Reflexões Avulsas - Aniversário do Parque dos Aparados da Serra

Na sua obra mais conhecida “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”, publicada pela Imprensa Oficial do Estado em 1942, portanto há mais de 70 anos, o Pe. Balduino Rambo deixou registrada a sua percepção sobre o uso da Natureza pelo homem, os seus limites, além de propostas concretas, cientificamente fundamentadas, para preservar o que ainda subsiste e reparar os danos já causados. A questão ambiental que hoje faz parte das preocupações de qualquer cidadão minimamente atento aos acontecimentos em sua volta, naquela época, final da década de 1930 e começos de 1940, não constava na pauta dos fórums em que se discutiam as grandes questões regionais e nacionais. Estava em pleno avanço a abertura de novas fronteiras de colonização no norte e noroeste do Rio Grande do Sul, no Centro-Oeste de Santa Catarina e intactos estavam os grandes complexos de florestas do oeste do Paraná. Na imaginação do   homem comum do sul do Brasil, o Matogrosso localizava-se no outro lado da lua. Aliás na época o Pe. Rambo escreveu um conto com o sugestivo titulo “Três Semanas na Lua”.  tendo como fundo as primeiras tentativas de colonização no Matogrosso do Norte pela Transportadora Meyer, às margens do Xingu na década de 1950. Nos campos da Fronteira e nos campos de Cima da Serra, a presença do  homem e sua interferência no meio limitava-se às sedes das estâncias e rebanhos de gado multiplicando-se e engordando nas pastagens naturais. Os Aparados da Serra exibiam ainda o seu encanto e sua grandiosidade original, com seus canyons, arroios de montanha cristalinos, suas cascatas e, principalmente, as florestas cobrindo a borda dos precipícios, descendo pelas suas encostas até a planície perto do oceano. E lá no alto milhões de araucárias seculares, copa encostando em copa, formavam um imenso guarda-sol, quinze ou mais metros acima do mato branco. Com o formato típico dos seus galhos erguidos pareciam em atitude de oração, como costumava dizer o escritor Sérgio Farina.  No verão de 1938  o Pe Rambo sobrevoou o Estado todo, percorrendo 60.000 quilômetros, em missão encomendada pelo  Serviço Geográfico do Exército. Na medida em que as paisagens  que compõem a Fisionomia do Rio Grande do Sul, deslizavam, a menos de mil metros de altura, sob  as asas do pequeno monomotor “Master Brasília, do 3º Regimento de Aviadores, da base aérea de Canos, nasceu uma relação existencial de admiração, respeito, amor e veneração, entre ele e os panoramas que admirava lá do alto. Daí para frente consolidou-se nele o compromisso de, na  medida do possível, dar a sua contribuição como botânico, professor universitário e diretor do Museu de História Natural do Estado, em favor da  preservação do possível e na recuperação do já danificado, “para o bem público, o lazer e o recreio do povo e a higiene ambiental”. As iniciativas concretas que propôs na “Fisionomia do Rio Grande do Sul” foram: a proteção a monumentos naturais;  -  a proteção a espécies botânicas e zoológicas a perigo de extinção;  -  a  harmonização das obras humanas com o meio ambiente;  -  a criação de parques Naturais. A ideia da criação de Parques tornou-se para ele uma quase obsessão, que foi amadurecendo e consolidando-se e tomando contornos definidos, a partir da suas permanência de um mês em Cambará em 1948 e depois de sua visita aos grandes parques norte-americanos em 1956. Ao mesmo tempo as seguidas visitas ao planalto, de preferência nas redondezas de Cambará com seu ícone, o canyon do Taimbézinho, o Pe. Rambo decidiu que ele deveria ser o epicentro do ambicioso projeto do parque dos Aparados da Serra. Aquela paisagem natural da qual ele dizia “se tenho uma pátria na terra esta encontra-se no planalto na sombra dos pinheirais”, deveria ser o promissor começo de outras tantas iniciativas de proteção. Até o final da década de 1950 e setembro de  1961, quando faleceu inesperadamente com apenas 56 anos, o Pe. Rambo empenhou-se, além, do parque em Cambará, na criação da Fundação Zoobotânica, Jardim Botânico e o Zoológico de Sapucaia do Sul. A ideia-força e o esboço das ações em favor da preservação e recuperação do meio ambiente, encontram-se na “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, sua obra prima.

“O homem filho desta terra,  que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos de sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria. Enquanto o espaço é suficiente e a densidade demográfica pequena, não se tornam muito conscientes tais sentimentos; mas no momento em que as necessidades  brutais da vida forçam a interferir sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta a dor perante a destruição de suas feições naturais, e o desejo de as conservar, senão no conjunto, pelo menos em alguns lugares e nos traços mais característicos.

Assim no curso de todas culturas humanas, mais cede ou mais tarde, surgem as tendências de proteção ativa da natureza; um povo que se descuidasse deste elemento, seria falto dum requisito essencial da verdadeira cultura humana total, e indigno da terra, com que a pródiga mão do Criador o presenteou.

Sob a rubrica de proteção à natureza vai a conservação dos monumentos  naturais, das espécies botânicas e zoológicas periclitantes, das paisagens típicas e originais – tudo isso enquanto as necessidades  concretas da sociedade humana o permitirem. A proteção à natureza, em primeiro lugar está  a serviço das ciências naturais, antropológicas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária ou inconsiderada dos tesouros de beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da terra, torna-se um aliado de valor da higiene e  pedagogia sociais e um adjutório indispensável da educação nacional.

O Parque dos Aparados da Serra
As primeiras manifestações que demonstram a preocupação pelo meio ambiente no Rio Grande do Sul, não foram iniciativas dos ambientalistas do final do século XX e do começo do século XXI. Datam do final do século XIX. Em 1889 o historiador e escritor Pe. Ambros Schupp publicou na revista alemã “Alte und neue Welt” uma longa matéria, alertando que o desmatamento no vale do Caí atingira um nível preocupante. Oito anos mais tarde foi fundada em Bom Jardim, hoje Ivoti, pelo Pe. Peter Gasper e o sr. Alfred Grohmann, uma associação de proteção à Natureza, o “Waldschutvereien”, com a proposta de incentivar no vale do rio dos Sinos e do Caí, o reflorestamento com árvores nativas, louros, cangeranas e araucárias além de espécies européias de fácil adaptação na região, com destaque para o carvalho. No começo do século XX o Pe. Amstad apresentou num congresso dos católicos um projeto de reflorestamento com espécies nativas na meia encosta dos vales do Caí e Sinos. No começo da década de 1930, a Sociedade União Popular, numa das suas assembleias, apresentou para os seus associados o projeto de uma cooperativa de reflorestamento a ser implantada na região de São José do Hortêncio. Embora nenhuma dessas iniciativas levasse a grandes resultados práticos, pelo fato de terem sido prematuras, demonstram, contudo, que a preocupação entre nós pelo meio ambiente vem  de mais de um século para cá.

