Ao ser convidado para falar nesta
ocasião fiquei pensando o que poderia ser dito sobre o Pe. Rambo que ainda não
fosse conhecido, pelo menos por boa parte do público que está aqui presente.
Depois de algumas idas e vindas, optei
por fazer o próprio homenageado falar sobre temas que foram assunto
permanente de suas reflexões. Tudo encontra-se registrado no seu diário de 49
volumes. Mas antes de ouvir o Pe. Rambo falar repito o que Renato Dalto, autor
do texto na “Trilha do Pe. Rambo”, escreveu como introdução:
Há um caminho no interior de Tupandi, contornado por morros e vales.
Chamam o lugar de Morro da Manteiga. Entre esse caminho havia uma casa e uma
escola. E entre a casa e a escola, havia um menino trilhando esse caminho.
Tinha sido a única criança em casa até os quatro anos. E parecia conhecer, desde o primeiro dia em que veio ao
mundo, naquele 11 de agosto de 1905, um gosto especial que permeia o resto de
seus dias: o gosto pela solidão. Em seu diário anotou ao falar da infância:“
Fui criança um dia, como todas as crianças, só mais calado e reflexivo do que a
maioria delas. Imagens, flores e florestas virgens foram meus brinquedos
prediletos”.
E os brinquedos prediletos do
tempo de criança transformaram-se na grande paixão de sua vida. A natureza intata,
principalmente nas florestas virgens, montanhas e planaltos intocados, formaram
o cenário em que seu espírito e coração encontraram o chão propício para
reflexões que falam das preocupações que realmente são importantes na vida do
homem: afinal quem somos, porque estamos aqui, para onde vamos e qual é o papel
de Deus nessa jornada. Por essa razão a Natureza é sagrada, porque é a
querência, a Heimat da humanidade. Em 1942 o Pe. Rambo escreveu a respeito:
O homem, filho desta terra, que
lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos da sua vida espiritual, sente um
respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria. Enquanto o espaço é
suficiente e a densidade demográfica pequena, não se tornam muito conscientes
tais sentimentos; mas no momento em que as necessidades brutais da vida forçam
a interferir sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta a dor perante a destruição de suas feições
naturais, e o desejo das conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns
lugares e nos traços mais característicos. Assim, no decurso de todas culturas
humanas, mais cedo ou mais tarde, surgem as tendências de proteção ativa da
natureza; um povo que se descuidasse deste
elemento, seria falto de um requisito essencial da verdadeira cultura
humana total, e indigno da terra, com que a pródiga mão do criador o
presenteou. A proteção à natureza baseia-se sobre um princípio de ética
natural, que considera imoral a destruição desnecessária e inconsiderada dos tesouros da beleza
natural.
Numa caminhada por uma floresta
de árvores gigantescas num parque nos Estado Unidos em 1956, no qual as mais
antigas contam com mais de quatro mil anos, anotou no diário:
Sem querer a gente se descobre e
se flagra em absoluto silêncio, em meio à assembleia do conselho de gigantes. Que cantos não
teriam deixado os poetas e os cantores do Velho Testamento, que nos falam com
tanta empolgação dos cedros do Líbano e dos ciprestes do Monte Sião, se
tivessem tido a ocasião de escutar a voz de Deus netas florestas. Quando Davi e
Salomão cantavam seus salmos, quando Isaias anunciava a seu povo o advento do
futuro Filho do Homem, quando Ezequiel contemplava o Senhor dos Tempos sentado
nos eu trono, sobre muitas dessas árvores
já pesavam mais de mil anos. O canto de luto das árvores do paraíso, o
canto da árvore da vida da mitologia germânica, o canto de vitória da árvore da
Redenção, toda a simbólica que envolve a árvore nas sagas e na arte da
humanidade, toma conta do observador, que caminha na penumbra mortiça desta
floresta. Entre o céu e a terra há muitas verdades que não estão escritas nos
livros. Revelam-se no silêncio da floreta.
O Pe. Rambo nutria uma verdadeira
paixão pelo planalto de Cambará e os Aparados da Serra, a ponto de declarar: Se tenho uma pátria na terra ela se
encontra no planalto calmo e sereno na sombra dos pinheirais. Em janeiro e
fevereiro de 1948 passou mais de um mês percorrendo os arredores de Cambará,
num momento em que a natureza da região encontrava-se praticamente intocada.
