, em compensação, aqueles que subsistem ganham em importância existencial. Aos vinte anos olhávamos em nossa volta e percebíamos o mundo como um cenário feito de múltiplas possibilidades para planejarmos os rumos da nossa existência, realizarmos os nossos sonhos e concretizarmos os nossos ideais. A imaturidade e a falta de experiência cobraram às vezes um preço alto. Não poucos sonhos mostraram-se quimeras fugazes, outros tantos utopias impossíveis. Opções para o rumo da vida que pareciam definitivas, mostraram-se equivocadas no decorrer dos  anos. Para não sucumbir nessas situações foi preciso recorrer a correções de rota que, aparentemente, poderiam parecer rupturas pela raiz do passado. Objetivamente falando, porém, não passaram de escolhas ousadas para não sacrificar a linha mestra da coerência que tínhamos traçado para a vida. E assim nos empenhamos na compreensão da vida e das vivências pessoais, dos relacionamentos humanos, da  atividade acadêmica, da procura de soluções para as perguntas de fundo da existência, da busca de respostas satisfatórias pelo sentido e pelo lugar que no universo cabe à natureza, ao homem e a Deus. Alinham-se também nessa lógica situações limites como o senhor as passou no mês de janeiro e julho, e de modo especial, em setembro de 2008. Se corretamente entendidas e avaliadas, essas eventualidades que nos surpreenderam na nossa caminhada ao longo  dos anos, tinham o poder de depurar, selecionar,  descartar, dar valor ao que é verdadeiro e, desta forma fazer converter a nossa “Geschenkte Zeit” no coroamento prazeroso de muitos sonhos e numa lição proveitosa para os que continuam privando conosco.

E para não ficar apenas em afirmações genéricas,  vagas talvez, tentarei aprofundar um pouco a linha de reflexão esboçada. Parece-me que a grande mestra que é a vida nos propõe  três lições a serem aprendidas. A primeira. Nenhuma proposta teórica e metodológica por si só contem potencial suficiente para dar uma resposta final às questões realmente de fundo como são a origem e o sentido do universo, da natureza, do homem, e em meio a isso o lugar ou não lugar para Deus. A segunda. Além das abordagens convencionais pelo lado científico ou filosófico, duas outras aproximações não podem ser ignoradas: o conhecimento que nos é oferecido pela percepção, difusa, de alguma forma de natureza instintiva, intuitiva, tão importante na orientação da conduta do quotidiano das pessoas. A esses  níveis do conhecimento é preciso acrescentar, sob o protesto e a ira do racionalismo científico, o conhecimento teológico. A terceira não passa de uma conseqüência lógica das duas anteriores.  Ninguém é dono da verdade, melhor talvez, ninguém descobriu a Verdade, nem o cientista com suas teorias, métodos e técnicas mais sofisticadas, nem o filósofo com seus mergulhos nos meandros da natureza das coisas e dos fatos, nem o homem comum com a sua ciência intuitiva quase instintiva, nem o teólogo por mais certeza e convicção que lhe garante a fé. Mais do que nunca é verdadeiro o dito: Doctrina multiplex – Veritas una – As doutrinas são muitas – a Verdade é una, uma só ou, como diria Nicolau de Cusa: Ex partibus omnibus ellucet totum – Pelas partes vislumbra-se o Todo, ou ainda a Verdade é o Todo e só o Todo é a Verdade.