As propostas de preservação ambiental que acabamos de mencionar, foram todas de natureza prática, com o objetivo de alertar contra o desmatamento irrestrito e a reposição da cobertura vegetal por meio do reflorestamento. Foi então que em 1942 saiu a primeira edição da “Fisionomia do Rio Grande do Sul”, do Pe. Balduino  Rambo, com uma proposta abrangente,  filosófica e cientificamente fundamentada, tendo como objetivo  alertar para o aspecto prático, cultural, pedagógico e ético da relação do homem com a Natureza. Destaco aqui o fato de que a relação Homem-Natureza tem tudo a ver com ética e moral pois, os solos, a água, as florestas, a vegetação em geral, o ar, a atmosfera, o clima e outros mais, são bens e recursos comuns. No momento em que o uso e a posse irracionais os priva da característica de bens comuns, entra-se em conflito com os princípios da ética natural.

Mas não é o momento nem o lugar para aprofundar essa temática de extrema importância para quem se ocupa com a questão ambiental. O aniversário do Parque dos Aparados da Serra sugere, antes de mais nada, que se recorde a sua história e os artífices que se empenharam para que se tornasse realidade. Do lado administrativo e legal, coube ao major Euclides  Triches, Secretário de Obras Públicas do Estado, proceder a desapropriação da área, tendo como núcleo central o Taimbezinho, em 1957 e  o personagem sem o qual essa obra tão importante, não se teria concretizado, pelo menos naquele momento, foi o Pe. Balduino Rambo. Para ele os parques são áreas maiores nos quais a natureza original fica totalmente preservada, aumentando-lhe os atrativos com o acréscimo discreto de elementos pertinentes quando for conveniente. Cita como exemples duas dezenas de parques nos diversos continentes com as respectivas superfícies, que dão  uma ideia do que significa o termo “áreas maiores”. Os que mais o impressionaram foram os parques dos Estados Unidos, tanto pelo número, quanto pelo tamanho. Em 1942 havia naquele pais nada menos do que 50 parques e reservas naturais. O Mount McKinley no Alasca mede 6800 quilômetros de superfície; o de Yelowstone 8800; Yosemite 2900. Na Argentina o parque “Suissa Argentina”, mede 7850 quilômetros quadrados. No Brasil havia na época dois desses parques, o Itatiaia e o Iguassu. O Pe. Rambo chama atenção na Fisionomia do Rio Grande do Sul,  que as iniciativas mais urgentes visando criar parques são as regiões cobertas de mata virgem  e alerta:

“O mato riograndense está em grave perigo! E não são só as derrubadas da agricultura, é também a indústria madeireira, que, mais tempo, menos tempo despojará as selvas do Uruguai dos seus gigantes mais expressivos, e acabará por transformar os soberbos pinhais em tristes fachinais. Ora é exatamente  no planalto, que a riqueza de formas insinua a criação de reservas naturais. A nosso ver, seria indispensável conservar duas regiões: um trecho da selva virgem do Alto Uruguai e os Aparados”.

Felizmente o diagnóstico e o prognóstico do Pe. Rambo teve, em parte pelo menos,  a devida repercussão. Acontece que ele não se limitou a fazer diagnósticos e formular prognósticos. Valeu-se do peso de sua autoridade como catedrático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como diretor do Museu de História Natural do Estado e como cientista de reconhecimento nacional e internacional, para implementar as suas propostas. Orgulhamo-nos hoje do Parque do Quarita no Alto Uruguai e do Parque dos Aparados da Serra, tendo o Taimbezinho como ponto de irradiação. Sem favor nenhum o nosso parque cujo aniversário  comemoramos é obra sua, tanto na concepção, quanto na implementação e consolidação. É verdade que nos sonhos do Pe. Rambo o parque deveria incorporar os Aparados desde o extremo Sul, em Osório, Santo Antônio da Patrulha e Rolante, até São Joaquim e o Campo dos Padres em Santa Catarina. Ao declarar francamente a sua predileção pelos Aparados como área para um parque, argumentou:

“Sobre os Aparados, nada precisamos acrescentar; sua beleza grandiosa recomenda-se por si só. Além disso o caso é muito mais fácil do que os matos do Uruguai: as terras quebradas e pouco férteis dos Aparados são impróprias para a  agricultura; as porções de campo que fazem parte facilmente achariam substituto em outras partes. A situação  fronteiriça com Santa Catarina chamaria ao plano para a nobre competição de ambos os estados da União, na realização duma empresa verdadeiramente  nacional. Sobre os trechos a serem incluídos, não nos queremos estender; em todo o caso, o vale do Maquiné superior, o Taimbesinho, a Serra Branca não poderiam faltar”. E concluiu

“Ali nos mirantes mais altos do Rio Grande do Sul,  com as forças milenares da erosão a trabalhar diante dos olhos, com os temerosos abismos dos canyons aos pés, com o pinhal, a mata branca e o campo, tão riograndenses, em derredor, com o oceano no horizonte, as gerações do futuro nos hão de agradecer a piedade e a reverência, com que conservamos as mais grandiosas paisagens da nossa terra”.

Em janeiro e fevereiro de 1948, o  Pe. Rambo foi conhecer por terra e em  detalhe o panorama que descreveu na “Fisionomia do Rio Grande do Sul” e até então lhe era familiar pelo sobrevôo de 1938. Num diário de mais de 100 páginas relata as experiências daquele mês de intimidade e solidão que viveu na natureza quase intacta nas bordas dos Aparados, nas redondezas de Cambará. Renato Dalto, autor do texto comemorativo do centenário do nascimento do Pe. Rambo. “Aparados da Serra – Na Trilha o Pe. Rambo, foi de uma rara  felicidade ao resumir a relação existencial, afetiva e mística, consolidada entre o padre-cientista e aquele planalto único.

“Foi do céu uma das primeiras visões que Balduino Rambo teve daqueles penhascos, das paredes crispadas, dos abismos. Viu as águas caindo e comparou-as a faixas de prata, as matas silenciosas de pinheiros, a selva virgem. Isso aconteceu em 1938, quando percorreu o Rio Grande do Sul de avião e observou, lá de cima, o relevo dos campos e serras, um mapa desenhado onde se juntavam, ao longe, terra e céu. Essa união ou  dicotomia entre as coisas terrenas e celestes, esse embate permanente entre as coisas do corpo e do espírito permearam toda a sua vida. Talvez explique um pouco o sentimento que nutria pela região do planalto e especialmente, pelos Aparados da Serra. Ali, o maior símbolo da floresta é a araucária.  Vista de baixo par cima, os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar o olhar em direção à terra para ver que há raízes fortes encravadas no chão. Rambo costumava dizer que, neste lugar, à sombra dessas árvores gigantes, era sua pátria no mundo. Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para entender Deus”.