Escreveu um diário de mais de 100 páginas registrando suas observações,
impressões e, principalmente, suas reflexões. Renato Dalto comentando esses
diário, resumiu com rara felicidade a relação existencial, afetiva e mística,
consolidada entre o padre cientista e aquele planalto único.
Foi do céu uma das primeiras
visões que Balduino Rambo teve daqueles penhascos, das paredes crispadas, dos
abismos. Viu águas caindo e comparou-as a faixas de prata, as matas silenciosas
de pinheiros, a selva virgem. Isso aconteceu em 1938 quando percorreu o Rio
Grande do Sul de avião e observou, lá de cima, o relevo dos campos e serras, um
mapa desenhado onde se juntavam, ao longe, terra e céu. Essa união entre as
coisas terrenas e celestes, esse embate permanente entre as coisas do corpo e
do espírito que permearam toda s sua
vida. Talvez explique um pouco o sentimento que nutria pelo região do planalto
e especialmente, pelos Aparados da Serra. Ali, o maior símbolo da floresta é a
araucária. Vista de baixo para cima, os galhos parecem tocar o céu. Mas é só
desviar o olhar em direção à terra pra
ver que há raízes fortes encravadas no chão. Rambo costumava dizer que, neste
lugar, à sobra dessas árvores gigantes, era sua pátria no mundo.. Talvez visse
nos pinheirais a mediação entre o céu e a terra, um caminho próximo para
entender Deus.
No dia 17 de fevereiro de 1948
anotou no diário o encontro com o divino na natureza: Nada dispõe mais para a reflexão do que
estas caminhadas pela neblina, e estas noites com seu leve prurido de chuva à
janela e as gotas estalando caindo das árvores. Liberta-se então a alma dos
fogos fátuos do dia resplandecente, fecham-se todas as portas e silenciosamente
penetra, como que tateando, em seu mundo mais íntimo, isto é, no reino do ser,
envolvido no sonho de todas as coisas. Luzes distantes e vozes perdem-se aos
poucos em seus ecos e migram através desta terra espiritual carregada de
pressentimentos. Alguém caminha pela névoa e pela noite. Seus passos são tão
leves como o murmurar da neblina. E este Alguém que é único, chama meu nome
nesta terra solitária.
Pinturas da Natureza como as
gargantas da Pedra Branca ocorrem apenas uma vez na bela terra de Deus. Quase
se poderia chamar a este quadro de precipícios perpendiculares e de cataratas
que trovejam, de névoas que fervem e trovoadas que uivam, de mata silenciosa e
penhascos cheios de saliências de rochas, uma pintura imperfeita, se ela não
fosse muito mais do que isso. É que se trata realmente de uma construção
gigantesca de força e simplicidade, e de um acontecer, que nunca para de rolar
para frente. Alguém mora nesses abismos que sussurram, e Alguém vigia nessa
torre de observação solitária. Ele chama o eco, apascenta a névoa e nos
escolhos solitários brinca com o raio. Também isso é solidão da alma com seu Deus. O hálito, o
espírito de Deus sopra em toda a parte. Quem tiver erguido a sua alma na
solidão de Deus, a esse acompanha a própria solidão de Deus para o meio da
multidão insana.
Nunca mais hei de esquecer a
minha despedida do planalto. Permiti a
meu cavalo avançar pelo campo florido como lhe agradava. Atrás de mim
borbulhavam as névoas condensadas subindo dos precipícios e rolando pelo campo.
Murmuravam os arroios e cochichavam os pinheiros. Agradeço a Deus e levo
saudades desta terra hospitaleira. Se possuo uma pátria na terra ela se
encontra no planalto calmo e sereno na sombra dos pinheirais.
Reflexões sobre a natureza dessa
profundidade encontram-se centenas, senão milhares, nas páginas dos 49 volumes
do diário do Pe. Rambo. O padre cientista de renome internacional, filho de
Tupandi encontrou na suas pesquisas inspiração para escrever páginas dignas dos
maiores poetas e escritores, inspirou reflexões que são de rara beleza e
profundidade e, principalmente, viu na Natureza o livro aberto para encontrar e
entender Deus. O resumo dessa descoberta está nas duas reflexões já citadas:
Alguém mora nesses abismos, Alguém vigia nessa torre de obseração. Aquele
Alguém brinca com o raio, manifesta-se no silêncio da floresta e seu hálito
sopra em toda a parte. Aquele alguém chama pelo nome a nós todos se nos
dispusermos a escutá-lo. Esta é a mensagem que o Pe. Rambo deixaria para a sua
amada Heimat no dia em que ela o homenajeia.