Quando se trata de explicar a natureza dos fatos e acontecimentos que dizem respeito ao homem e a tudo que o rodeia e envolve, estamos habituados a considerar apenas duas aproximações válidas: a abordagem pelo lado da Ciências Naturais e ou pelo lado das Ciências do Espírito. Acontece, porém, que se formos rastrear as veredas percorridas pelo conhecimento  desde que estamos de posse de dados confiáveis, uma coisa parece certa. A partir do momento em que, em alguma data remota e em algum lugar não conhecido da terra, faiscou pela primeira vez a centelha da inteligência reflexa e o homem se  fez homem, a pergunta pelo quando, o como e o porque da sua própria existência e do universo que o rodeava, fez parte das suas preocupações. Os fatos e fenômenos que acompanhavam a concepção, a gestação, o nascimento, o crescimento, o declínio e a morte da vida individual, colocaram o homem de então frente a incógnitas que pediam  explicações. O mesmo se pode afirmar das realidades que o rodeavam: os ciclos do ano, as fases da lua, a trajetória quotidiana do sol, a floresta misteriosa, a majestade das montanhas, o firmamento coberto de estrelas, os assustadores fenômenos da natureza como erupções de vulcões, a fúria das tempestades. Tudo isso reclamava explicações, sugeria razões de ser, sentidos e significados. E quais foram os instrumentos de que os pastores nômades, os agricultores, os caçadores, o pescadores e os coletores do neolítico dispunham. Não muito mais do que uma percepção intuitiva, com muita coisa próxima ao instinto, estimulando a capacidade reflexiva, alimentando a curiosidade e a procura de explicações. Foi em meio a esse panorama caracterizado por uma sobrevivência amparada num misto de estímulos instintivos, mas municiando também os potenciais do seu raciocínio reflexo, que o homem foi consolidando as bases do conhecimento. E conhecer não significa apenas ter certezas  matemáticas, demonstrações em laboratórios de análises químicas, observações microscópicas, testes em estações experimentais ou observações  com telescópicos orbitando no espaço. O conhecimento também não se limita aos resultados e às conclusões da lógica racional. O verdadeiro conhecimento é muito mais complexo. Ele busca como sempre buscou a sua legitimidade na satisfação da curiosidade, no atendimento às necessidades, na resposta aos questionamentos e na contribuição que é capaz de dar para a realização existencial do homem.

A premissa de que o conhecimento é fruto da busca do homem por caminhos que o levam a decifrar-se a si mesmo e ao mundo em que vive, faz concluir que  qualquer resposta neste sentido, é fruto de algum tipo de conhecimento. Tentemos identificar e caracterizar o que parecem ter sido e são ainda os diversos níveis do conhecimento.

O homem é um animal racional. Essa velha definição que nos foi passada quando arriscamos as primeiras incursões nos meandros das incógnitas da nossa espécie, continua ainda hoje sendo de grande utilidade para entendê-la. Na gênese, compreensão  e evolução do conhecimento o “animal” e o “racional” no homem ocupam importância igual.  Pela lógica da evolução, porém,  nos estágios mais próximos ao “animal” componentes não “racionais”, não “científicos”, determinam a natureza aparente  do conhecimento. Nem poderia ser de outra forma. Em primeiro lugar as realidades das quais procedem os estímulos e fornecem os elementos, a matéria prima para a construção do conhecimento, encontram-se no entorno ambiental em que o homem vive. Em segundo lugar a apropriação dessa “matéria prima” acontece via sentidos e no primeiro momento elaborada pela percepção instintiva  peculiar dos receptores. A nível animal a possibilidade de conhecer esgota-se nesse patamar. Por isso mesmo na se pode falar em conhecimento no verdadeiro sentido da palavra quando se analisa o comportamento de espécies animais. Em se tratando, porém, do homem, entra de imediato em ação a reflexão. A relação interativa do homem com o meio não se esgota  em  respostas instintivas, padronizadas para todos os indivíduos de uma espécie como reações que não ultrapassam o nível dos reflexos condicionados.