Concluindo o Diário do mês que passou na região, o Pe Rambo anotou  no dia 17 de fevereiro de 1948,

“Nada dispõe mais para a reflexão do que estas caminhadas pela neblina, e estas noites com seu leve prurido de chuva à janela e as gotas estalando desde as árvores.  Liberta-se então a alma dos fogos fátuos do dia resplandecente, fecham-se todas as portas e silenciosamente penetra, como que tateando, em seu mundo mais íntimo, isto é, no reino do ser, envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes perdem-se aos poucos em seus ecos e migram através desta terra espiritual carregada de pressentimentos. Alguém caminha pela névoa e pela noite, Seus passos são  tão leves como o murmurar da neblina. E este Alguém que é único, chama meu nome nesta terra solitária.

A configuração singular da orla oriental é constituída pela passagem ou mais exatamente pela vista panorâmica para as distâncias mais longínquas, pelas escarpas bruscas das formas perto da planície e, de modo especial, pela névoa perenemente em efervescência.

Pinturas da natureza como as da garganta da Pedra Branca apenas ocorrem um vez na bela terra de Deus. Quase se poderia chamar a este quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas que troam, de névoas efervescentes e trovoadas que uivam, de mata silenciosa e penhascos altos, cheios de saliências de rochas, uma pintura  imperfeita, se ela não fosse mais do que isso. É que se trata realmente de uma construção gigantesca de força e simplicidade, e de um acontecer, que nunca pára de rolar para frente. Alguém mora nesses abismos que sussurram, e Alguém vigia nessa torre de observação solitária. Ele chama o eco, apascenta a névoa e nos escolhos solitários brinca com o raio e o trovão.
A vista para a ampla planície, os lagos brilham e o oceano que brame, formam um dos ulteriores elementos desta paisagem. Seja a visão externa pelos portões de rocha das gargantas estreitas, seja um olhar desimpedido da parede anterior, sempre se assemelha uma tal contemplação a um pressentimento de distâncias infinitas.  A sensação predominante é a da preeminência sobre o vapor, a poeira, o calor e a fastidiosa  multidão humana. Rochas cor de cinza, mata verde, água que murmura e correntes estagnadas, amplas planícies e nuvens que migram e, por fim, o oceano insondável. Também isso é solidão da alma com seu Deus.  De fato não é assim que a alma deva mergulhar primeiro em névoas e na noite, para se sentir solitária com  o mistério de Deus.  O hálito, o espírito de deus sopra em toda a parte. Quem tiver erguido a sua alma na solidão de Deus, a esse acompanha a própria solidão de Deus para o meio da multidão do povo insano.

Nunca mais hei de esquecer a minha despedida da orla oriental. Permiti a meu cavalo avançar pelo campo florido como lhe agradava. Atrás de mim borbulhavam as névoas condensadas, subindo dos precipícios e rolando pelo campo. Um verdadeiro rolar põe-se em movimento e me persegue e com ele um hálito frio rodou sobre mim e me envolveu. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros.

Depois daquela temporada em Cambará e arredores em 1948, o cenário do Planalto e os Aparados da Serra, transformaram-se na paixão maior do Pe Rambo e sua preservação, pelo menos em parte, uma obsessão. Depois da aquisição de um Jeep, sobra da Segunda Guerra Mundial e com a constante melhoria das estradas, suas visitas ao Planalto e os Aparados, tornaram-se mais fáceis e mais frequentes.  Fazia questão de levar  botânicos americanos que o visitaram durante a década de 1950, para conhecerem aquelas paisagens únicas. Em seu diário conta que um deles não se cansava de mergulhar  o rosto na água gelada e cristalina dos arroios de montanha e bebê-la com vontade. Em 1954 acompanhei-o pela primeira vez até o Taimbezinho, em fevereiro de 1958 a segunda e fevereiro de 1959 a terceira.  E 1956, a convite do governo dos Estados Unidos da América, o Pe. Rambo passou três meses visitando universidades, museus, centros de pesquisa e, principalmente os grandes parques e reservas naturais daquele país.  A peregrinação pelos grandes parques naturais do oeste dos Estados Unidos, amadureceu nele a decisão de concretizar algo semelhante na sua volta ao Brasil. Percebeu nos parques que visitava o modelo que contemplava todos os requisitos que, a seu ver, um parque deviria oferecer: deveriam ser ambientes de recreio e lazer, também  para as pessoas simples, de poucos recursos, como operários de fábrica, agricultores, pequenos empreendedores, professores e alunos de colégios e universidades, donas de casa, etc. etc. Deveriam oferecer oportunidade para os visitantes informar-se sobre a fauna, a flora, a geologia e a história da região. Professores universitários em férias organizavam sessões noturnas com  palestras e ilustrações sobre esses aspectos dos parques, transformando-os em universidades ao ar livre. Dezenas de estudantes universitários trabalhavam nos restaurantes, alojamentos e pousadas, garantindo os recursos para custear os estudos e, ao mesmo, tempo curtindo férias baratas no ambiente sadio dos parques. Ele próprio resumiu em poucas linhas o seu ideal de parque.

Desde que voltei da América, empenhei-me que, também no Brasil, se implantassem mais parques nacionais. Até agora dispomos somente de dois, um nas terras montanhosas do Itatiaia e outro nas Cataratas do Iguassu. Se tudo correr bem, teremos, em breve, um terceiro nas escarpas orientais  dos Aparados da Serra, com o Itaimbezinho como núcleo inicial. O parque deve estar a serviço da proteção da natureza e do recreio do povo.  O rico que aparecer, deve ser obrigado a viver com a mesma simplicidade que o operário e o colono. As pessoas que não conseguem dispensar o hotel caro, o rádio, a televisão, a dança e o jogo, que fiquem onde tudo isso está disponível de qualquer forma. Em nenhum parque jamais escutei um rádio berrando, nem observei um aparelho de televisão, nem percebi musica  de dança, nem presenciei chás dançantes. De maneira alguma quero afirmar que  o americano médio é melhor do que nós. Uma coisa é certa. Ele tem mais compreensão, mais decência e mais respeito perante a beleza e tranquilidade da natureza criada por Deus.