No caso do homem entram em ação simultaneamente os estímulos de natureza instintiva e o processamento pela capacidade reflexiva. Na medida em que entra em contato com as oportunidades, os  desafios e as incógnitas que encontra, a inteligência reflexa entra em ação. A construção do conhecimento começa. Nesse processo em que o  instintivo e o intuitivo se aliam ao racional para possibilitar o conhecimento, não se pode ignorar que o primeiro fornece o “o qualitativo”, o “substantivo” de que as coisas vêm acompanhadas, ou o valor em si das coisas, ou a própria natureza das coisas. À qualidade de que as coisas vêm revestidas pela própria natureza, soma-se a qualidade que o homem atribui a elas. E é exatamente essa “qualidade atribuída” que contribui de maneira decisiva na construção do conhecimento. E como as “qualidades atribuídas” diferem de indivíduo para indivíduo e de cultura para cultura, os perfis do conhecimento, são tantos quantos os sistemas construídos. Como exemplo universalmente conhecido  pode servir a água. Fazem parte das suas qualidades naturais os estados físicos que assume em níveis de temperaturas diferentes, sua importância na manutenção de qualquer tipo de vida, sua composição química e outras mais, independentemente da sua destinação concreta pelo homem. Mas devido exatamente à sua importância para a vida o homem, nas diversas época e nas mais diversas situações culturais, somou às qualidades naturais, qualidades atribuídas. A água de uma fonte brotando das entranhas da terra rejuvenesce, garante vida longa; a água benta nos rituais litúrgicos purifica, apaga pecados, cura enfermidades. Todos esses elementos e muitos mais entram na formação do corpo dos conhecimentos que o homem elaborou nas mais diversas circunstâncias temporais e espaciais. Em termos as mesmas observações são válidas para o fogo, a luz, as estrelas, o sol, os cometas, florestas, montanhas, vulcões, animais e plantas. Tanto o qualitativo como o quantitativo não podem ser ignorados quando se pretende acompanhar a gênese do conhecimento e compreender a sua razão de ser, seja ele profano ou religioso.

O “qualitativo” inerente ou atribuído às realidades que compõem o cenário em que o homem vive a sua história,  porém, representam apenas uma face da mesma moeda que é o conhecimento. Não resta dúvida de que essa perspectiva predomina e é determinante na fase que poderíamos chamar de “infantil” na historia do conhecimento. Carente ainda das indispensáveis observações, experimentações, métodos e equipamentos adequados, o homem valeu-se dos recursos de que a natureza o dotara: a observação, a comparação, a análise, a seleção, a experimentação, estimulando a curiosidade e a imaginação, a capacidade de intuir e atribuir significados, e assim, dar forma e coerência aos corpos do conhecimento, equivocadamente desqualificados como “primitivos”. Na medida, porém, em que o homem mergulhava nos meandros da natureza em sua volta e se dava conta da incógnita complexa que ele próprio era, crescia o desejo de entender o “como” tudo funcionava, e dessa forma, minorar a insegurança perante tantas incógnitas, e ao mesmo tempo, assumir o comando do seu destino. Ora esse passo significou uma reviravolta de proporções difíceis de dimensionar. De dependente do entorno em quase tudo o homem passa equipar-se com métodos e meios que o habilitaram progressivamente entender, prever e controlar a situação.  A partir daí o componente “quantitativo” assume importância cada vez maior na construção do conhecimento, até chegar o momento em que o racionalismo científico desqualifica tudo o que não é quantitativamente aferível, como “não conhecimento”, como “não científico”. Os únicos caminhos para se chegar a um conhecimento que merece esse nome são a filosofia de um lado e a ciência empírica do outro. Mas a exigência dos filósofos reclamando para si e seus métodos a condição de únicos capazes de produzir um conhecimento digno desse nome e, de outro lado, os cientistas reivindicando o mesmo para si e seus métodos, deu no que deu. Uma disputa inútil, prejudicial, e em não poucas casos, irracional. A prejudicada foi a produção do conhecimento, acompanhado de um séqüito de efeitos maléficos, tanto para a Filosofia quanto para a Ciência. Não é aqui o momento para entrarmos mais a fundo no detalhamento da situação criada por esse estado de coisas.