Cabe aqui a reflexão de Eward Wilson, um dos mais respeitados entomólogos, há mais de 50 anos professor na universidade de Harvard. Observe-se que Rambo era jesuíta que colocava com pressuposto a natureza como obra da criação de Deus, ao passo que Wilson esforça-se para explicar o universo e a natureza sob odos os seus aspectos como  resultado da evolução natural. É surpreendente que o cientista crente  na criação e o cientista que durante bom tempo de sua vida, opôs-se ostensivamente recorrer a pressupostos de natureza não científica, coincidem na visão da natureza.

A natureza humana é mais profunda e mais ampla do que os inventos artificiais de qualquer cultura existente. As raízes espirituais do Homo sapiens se estendem até as profundezas do mundo natural, por meio de canais de envolvimento  mental que ainda hoje permanecem, em geral, desconhecidos. Nosso pleno potencial não será atingido sem que compreendamos a origem  e portanto, o significado das qualidades estéticas e religiosas que nos tornam inefavelmente humanos.
Não há dúvida de que muitas pessoas parecem contentar-se  em viver inteiramente dentro desses ecossistemas sintéticos. No entanto, também os animais domésticos se contentam, até mesmo nos habitats grosseiramente  anormais em que nós os criamos. Isso, no meu modo de pensar é uma perversão. Não é da natureza dos seres humanos  se tornar cabeças de gado em pastagens aperfeiçoadas. Cada pessoa merece ter a opção de entrar e sair com facilidade desse mundo complexo e primário que nos deu à luz. Precisamos de liberdade para vagar por terras que não sejam propriedade de ninguém, mas protegidas por todos, terras cujo horizonte imutável é o mesmo que limitava o mundo dos nossos ancestrais milenares. Apenas onde ainda resta um pouco do Éden, pujante de seres vivos independentes de nós, é possível experimentar o deslumbramento que deu força à psique humana. (Edward Wilson, a
c Criação, p. 20-21)

Deve-se à visão e ao empenho do Pe. Rambo que os amantes da natureza dispõem hoje do núcleo inicial do Parque dos Aparados da Serra. Muito antes que se organizassem movimentos em favor da preservação do meio ambiente, motivados por todos os tipos e matizes de interesses, discutíveis ou não. Muitas motivações  são inspiradas no nobre zelo da preservação da natureza. Trata-se de um amor puro e simples por essa “mãe e pátria” como ele a chamou, ou então pela consciência de que a “a natureza subsiste sem o homem, mas o homem não subsiste sem a natureza”. Na sua opinião, os parques justificam-se quando cumprem a tripla finalidade de preservar a fisionomia natural na sua forma original, de oferecer um ambiente tranquilo e sadio para que o homem, também o homem comum, encontre as condições para refazer as energias gastas depois de uma jornada de trabalhos e preocupações e de proporcionar a jovens, adultos e idosos ocasião para se informarem e instruírem sobre o significado existencial da Natureza.  Longe da zoeira do quotidiano dos centros urbanos, longe da massas humanas ululando e acotovelando-se nos shopings, longe dos cenários em que se rouba, assalta, mata, corrompe e onde o vale tudo tem a última palavra e os homens devoram-se mutuamente como lobos, o parque deve oferecer ambiente para curtir um pouco de paz, de estar consigo mesmo, de  saborear a harmonia e a sinfonia da Natureza. Que o nosso parque dos Aparados da Serra faça o papel de uma escola, de uma universidade ao ar livre, onde os visitantes de todas as idades, de todos os níveis de instrução, aprendam a ler e a entender os segredos que a “mãe e pátria Natureza” tem a revelar pois, parafraseando o Pe. Rambo em seu diário depois de uma caminhada pelas floresta de gigantes no Parque das Sequóias nos Estados Unidos em 1956:


 “Toda a simbologia,  todo o encanto e todo o fascínio que envolve as árvores, as montanhas, os precipícios, os rios, os arroios, as cascatas, os nevoeiros, as tormentas e os aguaceiros que povoam o nosso planalto, toma conta do observador que caminha pelo parque, pois, entre o céu e a terra há muitos verdades que não estão escritas nos livros, mas revelam-se na penumbra da floresta.  Posta nesta perspectiva a questão ambiental, seja a nível de parques e reservas, seja a nível do uso sustentável dos recursos naturais, assume conotações que dizem respeito à própria sobrevivência física, psíquica e espiritual do homem. Por isso mesmo transforma-se numa assunto que interessa o bem comum e como tal implica em preocupações de natureza ética.

Reflexões avulsas - Homenagem ao Pe. Rambo em Tupandi

Ao ser convidado para falar nesta ocasião fiquei pensando o que poderia ser dito sobre o Pe. Rambo que ainda não fosse conhecido, pelo menos por boa parte do público que está aqui presente. Depois de algumas idas e vindas, optei  por fazer o próprio homenageado falar sobre temas que foram assunto permanente de suas reflexões. Tudo encontra-se registrado no seu diário de 49 volumes. Mas antes de ouvir o Pe. Rambo falar repito o que Renato Dalto, autor do texto na “Trilha do Pe. Rambo”, escreveu como introdução:

Há um caminho no interior  de Tupandi, contornado por morros e vales. Chamam o lugar de Morro da Manteiga. Entre esse caminho havia uma casa e uma escola. E entre a casa e a escola, havia um menino trilhando esse caminho. Tinha sido a única criança em casa até os quatro anos. E parecia  conhecer, desde o primeiro dia em que veio ao mundo, naquele 11 de agosto de 1905, um gosto especial que permeia o resto de seus dias: o gosto pela solidão. Em seu diário anotou ao falar da infância:“ Fui criança um dia, como todas as crianças, só mais calado e reflexivo do que a maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens foram meus brinquedos prediletos”.

E os brinquedos prediletos do tempo de criança transformaram-se na grande paixão de sua vida. A natureza intata, principalmente nas florestas virgens, montanhas e planaltos intocados, formaram o cenário em que seu espírito e coração encontraram o chão propício para reflexões que falam das preocupações que realmente são importantes na vida do homem: afinal quem somos, porque estamos aqui, para onde vamos e qual é o papel de Deus nessa jornada. Por essa razão a Natureza é sagrada, porque é a querência, a Heimat da humanidade. Em 1942 o Pe. Rambo escreveu a respeito:

O homem, filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria. Enquanto o espaço é suficiente e a densidade demográfica pequena, não se tornam muito conscientes tais sentimentos; mas no momento em que as necessidades brutais da vida forçam a interferir sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta  a dor perante a destruição de suas feições naturais, e o desejo das conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns lugares e nos traços mais característicos. Assim, no decurso de todas culturas humanas, mais cedo ou mais tarde, surgem as tendências de proteção ativa da natureza; um povo que se descuidasse deste  elemento, seria falto de um requisito essencial da verdadeira cultura humana total, e indigno da terra, com que a pródiga mão do criador o presenteou. A proteção à natureza baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária  e inconsiderada dos tesouros da beleza natural.

Numa caminhada por uma floresta de árvores gigantescas num parque nos Estado Unidos em 1956, no qual as mais antigas contam com mais de quatro mil anos, anotou no diário: 

Sem querer a gente se descobre e se flagra em absoluto silêncio, em meio à assembleia  do conselho de gigantes. Que cantos não teriam deixado os poetas e os cantores do Velho Testamento, que nos falam com tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos ciprestes do Monte Sião, se tivessem tido a ocasião de escutar a voz de Deus netas florestas. Quando Davi e Salomão cantavam seus salmos, quando Isaias anunciava a seu povo o advento do futuro Filho do Homem, quando Ezequiel contemplava o Senhor dos Tempos sentado nos eu trono, sobre muitas dessas árvores  já pesavam mais de mil anos. O canto de luto das árvores do paraíso, o canto da árvore da vida da mitologia germânica, o canto de vitória da árvore da Redenção, toda a simbólica que envolve a árvore nas sagas e na arte da humanidade, toma conta do observador, que caminha na penumbra mortiça desta floresta. Entre o céu e a terra há muitas verdades que não estão escritas nos livros. Revelam-se no silêncio da floreta.

O Pe. Rambo nutria uma verdadeira paixão pelo planalto de Cambará e os Aparados da Serra, a ponto de  declarar: Se tenho uma pátria na terra ela se encontra no planalto calmo e sereno na sombra dos pinheirais. Em janeiro e fevereiro de 1948 passou mais de um mês percorrendo os arredores de Cambará, num momento em que a natureza da região encontrava-se praticamente intocada. Escreveu um diário de mais de 100 páginas registrando suas observações, impressões e, principalmente, suas reflexões. Renato Dalto comentando esses diário, resumiu com rara felicidade a relação existencial, afetiva e mística, consolidada entre o padre cientista e aquele planalto único.

Foi do céu uma das primeiras visões que Balduino Rambo teve daqueles penhascos, das paredes crispadas, dos abismos. Viu águas caindo e comparou-as a faixas de prata, as matas silenciosas de pinheiros, a selva virgem. Isso aconteceu em 1938 quando percorreu o Rio Grande do Sul de avião e observou, lá de cima, o relevo dos campos e serras, um mapa desenhado onde se juntavam, ao longe, terra e céu. Essa união entre as coisas terrenas e celestes, esse embate permanente entre as coisas do corpo e do espírito  que permearam toda s sua vida. Talvez explique um pouco o sentimento que nutria pelo região do planalto e especialmente, pelos Aparados da Serra. Ali, o maior símbolo da floresta é a araucária. Vista de baixo para cima, os galhos parecem tocar o céu. Mas é só desviar  o olhar em direção à terra pra ver que há raízes fortes encravadas no chão. Rambo costumava dizer que, neste lugar, à sobra dessas árvores gigantes, era sua pátria no mundo.. Talvez visse nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para entender Deus.

No dia 17 de fevereiro de 1948 anotou no diário o encontro com o divino na natureza:   Nada dispõe mais para a reflexão do que estas caminhadas pela neblina, e estas noites com seu leve prurido de chuva à janela e as gotas estalando caindo das árvores. Liberta-se então a alma dos fogos fátuos do dia resplandecente, fecham-se todas as portas e silenciosamente penetra, como que tateando, em seu mundo mais íntimo, isto é, no reino do ser, envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes perdem-se aos poucos em seus ecos e migram através desta terra espiritual carregada de pressentimentos. Alguém caminha pela névoa e pela noite. Seus passos são tão leves como o murmurar da neblina. E este Alguém que é único, chama meu nome nesta terra solitária.

Pinturas da Natureza como as gargantas da Pedra Branca ocorrem apenas uma vez na bela terra de Deus. Quase se poderia chamar a este quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas que trovejam, de névoas que fervem e trovoadas que uivam, de mata silenciosa e penhascos cheios de saliências de rochas, uma pintura imperfeita, se ela não fosse muito mais do que isso. É que se trata realmente de uma construção gigantesca de força e simplicidade, e de um acontecer, que nunca para de rolar para frente. Alguém mora nesses abismos que sussurram, e Alguém vigia nessa torre de observação solitária. Ele chama o eco, apascenta a névoa e nos escolhos solitários brinca com o raio. Também isso  é solidão da alma com seu Deus. O hálito, o espírito de Deus sopra em toda a parte. Quem tiver erguido a sua alma na solidão de Deus, a esse acompanha a própria solidão de Deus para o meio da multidão insana.

Nunca mais hei de esquecer a minha despedida do planalto.  Permiti a meu cavalo avançar pelo campo florido como lhe agradava. Atrás de mim borbulhavam as névoas condensadas subindo dos precipícios e rolando pelo campo. Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Agradeço a Deus e levo saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria na terra ela se encontra no planalto calmo e sereno na sombra dos pinheirais.


Reflexões sobre a natureza dessa profundidade encontram-se centenas, senão milhares, nas páginas dos 49 volumes do diário do Pe. Rambo. O padre cientista de renome internacional, filho de Tupandi encontrou na suas pesquisas inspiração para escrever páginas dignas dos maiores poetas e escritores, inspirou reflexões que são de rara beleza e profundidade e, principalmente, viu na Natureza o livro aberto para encontrar e entender Deus. O resumo dessa descoberta está nas duas reflexões já citadas: Alguém mora nesses abismos, Alguém vigia nessa torre de obseração. Aquele Alguém brinca com o raio, manifesta-se no silêncio da floresta e seu hálito sopra em toda a parte. Aquele alguém chama pelo nome a nós todos se nos dispusermos a escutá-lo. Esta é a mensagem que o Pe. Rambo deixaria para a sua amada Heimat no dia em que ela o homenajeia.