Mas para que as reflexões acima conduzidas a nível abstrato tornem a questão da produção do conhecimento mais palpável, permito-me recorrer a um exemplo que é tão antigo quanto a própria história do homem. A popularidade da Astrologia nunca perdeu o seu interesse. Mesmo todo o progresso da pesquisa científica e os resultados espetaculares no campo da física, química, biologia, biogenética, etc. não a ofuscaram. Pelo contrário. Sua cotação vem crescendo principalmente nas camadas populares e o seu prestígio entre pessoas cultuas e muito cultas está em alta. O termômetro são os horóscopos em veículos de comunicação destinados a  todos os públicos. A Astrologia constitui-se num dos exemplos mais emblemáticos de como o ponto de partida, a raiz, a base do conhecimento alimenta-se na síntese na qual entram elementos dados pela natureza, no caso os astros, necessidades materiais a serem atendidas, incógnitas a serem desvendadas, desafios existenciais a serem vencidos. Tudo entregue à capacidade reflexiva do homem termina por consolidar o corpo de conhecimentos da Astrologia. Como se pode concluir trata-se de um conhecimento que tem como preocupação central o elemento “qualitativo” na avaliação dos astros. A própria origem etimológica do termo já sinaliza para esse sentido. “Astron” - astro e “Logos” – essência, natureza, qualidade.

Como o homem, entretanto, além de dotado de instinto, de tendências naturais, de percepções, intuições, emoções,  sonhos e desejos, é portador também de uma inteligência reflexa, a síntese do corpo de conhecimentos que vai elaborando, conta com o concurso decisivo desse componente. Mais. A razão e a lógica insistem cada vez mais em obter resposta para o “como” , o “quanto” e o quando” e assim não deixar lacuna para a compreensão do todo que envolve o universo cósmico. À compreensão do “que” e o “para que”, elementos qualitativos, é preciso somar o “quantitativo” –“ o quando, o como e o quanto”, objeto da Astronomia – termo composto pelas palavras “Astron” e “Nomos” – número e por extensão, medida, massa ...

A lógica que preside o esforço do homem em tomar conhecimento, entender o que ocorre em seu derredor e de alguma forma prever e escolher caminhos e assim consolidar uma parceria com ele, com a finalidade de garantir a sobrevivência e a  realização existencial, nada mais é do que a via pela qual se consolida o conhecimento. Conhecimento no rigoroso sentido do conceito, portanto, só é possível quando se realiza uma explicação compreensiva, com o concurso de todas as formas de aproximação, limitadas ao potencial  de seus instrumentos teóricos e metodológicos.

Colocada a questão nessa perspectiva, quanto mais se recua na história, tanto menos “científico” e tanto menos “racional” se mostra  o conhecimento. Isso não significa, porém, que sua eficácia tenha sido menos importante e menos determinante na função do que lhe cabia na vida individual e coletiva. Aliás a importância do conhecimento que com certo desprezo, com ar de superioridade e até com certa complacência, não poucos rotulam de “pré-científico”, é muito maior do que parece ou se quer admitir. Basta percorrer qualquer um dos corpos de conhecimento consolidados durante milênios pelas culturas do oriente, com destaque para a chinesa, japonesa, indu, coreana e outras mais. Mesmo Ernst Bloch, um dos mais proeminentes pensadores ocidentais do século XIX, despertou para a idéia-motriz que impulsionou e norteou todo o seu pensamento, nos romances de aventura de Karl May, descrevendo os índios dos Estados Unidos. Aquela paisagem intocada de pradarias sem fim, povoadas por índios caçando búfalos em total liberdade, lhe forneceu o conceito-chave de todo o seu pensamento: “Heimat” – “querência”, cuja realização só é possível onde reina a liberdade e a harmonia. E deixando de lado o racionalismo científico, o rigor da lógica aristotélico-tomista e a doutrina teológica do Deus Criador, Bloch colocou “a matéria animada” orientada para um objetivo final por ele denominado de “Ideal do Bem”.  Chegado ao término do processo evolutivo “o bem como tal” está realizado. Paul Heinz Koesters resumiu assim o pensamento de Bloch:

No momento em que a matéria tiver concluído o processo da evolução ao nível em que se encontra de momento, o “bem como tal” estará concretizado. O cosmos, o nosso mundo,  os animais e os homens, todos feitos de matéria, ao final do processo estarão reconciliados. Reinará então a situação para a qual  tudo - as pedras como o homem, as estrelas como as moscas na parede – convergem (sehnen sich) consciente ou inconscientemente: a Harmonia. Neste momento finalmente o cosmos inteiro tornou-se Heimat -  Querência. [1] 