Reflexões avulsas - Conferência na IAB sobre o Pe. Balduino Rambo

No dia 11 de agosto de 2.005 marcou a data centenária do nascimento do Pe. Balduino Rambo. Falecido prematuramente aos 56 anos, em 12 de setembro de 1961, deixou  uma herança cultural e científica ímpar, tanto pela diversidade dos campos pelos quais transitou, quanto pela profundidade e originalidade com que os tratou. Não é aqui a hora nem a oportunidade para trazer uma biografia completa sua. Esta já foi escrita em várias ocasiões e outras tantas versões, umas mais  extensas e mais detalhadas, outras mais enxutas e mais sóbrias.
Propus-me a iluminar, na medida do possível, a personalidade do Pe. Rambo em alguns dos seus traços característicos e naquilo que ele oferece de peculiar. Nasceu no meio rural, no atual município de Tupandi, na época oitavo distrito de Montenegro, filho de um casal de colonos  descendentes típicos de imigrantes alemães. O ambiente profundamente  religioso na família e no meio social em que passou a infância e parte da adolescência, deixou nele traços inconfundíveis para o resto da vida. Digo mais. Serviram de fundamento e de baliza que imprimiram o rumo e o ritmo a toda a sua existência. O fascínio pela natureza no seu estado original, o bucólico do mundo rural, o épico dos fenômenos que moldaram a natureza em tempos primigênios, afloram  constantemente na sua produção literária e científica ou irrompem como vulcões em momentos de arrebatamento. Mas a razão última, o motor existencial que imprimiu a sua vida um ritmo frenético, por vezes alucinante foi, sem dúvida, a fé religiosa despida de artificialismos e pieguiçes, herança do berço camponês despojado e frugal, mas prenhe de fé e calor humano.
Muito jovem ainda, no limiar da adolescência, o futuro padre jesuíta, literato, líder social, professor universitário e cientista de renome internacional, partiu para o seminário em Pareci Novo. Ao menino de 12  anos incompletos abriram-se então as portas do saber religioso e profano. Desde muito cedo, o contato com as línguas e as respectivas literatura  despertaram nele a admiração e uma verdadeira paixão pela cultura clássica. Este por assim dizer “caso de amor” iria transformar Homero em companheiro inseparável do Pe. Rambo. Ele recitava seus versos,  no original grego, para os escoteiros junto à fogueira nos acampamentos em Cambará. Em 1917, com apenas 12 anos de idade, experimentou seu primeiro encontro com  a ciência. Ele próprio registrou assim o episódio:
“Em 1917 encontrei-me a segunda vez com o Pe. Rick. Na época eu era aluno no seminário para meninos em Pareci Novo. Sobrecarga de trabalho nas Missões Populares e constrangimentos  policiais ocorridos na colônia alemã, durante meses o tornaram inapto para o trabalho. Certo dia pegou um feixe de flores do mato e nos explicou, a nós filhos de colonos, como eram os nomes das diversas partes da planta, para que fim serviam e como soavam os nomes latinos. Foi a primeira aula de botânica da minha vida e, se hoje eu próprio sou botânico, teve a sua origem na decisão então tomada: se um homem como o Pe. Rick se dedica a essas coisas, a ciência deve ser algo de grande.”
E de fato, a decisão então tomada se transformaria na maior razão de ser da vida. Não a ciência como ciência, não a ciência com objetivos utilitaristas, não a ciência como caminho para a fama e a imortalidade, mas a ciência com meio para compreender a origem, a evolução e o destino do Universo e do homem e, principalmente qual é o lugar de Deus nesta história fantástica. E, na medida em que suas outras paixões: a literatura, a batalha pelo bem-estar e o progresso dos colonos, o empenho na preservação da germanidade, foram sendo atropeladas e frustradas pelo andar do tempo, pelas circunstâncias históricas e, porque não dizê-lo, pela inveja e a incompreensão dos homens, a pesquisa científica avançou num crescendo contínuo. A morte prematura colheu-o no auge da produção científica e do reconhecimento nacional e internacional.

Uma visão panorâmica sobre a vida e atividade do Pe. Rambo não deixa dúvida de que ele foi dotado, antes de mais nada, de um espírito universalista como é raro observar-se  na sua época. Se tivesse nascido na Renascença, figuraria com muita probabilidade na galeria daqueles sábios que dominavam todos os campos do conhecimento. Tudo interessava, desde as línguas e literaturas clássicas da antiguidade, da Idade Média, dos tempos modernos e contemporâneos, passando pela História Natural na totalidade dos seus campos, pela Filosofia, Teologia, História e o futuro do seu povo colonial. E, na medida em que incursionava e se aprofundava nas diversas especialidades e tentava entendê-las na sua essência, foi tomando forma a pergunta que em última análise importava responder: Afinal em que consiste a razão última de ser do universo  em que o homem construiu, constrói e continua construindo a sua história? Em outras palavras. Qual é a missão do cientista ao fazer ciência, o filósofo ao perguntar  pela natureza e finalidade das coisas, o sociólogo ao se preocupar com o bem estar das sociedades, o historiador ao procurar o fio condutor que serviu de referência para a humanidade traçar e trilhar o seu caminho. O Pe. Rambo deixou a resposta registrada no seu diário com data de 24 de junho de 1954:
“Ora é a Ciência o aperfeiçoamento supremo do espírito humano na terra. Cada ciência é, em última análise, uma re-criação dos pensamentos de Deus e de seus planos construtores. Neste mundo, contudo, esses pensamentos nunca podem levar a o término. O melhor que se pode fazer é um trabalho de atalho. Se após uma vida repleta de pesquisa honesta finalmente se pensa  ter chegado tão longe pela ciência, essa mesma vida chegou ao fim.”
A entrada no seminário em 1917 representou para o menino Balduino, a abertura das portas para transitar livremente por todos os campos do conhecimento. Aproveitou o tempo para munir-se dos instrumentos indispensáveis para percorrer a estrada do saber. Aprendeu as línguas mais importantes: o português, alemão,, latim, grego, francês, inglês, italiano, espanhol e, até rudimentos de russo, com as respectivas literaturas. Iniciou-se nos conhecimentos básicos das Ciências Naturais e adentrou-se nos meandros da geografia e da história e, mais tarde, da Filosofia e Teologia. Apropriou-se, portanto, das ferramentas que lhe permitiriam aproximar-se da alma que vivifica o universo e justifica a sua existência. E, pouco a pouco amadureceu nele uma compreensão do mundo, não digo de todo original, mas, com certeza peculiar. Conforme ele, o mundo em que vivemos, compreendido na sua totalidade mineral, vegetal, animal e humana, forma uma unidade que tem no Criador a sua origem, a sua razão de ser e o seu destino final. Observa-se nesta visão uma proximidade, com certeza não casual, com aquela que Teilhard de Chardin formulou sobre o mundo e o universo. Na percepção deste, tudo que nos rodeia tem a sua causa e origem no “Alfa”, que vem a ser o Deus Criador e tudo converge ao destino último, o “Omega” que vem a ser o mesmo Deus Criador. Este esquema linear de causa, efeito e finalidade relativamente simples, na formulação da síntese em Teilhard de Chardin, em Rambo complica-se bastante. Na tentativa da formulação de uma síntese, em vez da metáfora “Alfa – Omega”, toma corpo uma outra, a da “totalidade”. Não se encontram referências explícitas nos seus escritos mostrando que ele acompanhou o esforço dos teóricos seus contemporâneos que formularam a concepção organísmica-sistêmica da natureza, tendo à frente Ludwig von Bertalanffy. Em todo o caso alinhou-se na sua concepção teórico-filosófica da natureza, com o movimento científico e filosófico que, desde o século dezenove, procurava superar a  visão casual, mecanicista, materialista. A idéia de que o universo se resumia na soma das suas partes e processos, que a compreensão da essência da natureza e da vida se explica pelas funções orgânicas e suas correlações mútuas, que a inteligência, os impulsos e as aspirações do homem não passam de uma mera sofisticação das estruturas e funções, já não responde a uma questão crucial. A pergunta pela natureza das partes no todo e o próprio sentido do todo, começou a incomodar cientistas e filósofos em número crescente.
Os métodos empíricos mostraram, pouco a pouco, as suas limitações e o aprofundamento em busca de uma solução global, foi deixando um crescente sentimento de impotência e de frustração entre os cientistas. O mundo científico optou então por dois caminhos. A grande maioria, ignorando ou rejeitando qualquer busca de solução fora e além da investigação empírica, continuou animado pela esperança ou convicção mesmo, que esses métodos continham a chave para a explicação última da natureza. Mas a questão se complicava de modo especial quando se perguntava pelo lugar que o homem ocupa no universo. O esquema simples, retilíneo, didático da gênese a partir do “Alfa”, a evolução do mundo até a culminância do homem e a consumação no “Omega” de Teilhard, assume em Rambo a figura da “Totalidade”. Nela há lugar para tudo e tudo tem um sentido e a tudo cabe uma função no todo. O universo resume-se numa gigantesca unidade na qual o mais insignificante dos elementos, tem sentido e lhe cabe uma tarefa. Essa compreensão perpassa, como um fio condutor,  a sua produção literária e cintífica .