Essa abertura para uma cosmovisão que percebe a unidade nas partes, o todo na diversidade, a verdade na multiplicidade das doutrinas, bate de frente na contra-mão com a pós-modernidade. Para ela o que interessa são as partes. Nos laboratórios dos cientistas, nos gabinetes dos analistas da sociedade e da economia, nas redações dos meios de comunicação, nos discursos e manifestações dos  políticos e administradores, nas preocupações dos governantes, não há lugar para o Todo e a Verdade.  O que decide são os fatos do momento, as ocorrências da hora, a oportunidade senão o puro oportunismo. Não há nenhuma, ou no máximo, pouca preocupação em buscar as raízes históricas, o significado mais profundo dos acontecimentos. O que importa é o impacto do momento, o barulho, o estardalhaço, a dissonância. A preocupação por paradigmas, balizas norteadoras e princípios que presidem as ações dos indivíduos e das coletividades, senão ignorados acham-se em cotação baixa.

O alerta contra essa opção generalizada para o comportamento das massas, vem sendo dado exatamente por representantes de áreas científicas nas quais os métodos e instrumentos de investigação avançaram mais em especialização. Por enquanto trata-se de vozes isoladas. Mas o que autoriza a esperança de uma reversão do quadro acima descrito, é a autoridade desses cientistas. Um deles é nada menos do que Francis Collins,  diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapeamento do código genético do homem. O próprio titulo da sua obra, “A Linguagem de Deus”, sinaliza para o rompimento  dos paradigmas e dogmas intocáveis do racionalismo científico. A certa altura das suas reflexões o dr. Collins nos deixa um parágrafo que convida a pensar, a refletir e a meditar:

Ironicamente, outro motivo importante para a visibilidade da posição do Bio-logos [2] é justamente a harmonia que esta cria entre as facões beligerantes. Como sociedade, não parecemos atraídos pela harmonia, mas pelo conflito. Em parte, a culpa é dos meios de comunicação; entretanto, eles apenas atendem aos desejos do público. Por meio dos telejornais, você provavelmente fica sabendo de colisões envolvendo inúmeros carros, furacões destrutivos, crimes violentos, divórcios conturbados de celebridades e, sim, debates ásperos entre professores sobre ensinar a teoria da evolução. Provavelmente você não ouvirá nada a respeito de reuniões de grupos da vizinhança de credos diferentes para tentar resolver os problemas da comunidade, nem sobre a transformação de Anthony Flew, que por toda a vida foi ateu e passou a acreditar em Deus, e com certeza nada sobre a evolução teísta ou sobre o arco-íris duplo avistado esta tarde sobre a cidade. Adoramos conflito e discórdia, e, quanto mais cruel, melhor. No meio acadêmico, música e arte produzidas com seriedade por seus membros parecem festejar sua dificuldade de ser ouvidas e apreciadas. A harmonia é chata. [3]

E os  noticiários confirmam cada vez mais a preocupação do dr. Collins. Enquanto redijo essas linhas uma fatia predominante dos noticiários de todos os meios de comunicação do País, volta-se para o julgamento do casal Nardoni, acusado de ter asfixiado e jogada a filha do sexto andar de um prédio em São Paulo. A movimentação da policia, o translado dos acusados da prisão para o recinto do julgamento, o aparato do tribunal,  o frenesi das rádios e canais de televisão, as manchetes de primeira página dos jornais, o acotovelar-se dos curiosos, as opiniões emocionadas e emocionais, beirando à histeria dos entrevistados nas ruas, as fisionomias de apocalipse de alguns apresentadores de telejornais, envolve o caso num cenário  no qual um misto de sadismo, masoquismo e prazer mórbido comandam a cacofonia. Na mesma direção e no mesmo nível de clima foi anunciado um acidente provocado, pelo que se presume, por duas camionetas praticando racha numa das rodovias mais movimentadas do Rio Grande do Sul. Uma delas perdeu o controle e o radialista escolhendo os termos foi descrevendo: “o motorista perdeu o controle do veículo, atravessou o canteiro central da rodovia, derrubou todas as placas de sinalização que encontrou pela frente e despedaçou um carro que vinha na direção contrária, matndo as três pessoas que estavam nele, a si próprio e o seu caroneiro. Na seqüência das notícias do começo do dia constam ainda mortes por assassinato, assaltos, etc. etc. Nenhuma notícia que fosse capaz de munir as pessoas com um pensamento positivo para enfrentar a rotina do novo dia. E ai daquele que se atreve a lembrar aos comunicadores que já estaria na hora de baixar um pouco o volume das trombetas que saciam a curiosidade do povo avesso à harmonia, ao sossego ao lado humano da sociedade. A resposta vem pronta e cortante: “é o público que assim o exige”. Temos que concordar com o dr. Collins: “A harmonia é chata!”