A compreensão do universo como um todo, como um organismo no plano filosófico, não podia deixar de refletir-se no plano ético, moral e teológico.
As implicações ético-morais nas relações do homem com a natureza, já ficaram explícitas, em 1942, na sua obra, que se tornou um clássico de referência para o estudo do Rio Grande do Sul:  “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. No final da obra ao apontar para as razões que fundamentam ações concretas de proteção à natureza, destacou três:
“A proteção da natureza está em primeiro lugar a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária e inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da terra, torna-se um aliado de valor da higiene e da pedagogia sociais e um adjutório indispensável da educação nacional.”
Muito antes, portanto, que a preservação do meio ambiente e a preocupação ecológica assumisse as proporções  de bandeira política ou de um messianismo ideológico, por vezes beirando o fanatismo, o Pe. Rambo se posicionou diante da questão com o argumento que, em última análise, justifica qualquer iniciativa neste particular. A relação com meio ambiente tem a ver com a ética e a moral. Essa constatação flui como conseqüência lógica  da compreensão do universo com um todo harmônico. As intervenções indevidas em suas partes comprometem o todo e, com isso, terminam ferindo o homem em seus direitos fundamentais à vida e ao bem-estar. Comprometem, outrossim, povos inteiros e, quem sabe, a humanidade como um todo.
Como já assinalamos mais acima a obra inteira do Pe. Rambo como ele mesmo deixa claro, tem como propósito central formular uma grande síntese. É evidente que não é possível falar individualmente de todas elas no espaço limitado de uma palestra. Escolhemos por isso a sua obra de referência: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” e alguns excertos do seu diário de viagem aos Estados Unidos, em 1956 a convite e expensas do governo daquele país.
A obra que, sem dúvida, permanece até hoje como referência obrigatória para quem estuda o Rio Grande do Sul sob os mais diversos aspectos, é A Fisionomia do Rio Grande do Sul. A primeira edição data de 1942, uma edição limitada de 500 exemplares distribuídos entre pessoas interessadas pelas coisas do Estado. No prefácio para a segunda edição ele próprio detalhou os motivos que o levaram a escrever a obra.
“O presente livro baseia-se sobre a literatura citada no fim, e sobre as  observações próprias recolhidas nos últimos anos.”
“Sua finalidade é descrever o Rio Grande do Sul tal qual é, atendendo a três aspectos: o aspecto científico, pois a monografia natural necessita do fundamento das ciências naturais; o aspecto didático, pois a monografia quer orientar praticamente sobre as coisas riograndenses; o aspecto estético, pois a monografia deve corresponder à beleza natural da paisagem”.
“Resulta assim o caráter peculiar do livro: devido à finalidade científica, é necessário enumerar e descrever todos os fatos essenciais da natureza riograndense; devido à finalidade didática, é necessário colocar estes fatos em ordem lógica e natural; devido à finalidade estética é necessário revestir o conjunto duma forma literária e sóbria”.
“Verdade é que deste modo o livro não pertence exclusivamente a nenhum dos três gêneros citados, pois cada finalidade parcial deve subordinar-se, na medida imposta pelo total, às duas outras; aceitamos este compromisso, para chegarmos o mais perto possível da realidade  riograndense tal qual ela é.
O Pe. Arthur Rabuske, depositário do espólio literário do Pe. Rambo e o mais profundo conhecedor da sua obra e personalidade, escreveu na apresentação à terceira edição de “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”:
“A Fisionomia”, apesar dos evidentes progressos científicos surgidos entre nós durante o último meio século, ainda se constitui para diversos efeitos numa das obras básicas sobre a cultura Sul-Riograndense. Assim já se evidenciou em fins de 1955, quando uma enquete feita pelo jornalista Carlos Reverbel nas colunas do Correio do Povo, revelou que ela  ocupava o quinto lugar entre as dez obras mais representativas no concernente ao Rio Grande do Sul. Nos dias em curso, dificilmente  algum cientista teria a coragem de versar sozinho um assunto  tão amplo e complexo, como se faz em “Fisionomia”. É que tais visões de conjunto e globais ou holistas, são o privilégio de poucos e como que deixaram de existir no atual mister científico. Consiste o valor perene de “A Fisionomia” não em último o lugar no fato de seu autor pioneiro, como talvez nenhum outro entre nós, da Ecologia, para  a qual hoje temos tanta sensibilidade e, sobretudo, na interpretação, rara no mundo científico especializado, da beleza das diversas paisagens naturais do Rio Grande do Sul, em cujo centro se encontra o ser humano”.
No prefácio para a terceira edição eu próprio escrevi:
“Para compreender “A Fisionomia do Rio grande do Sul” em todo os eu alcance, é preciso conhecer um pouco mais de perto o seu autor. O Pe. Rambo foi uma dessas personalidades versáteis, universais e irrequietas, beirando à genialidade e, ao mesmo tempo sensíveis, capaz de extasiar-se com a visão de um panorama grandioso, ou comover-se com uma flor singela escondida no meio das ervas do campo. Para quem o conheceu mais de perto e teve oportunidade de privar com ele nas suas andanças pela natureza, fica difícil decidir em que foi maior: se foi como religioso, como cientista, como arguto observador dos acontecimentos  que movimentaram a história das décadas vinte, trinta quarenta e cinqüenta, do século vinte”.
“A Fisionomia do Rio grande do Sul fixou a imagem do Estado, tal qual ela se apresentava no final da década e 1930. Ao percorrer as páginas  desta obra rara acompanha-se, quase como que assistindo a um documentário filmado, a natureza e formação geológica das diversas regiões naturais, sua topografia, sua fauna, sua flora e a presença do mão do homem humanizado grande extensões, agredindo perigosamente a paisagem natural”.
Não raras são também as referências antropológicas e históricas às quais o Rio Grande do Sul serviu de cenário. Ora são os guaicurus percorrendo o Pampa, ora são os guaranis das Missões,  ora os missionários, ora os estancieiros herdeiros do gado missioneiro, ora são os imigrantes vindos da Europa do Norte e Central que ocuparam em definitivo o Estado coberto de florestas pluviais e campos naturais.
A leitura de “A Fisionomia” converte-se num verdadeiro prazer por retratar com toda  fidelidade o que foi o Rio Grande do Sul há setenta anos e fascina  por ter sido  escrita num estilo vigoroso, atraente e adequado aos diversos enfoques. As descrições são formais e objetivas quando a precisão científica o recomenda; são poéticas e carregadas de sentimentos quando o objeto o pede. Falando da destruição das reduções jesuíticas assim se exprimiu: A melancolia da História paira sobre esta paisagem. Tudo que é belo   é destinado  fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geográficas  traçadas e esmo nos gabinetes de Madrid e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruína os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitados como pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloqüente, de acusação contra o mistério da humana iniqüidade; -    São vigorosas quando a paisagem o reclama, como na descrição da subida da serra para Farroupilha e Carlos Barbosa: No fundo, em ambos os lados, surgem duas montanhas de selvagem beleza, o morro Canastra e o Morro do Diabo. Como quilhas de imensos navios de guerra, suas arestas esculpidas pelas águas apontam pra o vale;    São épicas quando faz referência aos missionários e índios das reduções. A beleza das ruínas antigas, inexistentes no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal. Ali a fé cristã e a civilização européia pela primeira vez firmaram pé nas plagas abençoadas do Tape misterioso. Ali, nesses  campos marchetados de capões, viajaram, a pé e a cavalo, os Roque Gonzalez, os Montoyas, os Romeros. Ali os selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguiram dobrar. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de imenso dinamismo; .... -.... Vêm, enfim, carregadas de advertências quando deplora a devastação das florestas, o extermínio da fauna e a desfiguração das paisagens naturais. Um povo que se descuidasse desse elemento, seria falto de um requisito essencial da verdadeira cultura humana total, e indigno da terra com que a pródiga mão do criador o presenteou.
Cabe ao Pe. Rambo o mérito de ter sido talvez o primeiro entre nós, a chamar a atenção que a destruição indiscriminada da natureza implica numa questão ética e moral. A um certa altura escreveu: A proteção à natureza, em segundo lugar, baseia-se sobre o princípio da ética natural que considera imoral a destruição desnecessária e inconsiderada  dos tesouros da beleza nativa.
Considerando que a Fisionomia do Rio Grande do Sul é uma obra escrita no final da década de 1930, as propostas de Proteção à Natureza apresentadas  são igualmente pioneiras entre nós. Ao introduzir o assunto fez as seguintes reflexões:
“O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos de sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria. Enquanto o espaço é suficiente e a densidade demográfica pequena, não se tornam muito conscientes tais sentimentos, mas, no momento em que as necessidades brutais da vida forçam a interferir sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta  a dor perante a destruição de suas feições naturais e o desejo  de as conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns lugares e nos traços mais característicos.”
Assim, no curso de todas as culturas humanas, mais cedo ou mais tarde, surgem as tendências de proteção ativa da natureza; um povo que se descuidasse deste elemento seria falto de um requisito essencial da verdadeira cultura humana total e indigno da terra, com que a pródiga mão do Criador o presenteou”.
E termina a Fisionomia com quatro propostas concretas.
A primeira. Proteção aos monumentos naturais, isto é, de criações individuais da natureza, de importância científica, histórica ou fisionômica, como sejam árvores destacadas por seu volume, forma; formações geológicas locais interessantes ou instrutivas, rochedos e montanhas de caráter peculiar.    seguem exemplos na p. 433.
A segunda. Proteção a espécies botânicas e zoológicas em perigo.
- Conservação das matas virgens. Até hoje o desmatamento  esteve entregue ao acaso, sujeito ao bel prazer dos donos dos lotes. É um erro funesto entregar todas as matas a proprietários individuais e abandoná-las  em seguida ao machado. No interesse geral, o Estado deve reclamar para si porções da reserva florestal e, além disso, vigiar sabiamente as derrubadas necessárias par a lavoura.