Outra autoridade reconhecida como um dos biólogos mundialmente mais respeitados é o dr. Edward Wilson, há cinco décadas professor e pesquisador na universidade de Harvard. Em 1978 ele publicou o livro On Human Nature (Cambridge Harvard Univesity Press, 1978). Nele faz uma observação que o dr. Collins classificou com “palavra forte” [4]. Wilson, citado por Collins escreveu naquela obra:

A arma decisiva apreciada pelo naturalismo científico virá com sua capacidade de explicar a religião tradicional, sua competição entre lideres, como um fenômeno totalmente material. Não é provável que a Teologia sobreviva como uma disciplina intelectual independente. [5]

Em 2006 Wilson publicou um novo livro com o titulo “The Creation – An appeal to save live  on Earth”. Essa obra revela uma radical mudança de posição no seu autor. O livro em forma de carta foi dirigido para um pastor evangélico, convidando-o para um esforço em comum entre a ciência e a teologia a fim de  salvar a vida no planeta terra. Não se notam mais vestígios das “palavras fortes” da obra de trinta anos atrás. Pelo contrário o ilustre professor e pesquisador de Harvard faz um convite, melhor talvez, um apelo a um pastor, para de mãos dadas, Ciência, Religião e  Teologia, resolverem as intrincadas questões que envolvem o binômio Homem-Natureza. Rendeu-se, portanto, à evidência de que as abordagens unilaterais não bastam para entender e consequentemente para enfrentar com sucesso as grandes questões que dizem respeito à relação do Homem e a Natureza. Eis o resumo de sua posição e o apelo à colaboração:

O que devemos fazer? Esquecer as diferenças, digo eu. Encontramo-nos no terreno comum. Isso talvez não seja tão difícil com parece à primeira vista. Pensando bem, nossas diferenças metafísicas tem um efeito notavelmente pequeno sobre a conduta da sua vida e da minha. Minha suposição é de que somos ambos pessoas éticas, patrióticas e altruístas mais ou menos no mesmo grau. Somos produtos de uma civilização que surgiu não só da religião como igualmente do Iluminismo fundamentado na ciência. De boa vontade nós dois serviríamos no mesmo júri, lutaríamos nas mesmas guerras, tentaríamos, com a mesma intensidade, santificar  a vida humana, compartilhamos o amor pela Criação. [6]

Essa mesma convicção de que está na hora e deixar de lado as reivindicações dos donos da verdade, tanto do lado das ciências do espírito como das ciências naturais, é partilhada por muitos outros cientistas. Eles fundaram até uma associação, “American Scientific Affiliation”.

Os gigantescos avanços dos conhecimentos nos campos da química, física,  astronomia,  biogenética e outros, tornados possíveis por um complexo e sofisticado arsenal de tecnologias de investigação, vem multiplicando as manifestações de reconhecidas autoridades científicas, sinalizando para uma convergência no entendimento das questões de fundo. Pondo de lado uma linguagem feita de conceitos completamente fora do alcance da compreensão dos especialistas, nota-se um sincero esforço para tornar as conquistas científicas compreensíveis fora dos laboratórios. Para o grande público conceitos como Big Bang, fóton, elétron, quark, etc., etc. localizam-se fora da capacidade de compreensão. Para os cientistas o desvendar progressivo das incógnitas da natureza, abre o caminho para entender o comportamento dos fenômenos naturais, a inter-relação entre eles e o papel que lhes cabe nos níveis superiores de complexificação nos quais se inserem. Passo a passo a própria ciência e representantes paradigmáticos do seu meio formulam alternativas de interpretação nada convencionais, melhor talvez, impensáveis há não muitas décadas atrás. A convicção e o toque de emoção que se percebe  nas entrelinhas permite-me mais um testemunho do dr. Francis Collins:

Apesar de eu, no fim das contas, passar da ciência física à biologia, essa experiência de originar equações universais tão simples e belas, que descrevem  a realidade do mundo natural, deixou em mim uma impressão profunda, em especial porque o resultado definitivo tinha um grande apela estético. Isso levantou a primeira de várias perguntas filosóficas acerca da natureza do universo físico. Porque a matéria se comportaria dessa maneira? Citando a frase de Eugene Wigner, qual seria a explicação para a “inexplicável eficiência da matemática?”

Não seria nada alem de um feliz acidente ou referencia a alguma intuição profunda na  natureza da realidade? Para quem deseja aceitar a possibilidade dos sobrenatural, seria isso também uma intuição na mente de Deus? Teriam Einstein, Heisenberg e outros encontrado o divino?

Depois Collins cita ainda “Uma Breve História do Tempo” de Stephen Hawking, e como observa, “em geral não dado a contemplações metafísicas”:

Então, poderíamos todos nós, filósofos, cientistas e pessoas comuns, participar da discussão sobre a questão de o  porque de nós e o universo existimos. E encontrarmos uma resposta para isso, será o triunfo definitivo da razão humana – pois, então conheceremos a mente de Deus”. Seriam essas descrições matemáticas da realidade indicações de alguma inteligência maior? Seria a matemática junto com o DNA, uma outra linguagem de Deus? [7]

Interrogações, interrogações e mais interrogações, perguntas e mais perguntas. E destinam-se a responder a que? Resumindo, externam a ânsia do homem em saber como surgiu o universo cósmico e nele o mundo que nos rodeia; como surgiu o homem, o que é o homem, qual é a sua razão de ser e qual o seu destino; qual é o lugar ou não lugar de Deus neste cenário de tantas incógnitas. Encontrar enfim a Verdade na multiplicidade das doutrinas, eis o grande desafio.




[1] KOESTERS, Paul Heinz. Deutschland deine Denker – Geschichten von Philosophen und Ideen die unsere Welt bewegen. Verag Gruner+Jahr AG & Co, Hamburg, 4 Auflage, 1981, p. 300
[2] O próprio dr. Collins explica o que entende por BIOLOGOS. “Minha modesta  proposta  é rebatizar  a evolução teísta como Bios pelo Logos, ou simplesmente Biologos. Os acadêmicos reconhecerão o “bios” como “vida” em grego e “logos” como “palavra” em grego. Para muitos que acreditam em Deus, “Verbo”, sinônimo de “palavra”, também é sinônimo de “Deus”, como expresso de maneira impressionante e poética nas primeiras e majestosas linhas do evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus” (João 1.1. Biologos expressa a crença que Deus é a fonte de toda a vida, e a vida expressa a vontade de Deus”.
[3] COLLINS, Francis. A linguagem de Deus – um cientista apresenta evidências de que Ele existe. Trad. de Giorgio Capelli, Editora Gente, 6ª edição, São Paulo 2007, p. 209-210.
[4] COLINS, Francis. A llinguagem de Deus. Op. Cit. p. 169
[5] WILSON, E. O. Citado por Francis Collins in A Linguagem e Desu.Op. Cit. p. 169
[6] WILAON, E. O. A Criação – como salvar a vida na terra. Trad. de Isa Maria Lando, Copanhia ds letras, São Paulo, p. 188.
[7] COLLINS, Francis. A Linguagem de Deus. Op. Cit. p. 70