A terceira.  Harmonização das obras humanas com a paisagem natural
A quarta. Criar parque  e reservas naturais como nos grandes países civilizados
Quando em 1956 visitou os parque americanos a convite daquele país, resumiu o seu conceito de parque natural, com as palavras:

“Desde que voltei da América, empenhei-me que também no Brasil se constituíssem mais parques nacionais. Até agora dispomos de dois, um nas terras montanhosas do Itatiaia e o outro nas cataratas do Iguassu. Se tudo correr bem teremos, em breve, um terceiro nas escarpas  orientais dos Aparados da Serra, com o Taimbezinho como núcleo inicial.  O lamentável é que entre nós, constrói-se em primeiro lugar um enorme hotel para atrair os turistas endinheirados de dentro e fora do país. Com isto está viciado o  conceito de um autêntico parque. O parque deve estar a serviço  da proteção da natureza de do recreio do povo. O rico que aparecer, deve ser obrigado a viver com a mesma simplicidade que o operário e o colono. As pessoas que não conseguem dispensar o hotel caro, o rádio, a televisão, a dança e o jogo, que fiquem onde tudo isto está disponível de qualquer forma. Em nenhum parque jamais escutei um rádio berrando, nem observei algum aparelho de televisão, nem percebi música de dança, nem presenciei chás dançantes. De maneira alguma quero afirmar que o americano médio é melhor do que nós. Uma coisa, porém, é certa. Eles têm mais compreensão , mais decência e mais respeito perante a beleza e a tranqüilidade da natureza criada por Deus”.